quinta-feira, 30 de março de 2023

"Na Mão de Deus" - Soneto de Antero de Quental



 
Frederic Edwin Church (American landscape painter, 1826–1900), Rainy Season in the Tropics, 1866, 
 
 

Na Mão de Deus 
 
 
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente! 
in "Sonetos completos", 1886. 
 
 
Frederic Edwin Church, c. 1868, photograph by
 Napoleon Sarony (1821-1896)
 
 
Frederic Edwin Church (Hartford, Connecticut, 4 de maio de 1826 — Nova Iorque, 7 de abril de 1900) foi um pintor paisagista norte-americano.
Foi a figura central da Escola do Rio Hudson de pintores e paisagistas norte-americanos. Foi aluno de Thomas Cole em Palenville, Nova York. Tornou-se conhecido, sobretudo, por pintar paisagens colossais, com frequência em localizações exóticas. Sua pintura O Coração dos Andes, atualmente na coleção do Metropolitan Museum of Art, mede 1,67 metros de altura por 3 metros de largura. (daqui)
 
 
 
 
 
 
 
[O vulcão Cotopaxi localiza-se no Equador, e é um dos mais altos vulcões no mundo. O Cotopaxi encontra-se a cerca de 75 km a sul de Quito.
Desde 1738 já ocorreram mais de 50 erupções neste vulcão. Em volta do vulcão encontram-se numerosos vales formados por lahares. A cidade de Latacunga já foi completamente destruída duas vezes em resultado das erupções deste vulcão. As erupções mais violentas ocorreram em 1744, 1768 e em 1877. A última grande erupção ocorreu em 1904, ocorrendo também alguma atividade em 1942.
Iniciou-se uma erupção em 14 de Agosto 2015. ] (daqui)

 
 
 
 


A Bíblia da Humanidade
 
I
 
      Dentro do homem existe um Deus desconhecido: não sei qual, mas existe - dizia Sócrates soletrando com os olhos da razão, à luz serena do céu da Grécia, o problema do destino humano. E Cristo com os olhos da fé lia no horizonte anuviado das visões do profeta esta outra palavra de consolação - dentro do homem está o reino dos céus. Profundo, altíssimo, acordo de dois génios tão distantes pela pátria, pela raça, pela tradição, por todos os abismos que uma fatalidade misteriosa cavou entre os irmãos infelizes, violentamente separados, duma mesma família! Dos dois polos extremos da história antiga, através dos mares insondáveis, através dos tempos tenebrosos, o génio luminoso e humano das raças indicas e o génio sombrio, mas profundo, dos povos semíticos se enviam, como primeiro mas firme penhor da futura unidade, esta saudação fraternal, palavra de vida que o mundo esperava na angústia do seu caos - o homem é um Deus que se ignora
      Grande, soberana consolação de ver essa luz de concórdia raiar do ponto do horizonte aonde menos se esperava, de ver uma vez unidos, conciliados esses dois extremos inimigos, esses dois espíritos rivais cuja luta entristecia o mundo, ecoava como um tremendo dobre funeral no coração retalhado da humanidade antiga! Os combatentes, no maior ardor da peleja, fitam-se, encaram-se com pasmo, e sentem as mãos abrirem-se para deixar cair o ferro fratricida. Estendem os braços... somos irmãos ! 
      Primeiro encontro, santo e puríssimo, dos prometidos da história! Manhã suave dos primeiros sorrisos, dos olhares tímidos mas leais desses noivos formosíssimos, que o tempo aproximava assim para o casamento misterioso das raças! 
      Não há no mundo palácio de rei digno de lhes escutar as primeiras e sublimes confidências! Só um templo, alto como a cúpula do céu, largo como o voo do desejo, puro como a esperança do primeiro e inocente ideal humano!   
       Esse templo tiveram-no. Naquela palavra de dois loucos se encerra tudo. Nenhuma montanha tão alta, aonde a olho nu se aviste Deus, como o voo desta frase, a maior revelação que jamais ouvirá o mundo - dentro do homem está Deus.

Antero de Quental, in 'A Bíblia da Humanidade' (daqui)
 
[Publicado em janeiro de 1895 no jornal “O Século XIX” de Penafiel, o ensaio crítico 'A Bíblia da Humanidade', de Jules Michelet, autor que muito o inspirava então, foi posteriormente publicado em formato de livro.]
 

Retrato de Jules Michelet (1798-1874), c. 1865,
 por Thomas Couture (1815-1879), Museu Carnavalet
 

Jules Michelet
 
Historiador francês, professor na École Normale, na Sorbonne e no Collège de France, foi autor de Histoire de la Révolution Française (1847-1853) e Histoire de France (1833-1867). Nessas obras maiores da historiografia romântica, assim como em L'Oiseau (1856), L'Insecte (1857), L'Amour (1858), La Femme (1859) e La Sorcière (1862), entre outras, Michelet combina a exigência científica do estudo da História com a visão apaixonada dos acontecimentos, marcada pela imaginação poética e pelo estilo vibrante, deixando transparecer as suas convicções democráticas e populistas. 
 
A conceção da libertação progressiva da humanidade ao longo da História, elaborada por Michelet (que começa a ser traduzido e divulgado em Portugal na década de sessenta) a partir de leituras de Vico e Herder, influenciaria de forma determinante a Geração Coimbrã, depois Geração de 70, marcando a poesia das Odes Modernas (1865), de Antero de Quental, e sendo um dos autores citados na "Nota (sobre a missão revolucionária da poesia)" e na "Carta autobiográfica dirigida ao Professor Wilhelm Storck" (1887), onde Antero aponta as suas grandes influências. As teses de Michelet manifestam-se igualmente nas coletâneas de poesia filosófica de Teófilo Braga, Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras (1864), sendo ele um dos autores convocados na "Generalização da história da poesia" apensa à primeira, e nos livros do seu amigo e discípulo Teixeira Bastos, Rumores Vulcânicos (1879) e Vibrações do Século (1882). Também a historiografia de Oliveira Martins denota a marca de Michelet, desde o estudo Os Lusíadas "Ensaio sobre Camões e a sua Obra"(1872; 2ª ed., 1891). (daqui)

segunda-feira, 27 de março de 2023

"Melancolia" - Poema de João de Deus

 
Marc Chagall (1887-1985), Lune rousse au Cap d'Antibes, 1969, oil, pastel, 
 and watercolor on paper, 61.4 x 49.3 cm, coleção particular.



Melancolia 
 
 
Oh doce luz! oh lua!
Que luz suave a tua,
E como se insinua
Em alma que flutua
De engano em desengano!
Oh criação sublime!
A tua luz reprime
As tentações do crime,
E à dor que nos oprime
Abres-lhe um oceano!

É esse céu um lago,
E tu, reflexo vago
Dum sol, como o que eu trago
No seio, onde o afago,
No seio, onde o aperto?
Oh luz órfã do dia!
Que mística harmonia
Há nessa luz tão fria,
E a sombra que me guia
Neste areal deserto!

Embora as nuvens trajem
De dia outra roupagem,
O sol, de que és imagem,
Não tem essa linguagem
Que encanta, que namora!
Fita-te a gente, estuda,
(Sem medo que se iluda)
Essa linguagem muda...
O teu olhar ajuda...
E a gente sente e chora!

Ah! sempre que descrevas
A órbita que levas,
Confia-me o que escrevas
De quanto vês nas trevas,
Que a luz do sol encobre!
As vítimas, que escutas,
De traças mais astutas
Que as dessas feras brutas...
E as lastimas, as lutas
Da órfã e do pobre! 


João de Deus, in 'Ramo de Flores', 1869
 
Ramo de flores é uma coletânea de poesias líricas, de João de Deus (1830 – 1896), onde sobressai a temática amorosa ("Sede de amor", "Enlevo", "Adeus", "Saudade"), centrada no motivo da mulher sedutora ("Sempre!", "Atração", "O seu nome"). Do ponto de vista formal, as composições primam pela musicalidade, frequentemente associada ao uso das formas métricas e estróficas tradicionais (vejam-se, a título de exemplo, os efeitos do uso do verso tetrassílabo em "Simpatia" ou "Saudade"). O volume contém apreciações críticas à coletânea Flores do Campo, assinadas por Alexandre da Conceição, Luciano Cordeiro, Guiomar Torrezão e Cândido de Figueiredo. (daqui)
 
 
João de Deus in 'O Ocidente', 1878 


João de Deus (1830-1896)

João de Deus de Nogueira Ramos, nascido em São Bartolomeu de Messines no Algarve, ingressou no Seminário de Coimbra, mas a falta de vocação eclesiástica levou-o a cursar Direito. Sem gosto particular pela advocacia tornar-se-ia, por vocação, um ilustre poeta lírico.
João de Deus é autor dos poemas publicados nas coletâneas «Flores do Campo» (1868), «Ramo de Flores» (1869), «Despedidas de Verão» (1880) e «Campo de Flores» (1893).
Viria, porém, a alcançar extraordinária popularidade como pedagogo, pelo seu envolvimento nas campanhas de alfabetização, criando um inovador método de ensino da leitura às crianças, assente na Cartilha Maternal, de sua autoria (1876), aprovado, dois anos depois, como o método nacional de aprendizagem da leitura e da escrita da língua portuguesa.
Foi inumado no Panteão Nacional, em 1966, depois de, no ano da sua morte, os seus restos mortais terem sido depositados na capela do batistério do Mosteiro dos Jerónimos. (daqui)
 

domingo, 26 de março de 2023

"Olhamo-nos nos olhos" - Poema de José Luís Peixoto



Ilustração de Eva Vázquez
 
 
 
  Olhamo-nos nos olhos


Olhamo-nos nos olhos pela internet.

Eu transmito-te este domingo à tarde,
a voz do vizinho através da parede.

Tu transmites-me a distância que existe
depois do que consigo ver pela janela.

Durante a noite mudou a hora e, no entanto,
continuamos no tempo de ontem.

Como é raro este domingo, não podemos
garantir que amanhã seja segunda-feira.

O futuro perdeu-se no calendário, existe
depois do que conseguimos ver pela janela.

O futuro diz alguma coisa através da parede,
mas não entendemos as palavras.

Lavamos as mãos para evitar certas palavras.

E, mesmo assim, neste tempo raro, repara:
tu e eu estamos juntos neste verso.

O poema é como uma casa, tem paredes
e janelas, é habitado pelo presente.

Olhamo-nos nos olhos pela internet,
estamos verdadeiramente aqui.

O poema é como uma casa,
e a casa protege-nos.


José Luís Peixoto, 29 de Março de 2020


sábado, 25 de março de 2023

"Creio nos anjos que andam pelo mundo" - Poema de Natália Correia

 

 John Constable (English Romantic painter, 1776–1837), Salisbury Cathedral and Leadenhall 
from the River Avon, 1820, National Gallery
 

 Creio nos anjos que andam pelo mundo


Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.
 
 
Natália Correia (1923 - 1993), "Sonetos Românticos", 1990
 

  The couple strolling along elm alley are Bishop of Salisbury John Fisher and his wife.  
 

"A fé é a força pela qual um mundo desfeito poderá emergir para a luz."
 

sexta-feira, 24 de março de 2023

"Inconstância" - Poema de Florbela Espanca



Antonio Mancini
(Italian painter, 1852-1930), Lost in Thought, c. 1895-1898,
 The Mesdag Collection


Inconstância


Procurei o amor que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava.
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Um sol a apagar-se e outro a acender
Nas brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há de partir também... nem eu sei quando...


Florbela Espanca
 
 
Antonio Mancini, Pensativa, c. 1888 -1890,

"A única coisa que consola os tristes é a tristeza - a alegria irrita-os."
 
Florbela Espanca, in Correspondência
 
 

quinta-feira, 23 de março de 2023

"Mar" - Texto de Al Berto


Claude-Joseph Vernet (French painter, 1714-1789), Seaport by Moonlight, 1771, Louvre Museum
 
 

 Mar


Nunca conseguiu viver longe do mar.

A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias,
de tempestades, de nomes de barcos e de peixes;
de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.

Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos
a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa,
alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.

Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si:
como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos
para suportar a melancólica travessia do mundo.

Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos,
o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre
por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.

Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no "Zanzi-Bar", julgou ouvir o mar
que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não,
o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha,
era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos
e à lassidão embriagante do sol e do vinho.

Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro
no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco:
"onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar"
e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento
coração das leoas em pedra.

Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe
as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher,
acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente
o que ela lhe disse ao separarem-se:

- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.

E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país.
Quando o fez, foi ao encontro do mar. Largou a cidade e os amigos,
a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direção ao sul,
com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido,
em lugar incerto, a meio da sua vida.

Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo,
e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde,
por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo
e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens
e da pobreza do mundo.

Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou.
Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse,
e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.

Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando
o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.

Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens,
tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia
e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo,
que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas. 


Al Berto, in "O Anjo Mudo"
Assírio & Alvim
 
 
Al Berto, "O Anjo Mudo", Assírio & Alvim
 

Poeta e editor português, de nome completo Alberto Raposo Pidwell Tavares, nasceu a 11 de janeiro de 1948, em Coimbra, e faleceu a 13 de junho de 1997, em Lisboa. Tendo vivido até à adolescência em Sines, exilou-se, entre 1967 e 1975, em Bruxelas, dedicando-se, entre outras atividades, ao estudo de Belas-Artes. Publicou o primeiro livro dois anos depois de regressar a Portugal.
Em mais de vinte anos de atividade literária, a expressão poética assumida por Al Berto, o pseudónimo do autor, distingue-se de qualquer outra experiência contemporânea pela agressividade (lexical, metafórica, da construção do discurso) com que responde à disforia que cerca todos os passos do homem num universo que lhe é hostil. Trazendo à memória as experiências poéticas de Michaux ou de Rimbaud, é no próprio sofrimento, na sua violenta exaltação, na capacidade de o tornar insuportavelmente presente (nas imagens de uma cidade putrefacta, na obsidiante recorrência da morte e do mal, sob todas as suas formas) que a palavra encontra o seu poder exorcizante, combatendo o mal com o mal. É neste sentido que Ramos Rosa fala de uma "poesia da violência do mundo e da realidade insuportável": "a opacidade do mal ou a agressividade do mundo é tão intensa que provoca um choque e um desmoronamento geral", mas "à violência desta destruição responde o poeta com uma violenta negatividade que é uma pulsão de liberdade absoluta, que procura por todos os meios o seu espaço vital.", sublinhando ainda a forma como esta espécie de "grito de fragilidade extrema e irredutível do ser humano, do seu desamparado infinito, da sua revolta absoluta e sem esperança", se consubstancia, ao nível do estilo, num ritmo "ofegante, precipitado, como um assalto contínuo feito de palavras tão violentas como instrumentos de guerra" (cf. ROSA, António Ramos - A Parede Azul. Estudos Sobre Poesia e Artes Plásticas, Lisboa, Caminho, 1991, pp. 120-121). No domínio editorial, a sua atividade pautou-se pela isenção e certa ousadia relativamente às políticas comerciais livreiras dominantes.
Inicialmente seguindo uma estética surrealizante de temática erótica, em O Anjo Mudo (1993) funde prosa e poesia, exprime intertextualidades, numa viagem marginal e purificadora. A quase totalidade da sua obra poética encontra-se coligida em O Medo.
Foi galardoado com o Prémio Pen Club de Poesia em 1987. (daqui)
 


 "Four Times of the Day" by Claude-Joseph Vernet

Claude-Joseph Vernet (French painter, 1714-1789), Four Times of the Day : "Morning" , 1757,
Art Gallery of South Australia, Adelaide.

 

“Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos, purifica.”

(Al Berto)

quarta-feira, 22 de março de 2023

"Explicação da Eternidade" - Poema de José Luís Peixoto


Eva Gonzalès (French Impressionist painter, 1849 –1883), Une Loge aux Italiens,
or, Box at the Italian Opera, ca. 1874,
oil on canvas, Musée d'Orsay, Paris 



Explicação da Eternidade


devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.


José Luís Peixoto
, in A Casa, A Escuridão,
Quetzal Editores
 

terça-feira, 21 de março de 2023

"Sete Luas" - Poema de Natália Correia



Édouard Manet
  (French modernist painter, 1832–1883), Portrait of  Eva Gonzalès  
(French Impressionist painter, 1849–1883), 1869–70.
 
 
 
A recusa das imagens evidentes
IV

Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.

Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
À mais longínqua onda do seu canto.

Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.

Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exatidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
Os astros que se olham de perfil.


Natália Correia, Dimensão Encontrada, 1957.
In A rosa do mundo - 2001 poemas para o futuro,
Assírio & Alvim, 2001.
 
 
Rosa do mundo: 2001 poemas para o futuro 
 Org. Manuela Correia | Ed. Assírio e Alvim | 2001
 
 
A antologia Rosa do Mundo: 2001 poemas para o futuro, organizada por Manuela Correia, com direção editorial de Manuel Hermínio Monteiro, publicada em 2001, pela editora Assírio e Alvim, contou com a colaboração de mais de vinte especialistas. Essa antologia, de quase 2000 páginas, apresenta 2001 poemas de autores das mais diferentes culturas, com o objetivo de trazer “poemas escritos em todas as épocas, em todo o mundo. Palavras límpidas e exatas com que cada um dos poetas escolhidos falou, dalgum modo, de futuro”. De facto, é uma antologia riquíssima, que trata do futuro dialogando intensamente (quase 1/3 da antologia é dedicado às tradições orais) com o passado: “não há futuro sem passado, mas também não haveria passado se, na altura em que foi edificado, não fosse já um desejo de futuro”. Um futuro que se abre com diferentes cosmogonias e avança até o ano de 1945. Desse longo movimento temporal, retornamos à criação, ao poder da literatura, dos autores e dos tradutores que puderam (re)criar em português textos da tradição oral e escrita. Não é exagerado dizer que Rosa do Mundo oferece ao leitor um pequeno tesouro da literatura universal. (daqui)
 

domingo, 19 de março de 2023

"Prognóstico" - Poema de A. M. Pires Cabral



Paul Cézanne
(French, 1839–1906), Portrait of Victor Chocquet (French art collector 
and an ardent propagandist of Impressionism, 1821–1891), 1877, 
 


Prognóstico

 
Sou do tempo em que não se corrigiam
dentes defeituosos.
Além disso, perdi praticamente
todos os molares.
Para piorar as coisas,
a TAC acusa um desvio para a esquerda
do septo nasal.
Ainda por cima, um desvio acentuado.
Bonita caveira hei de dar,
não haja dúvida. 


A. M. Pires Cabral
, in
“As têmporas da cinza”
Editora Cotovia


Pierre-Auguste Renoir (French, 1841–1919), Portrait of Victor Chocquet, 1876
 

"As obras de arte são de uma solidão infinita: nada pior do que a crítica para as abordar. Apenas o amor pode captá-las, conservá-las, ser justo em relação a elas." 

Rainer Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta, 1929  

 

 

"Cartas a Um Jovem Poeta" (1929), agora em edição bilingue posfaciada por José Miranda Justo, reúne dez epístolas publicadas postumamente e enviadas ao longo de cinco anos por Rainer Maria Rilke a Franz Xaver Kappus, jovem militar que procurava dar os primeiros passos na poesia. Neste compêndio vital sobre o ofício do poeta, a intensidade lírica e a tocante humildade das suas linhas fundem-se sublimemente com as reflexões em torno da criação poética, dando corpo a uma conduta de vida, norteada pelo rigor e pela integridade. "Cartas a Um Jovem Poeta" perdurarão como uma meditação sobre a posição do poeta no mundo moderno e como uma lição de independência sem concessões, num mundo em que o homem cada vez mais se anula na multidão.

Rainer Maria Rilke (1875-1926) é um dos maiores poetas de língua alemã do século XX. Solitário inveterado, levou uma vida errante e instável, desde os dias de dandismo na sua Praga natal aos périplos pela Rússia, a sua pátria espiritual, pelo Egipto, Itália e Espanha. Travou amizades com alguns dos criadores mais importantes da sua época, em particular, Auguste Rodin, de quem foi secretário. Autor de várias coletâneas de poesia, entre as quais Os Sonetos a Orfeu" (1922) e "As Elegias de Duíno" (1923), correspondência e prosa, a sua magistral obra, tão lírica quanto mística, assumiu contornos de reflexão profunda sobre a procura de transcendência. (daqui)
 
 
Maurice Denis (French painter, decorative artist, and writer, 1870– 1943),  Homage to Cézanne  
(Hommage à Cézanne), 1900. Oil on canvas,  Musée d'Orsay, Paris. 
 
[Hommage à Cézanne est un tableau du peintre français Maurice Denis exécuté en 1900. Cette huile sur toile représente des personnalités du monde de l'art réunis dans la galerie Vollard, à Paris, autour d'une nature morte du peintre Paul Cézanne, "Compotier, Verre et Pommes". 
De gauche à droite, y figurent en effet Odilon Redon, Édouard Vuillard, André Mellerio, Ambroise Vollard, Maurice Denis lui-même, Paul Sérusier, Paul-Élie Ranson, Ker-Xavier Roussel, Pierre Bonnard et enfin Marthe Denis, l'épouse de l'artiste. Le tableau, un portrait de groupe, qui contient aussi un autoportrait, est conservé au musée d'Orsay.] (daqui)


"Há alguma evidência de que a dignidade da arte depende do tamanho do interesse dos que admiram".

Theodor W. Adorno, (Filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor alemão, 1903–1969),