Marie Bracquemond (French Impressionist artist, 1840-1916),
Woman in the Garden, 1877. Private collection.
O Nascimento do Poeta
Ora foi num dia treze
que em seu bíblico lugar de dor
minha mãe deu por completas
as letras de meu teor
Porque para acabar o mundo
era precisa a minha mão
do azul calafetado
caí nas facas do chão
Machucada de nascida,
da minha sofrida região
pus-me a levantar o mapa
em ponto de exclamação
Assim na câmara escura
de cada privada saliência
meus olhos se revelaram
negativos da ausência
Soube que o tempo é uma luva
antissética que o infinito
calça para joeirar
sem contágio o nosso trigo
daí o amor ser o meio
do homem dividido em dois
e a pior metade é estarmos
à espera de sermos depois
Soube que quando a amargura
nos gasta a pintura aparece
a cor que teriam os olhos
de um deus apócrifo se viesse
não refulgente ou teologal
tampouco suspensa espada
mas ocasional como vestir
uma camisa lavada
porque a vida é a ocupação
do único espaço disponível
para o possível amanhã
da nossa véspera impossível
e o sidéreo, adeus mistério
é um queijo de paciência
para a gulodice da terra
(e não perdi a inocência)
Soube coisas que sabê-las
foi eu ir ficando nua
como no apocalipse uma última
pedra vestida de lua
como no fim do mundo um lírico
verme a recomeçá-lo
a beber estrelas e peixes
pelo seu estreito gargalo
Como eu em amorosa
posição de cana ereta
a pescar no indizível
o sinónimo de poeta
Natália Correia,
in "A mosca iluminada", 1972
Marie Bracquemond (French Impressionist artist, 1840-1916), Self-portrait, 1870
«[...] cada poema, por mais elevado, evanescente ou injetado de virulentas ou mesmo fesceninas invetivas, é uma lição de moral. Não da moralidade que expira com a religião que a procriou, mas de uma ética espiritualizada que [...] dá sinais de querer ser objetivada.»
Natália Correia, "Introdução" in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, 1993.
«O livro é como um rio. Tem a sua nascente e a sua foz. E assim como o rio se mistura na vastidão oceânica, funde-se o livro na massa do saber universal. A sua nascente é o autor. A foz, o leitor.»
em Ponta Delgada, em 7.12.1981, dirigida por José de Almeida.
Natália Correia
Natália Correia, poetisa,
ficcionista, autora dramática e ensaísta, nascida em 1923 e falecida em
1993, natural dos Açores, facto que levou a insularidade a tornar-se
uma linha de força presente em todo o seu percurso literário. Realizou
estudos secundários em Lisboa. Figura marcante da cultura e da literatura portuguesas contemporâneas,
Natália Correia distinguiu-se também pela sua atividade política, tendo
exercido, com a mesma irreverência que pauta toda a sua existência, o
cargo de deputada.
Escritora que manteve uma posição de independência
relativamente a modelos e movimentos literários, embora seja, mesmo
aceitando que são poucos os "exemplos que podemos colher na sua poesia
de uma aproximação da sua parte a procedimentos estilísticos típicos dos
surrealistas", frequentemente associada ao Surrealismo,
"pela defesa de um estatuto de altiva insubmissão para o poeta, pela
identificação com as tradições culturais marginalizadas pelos poderes
instituídos ao longo dos tempos" e "pela acentuação da dimensão mágica
da poesia" (MARTINHO, Fernando J. B. - Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de 50, Lisboa,
Colibri, 1996).
A compreensão da literatura como ato de rebeldia e de
insubmissão face a todos os poderes instituídos e institucionalizados
(inclusivamente o literário), nutre, assim, uma expressão poética
imaginativa e sugestiva pelo seu poder de metaforização, impetuosa,
ditirâmbica e cósmica, alimentada pela visceral revolta contra o homem
"funcionário / da sua adiada escória", "bípede" que não sabe que fazer
"de não ser propriamente inseto" (Poesia Completa, Lisboa,
2000, p. 285), rejeitando "nascermos para corda de roupa / íntimas
peças da morte penduradas / a todo o comprimento de puxarmos / a carga
insone de uma vida alheia." (XI de Mátria in op. cit., p.
297).
A busca de uma voz pura e liberta, anterior ou à margem de
conceptualizações redutoras e de acomodações burguesas, resulta num
diálogo intertextual com uma tradição literária que vai da lírica
galego-portuguesa ("sagrada raiz do nosso lirismo"), até ao mergulho,
através da "sofreguidão ôntica do soneto", na arte poética romântica (Sonetos Românticos),
e até ao diálogo intertextual com Camões ou Pessoa, na busca de um
sentido para o devir da nação portuguesa ("Ó Pátria amada minha
misteriosa / que da Europa és a esfinge! És o rebate / de uma última
pedra preciosa / ou és cedo de mais num tempo acre?" ("Urna Áurea I" de Epístola aos Lamitas, in op. cit., p. 428).
"Humanidade poética anarquista" ("Boletim Meteorológico", in op. cit.,
p. 143), a voz de Natália Correia integra a tradição "dos que os
poderes estabelecidos têm tido por heréticos, heterodoxos, feiticeiros"
(MARTINHO, Fernando J. B. - op. cit., p. 75), igualando o poder da protagonista de Comunicação,
"uma mulher a quem chamavam a Feiticeira Cotovia [...] condenada às
chamas por práticas de uma magia maior e estranha a que ela dava o nome
de Poesia" e que, no momento da sua execução, augura que o seu "corpo em
chamas será o rastilho de uma fogueira que consumirá a Lusitânia ano
após ano, geração após geração numa combustão invisível e prolongada
pela Palavra que fulge no ponto onde todos os nomes se reúnem na Luz." (Poesia Completa,
p. 174).
Buscando uma "Poesia em cuja ânfora o mundo / recolhe o pólen
da sua idade de ouro", Natália Correia entende, deste modo, "a poesia
como substância mágica desorbitada da sua funcionalidade primitiva, que o
poeta desespera por restituir à sua natureza orgânica primordial, a fim
de a tornar eficaz na recriação do mundo" (CORREIA, Natália, cit. in
MARTINHO, Fernando J. B., p. 74). Por isso, para Natália Correia, a
palavra, narrativa, dramática ou poética, é, acima de tudo, o principal
agente da revolução, não daquela historicamente datada, mas da revolução
permanente que o sujeito impõe a si mesmo ao "acusar a história de nos
ter escondido que todas as revoluções foram até hoje desnaturados
exercícios da verdadeira" (de Epístola aos Lamitas, in Poesia Completa,
p. 413).
Pela sua ousadia verbal e temática Natália Correia foi
impedida de publicar algumas das suas obras durante o regime
salazarista, como é o caso das peças A Pécora e O Encoberto,
violentas desmistificações de alguns dos mitos nacionais, onde o
lirismo e a sátira se fundem no poder exorcizante da palavra. (Daqui)
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