sexta-feira, 30 de novembro de 2018

"Em Viagem" - Poema de Guerra Junqueiro


Jean-Baptiste Greuze, Head of Young Woman 
(also known as 'Contemplation'), circa 1780-1789




Em Viagem


Desde aquela dor tamanha
Do momento em que parti
Um só prazer me acompanha,
Filha, o de pensar em ti:

Por sobre a negra paisagem
Do meu ermo coração
O luar branco da tua imagem
Veste um benigno clarão.

A tarde, no azul celeste,
Há uma estrela esmorecida,
Que é o beijo que tu me deste
Na hora da despedida.

Beijo tão longo e dolente,
Tão longo e cortado de ais,
Que o meu coração pressente
Que não te torno a ver mais.

Conto no céu estrelado
Lágrimas de oiro sem fim:
É o pranto que tens chorado,
De dia e noite, por mim...

Quando me deito na cama
E vou quase adormecido,
Oiço a tua voz que me chama,
Num suplicante gemido.

Num gemido tão suave,
Tão triste na noite escura,
Que é como uma queixa d'ave
Presa numa sepultura!...

Em sonho, às vezes, meu Deus,
Cuido que vou expirar,
Sem levar nos olhos meus
O teu derradeiro olhar.

E sem extremo conforto
Que eu ness'hora quero ter:
Beijar a fronte do morto
Aquela que o fez viver.

E é esta ideia constante,
É esta ideia sombria
Que me eclipsa, a todo o instante
O sol da alma, a alegria.

Partir!... Partir-se a cadeia
Da vida, Senhor, senhor!
Quando o azul doirado arqueia
Bênçãos ao meu sonho em flor!...

Morrer amanhã talvez!
Morrer!... Endoideço, quando
Me lembra a tua viuvez,
Entre dois berços chorando!..

Morrer, entregar à treva,
Aos vermes e às podridões
O meu coração, que leva
Dentro mais três corações!

É duro, é cruel... No entanto,
Antes da hora final,
Eu quero dizer-te o quanto
Te amei, lírio virginal!

Eu vinha de longe, exangue,
A alma despedaçada,
deixando um rastro de sangue
Nas urzes da minha estrada.

Brancas ilusões mimosas,
Vastas quimeras febris,
Abelhas doirando rosas,
Águias c'roando alcantis.

Oh, desse mundo risonho
Havia apenas ficando
A bruma vaga dum sonho
Que a gente sonha acordado... 

........
 in 'Poesias Dispersas'

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

"Primeira tarde" - Poema de Arthur Rimbaud


Albert Lynch (Parisian painter of German-Peruvian ancestry, 1860–1950),  
"A young beauty", oil on panel.


Primeira tarde


Era bem leve a roupa dela
E um grande ramo muito esperto
Lançava as folhas na janela
Maldosamente, perto, perto.

Quase desnuda, na cadeira,
Cruzavas as mãos, e os pequeninos
Pés esfregava na madeira
Do chão, libertos finos, finos.

— Eu via pálido, indeciso,
Um raiozinho em seu gazeio
Borboletear em seu sorriso
— Mosca na rosa — e no seu seio.

— Beijei-lhe então os tornozelos.
Deu ela um riso inatural
Que se esfolhou em ritornelos,
Um belo riso de cristal.

Depressa, os pés na camisola
Logo escondeu: "Queres parar!"
Primeira audácia que se implora
E o riso finge castigar!

Sinto-lhe os olhos palpitantes
Sob os meus lábios. Sem demora,
Num de seus gestos petulantes,
Volta a cabeça: "Ora, esta agora!..."

"Escuta aqui que vou dizer-te..."
Mas eu lhe aplico junto ao seio
Um beijo enorme, que a diverte
Fazendo-a rir agora em cheio...

— Era bem leve a roupa dela
E um grande ramo muito esperto
Lançava as folhas na janela
Maldosamente, perto, perto.


Arthur Rimbaud

Trad. Ivo Barroso
 
 
Retrato de Arthur Rimbaud por Étienne Carjat (1871/2)

 
Poeta francês, de nome completo Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud, nasceu a 20 de outubro de 1854 em Charleville, nas Ardenas. O pai, soldado tarimbeiro, abandonou a família quando Arthur contava seis anos de idade, pelo que foi educado apenas pela mãe, uma criatura autoritária e profundamente religiosa.
Frequentando a escola de província até aos quinze anos de idade, Rimbaud mostrou-se um aluno de capacidades excecionais mas indomáveis. Partindo da sua Paris natal, conseguiu atingir a Bélgica aos dezasseis, o que lhe valeu escolta policial até casa.
Publicou nesse ano de 1870 o seu primeiro poema e, no seguinte, conhecendo Verlaine, desencaminhou-o da sua condição de homem de família, frustrado no absinto, e juntos chegaram a Londres, para dar início a uma vida de álcool e drogas. Publicou o seu primeiro livro, Le Bâteau Ivre em 1871.
Os hábitos pouco higiénicos de Verlaine desencantaram Rimbaud, especialmente quando o seu amante explodiu numa crise de ciúmes, e o alvejou num pulso. O episódio acabou com uma estadia de Verlaine na prisão belga e o regresso de Rimbaud ao abrigo da quinta familiar. Em 1873 apareceu um dos seus livros mais famosos, a coletânea de poemas intitulada Une Saison En Enfer, em que o autor descia aos infernos quase ao estilo de Dante. Em Adeus, o último trecho do livro, resume a tragédia de alguém que quisera descobrir uma poesia nova ao cultivar as sensações, e apenas obtivera um caos de imagens.
Em 1874 partiu de novo para Londres, e na Biblioteca Nacional Britânica foi-lhe interdita a leitura das obras de Sade, por não ter atingido a maioridade de vinte e um anos.
A partir de 1875 recomeçou a sua vida deambulante, aprendendo uma série de idiomas, como o Alemão, o Italiano, o Grego e o Árabe, entre muitos outros. Trabalhou como professor na Alemanha, estivador no porto de Marselha e, alistando-se no exército holandês, acabou por desertar no arquipélago indonésio.
Passou depois a agente comercial de importações-exportações ao serviço de diversas empresas francesas, dedicando-se a negócios obscuros de honestidade duvidosa que o levaram a destinos tão variados como Java, Chipre, Etiópia e o Egito.
Em 1886 surgiu Illuminations, numa edição realizada por Verlaine. A obra restabeleceu a reputação de Rimbaud como poeta, graças à sua profundidade espiritual, em que o autor demonstrava a sua preferência pelo humano em detrimento do divino.
Em fevereiro de 1891, Rimbaud viu a sua alma de caminhante mutilada, quando em Marselha começou a sentir fortes dores no joelho esquerdo. Foi-lhe diagnosticado um cancro e a perna teve que ser amputada. Após um período de alucinações e transes, Rimbaud acabou por falecer em Marselha a 10 de novembro de 1891. O seu último escrito, Lettre au Directeur des Messageries Maritimes, conta-se entre o melhor que a lucidez do poeta nos soube dar. (Daqui)
 

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

"Preguiça" - Poema de António Correia de Oliveira



Jean-Baptiste Greuze
, Indolence, 1756 (also known as "La Paresseuse Italienne")



Preguiça


Preguiça, inda de peito
Muito custou a criar!
Quase que morreu de fome,
Com preguiça de mamar.

Preguiça, já crescidinha,
Quando por seu pé andava,
Não era andar! mais parecia
Que toda se espreguiçava...

Preguiça foi à lição:
Ler, escrever e contar?
Deixava a memória em casa,
Com preguiça de a levar!

Preguiça, foi confessar-se:
"Fez exame de consciência?"
"Não fiz, meu padre! mas faço-o
Amanhã ... Tenha paciência."

Preguiça aprendeu costura:
Mas, sempre que costurava,
Só para não pôr dedal,
Sempre os seus dedos picava.

A mãe ralhou à Preguiça
Porque se não penteara;
Torna-lhe ela: "Há quantos dias
É que a mãe não lava a cara?"

Preguiça, morta de sono,
Quase de sono morria:
Só por não fechar os olhos,
Quantas noites não dormia!

A Preguiça, muito a custo,
Fez a cama, e se deitou;
Para não mais a fazer,
Nunca mais se levantou.

A Preguiça abria a boca,
Coisa em que ela era mais certa:
Mas depois - p'ra não fechar -
Ficou sempre "Boca-aberta".

A Preguiça e o Desmazelo
Juntaram-se em casamento:
Levando os dois, em bom dote
Uma mancheia de vento.

Preguiça teve dois filhos:
Oh que santa geração!
A mais velha, Dona Fome;
O mais novo, Dom Ladrão.

Quando a Preguiça morrer;
Até o monte maninho,
Até fraguedos da serra
Darão rosas, pão e vinho. 

terça-feira, 27 de novembro de 2018

"A Borboleta" - Poema de Jaime Cortesão


Jan Frederik Pieter Portielje (Dutch, 1829 - 1908),
 The Butterfly, Date unknown 



A Borboleta


Filha da larva que o Inverno hostil
Gelou numa dureza concentrada
Ao aquecer do flavo sol d’abril
Surgiu de forma leve e curva alada.

Íris que voa, aspiração subtil
Da flor que quis ser ave, e transformada
Libra no ar a pétala gentil,
Asa da cor, paleta iridiada,

Poisa tão breve que se um sopro a agita
Ergue-se a bambolina num fulgor...
Aflora os lábios duma margarita.

Abrindo manchas, vai de flor em flor,
Flutua, anseia, embala-se e palpita...
Como um bailado trémulo da cor.


Jaime Cortesão



segunda-feira, 26 de novembro de 2018

"A Rua dos Cataventos" - Soneto XIX de Mário Quintana

Alfred Sisley, Le Pont de Moret, effet d'orage, 1887,
 Musée Malraux, Le Havre, France


XIX


Minha morte nasceu quando eu nasci. 
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequena rua em que vivi.

Já não tem mais aquele jeito antigo
De rir e que, ai de mim, também perdi!
Mas inda agora a estou sentindo aqui,
Grave a boa, a escutar o que lhe digo:

Tu que és minha doce Prometida,
Nem sei quando serão as nossas bodas,
Se hoje mesmo... ou no fim de longa vida...

E as horas lá se vão, loucas ou tristes...
Mas é tão bom, em meio às horas todas,
Pensar em ti... saber que tu existes! 


Mário Quintana,
 in A Rua dos Cataventos, 1940. 


domingo, 25 de novembro de 2018

"Anunciação a Maria" - Poema de Rainer Maria Rilke


Abbott Handerson Thayer, Angel, 1887, oil on canvas.
Smithsonian American Art Museum



Anunciação a Maria


Não foi a aparição de um Anjo (reconhece)
que a assustou. Nem de outros, quando
um raio de sol ou de luar à noite
os refletem no quarto desfilando,
se inquieta ela com a forma que um Anjo
possa ter assumido; mal suspeitando que
esta presença pudesse para o Anjo ser incómoda.
(ah se soubéssemos como ela era pura. Certa vez,
avistando uma gazela a repousar na floresta,
de tal modo a penetrou com o seu olhar que
mesmo sem acasalamento nela se gerou o unicórnio,
a criatura de luz, a pura criatura -).
Que ele entrasse, o Anjo, e com um rosto de adolescente
se debruçasse e a fixasse de tal modo que o olhar dela
e o seu se confundissem, como se de repente lá fora
tudo se esvaziasse, e o que era visto, procurado, levado
por milhões de homens nela se concentrasse: só ela e ele.
Contemplação e contemplado, olhar e prazer de ver,
em nenhum outro lugar a não ser neste - : repara,
é assustador! E ambos se assustaram.

Foi então que o Anjo cantou a sua melodia.


Rainer Maria Rilke
In A vida de Maria
Trad. Yvette K. Centeno


Abbott Handerson Thayer, An Angel, 1893
Milwaukee Art Museum (United States)


Anunciação


Não foi por um Anjo ter entrado (faz essa ideia tua)
que ela se sobressaltou. Tão pouco como outras, quando
um raio de sol ou à noite a lua
nos seus quartos se vão instalando,
se sobressaltam, ela não tinha o hábito de se indignar
à vista da figura que um Anjo assumia;
ela mal sabia que este ali ficar
para os Anjos é laborioso. (Oh, se fosse possível saber
como ela era pura. Não foi uma cerva que, a salvo,
deitada na floresta, dela se apercebeu,
equivocando-se de tal modo que concebeu,
sem sequer ser coberta, o Licorne mais alvo
o animal feito de luz, o mais puro de conceber.)
Não por ele entrar, mas por o Anjo inclinar
para ela, tão de perto, o rosto com que vinha anunciar,
tão jovem; e que de ambos o olhar se entrechocasse
quando um no outro se encontrasse,
como se em volta tudo vazio parecesse
e o que milhões de seres olhavam, faziam, suportavam,
nela se concentrasse: ela e ele apenas ali se encontravam;
Olhar e ser olhado; olhos e deleite para a vista
em mais nenhum lugar senão aquele: repara,
isso sobressalta. E o susto de ambos era coisa prevista.

Então entoou o Anjo a sua melodia clara.


Rainer Maria Rilke
In A vida de Maria, ed. Portugália
Trad. Maria Teresa Dias Furtado


sábado, 24 de novembro de 2018

"A Desejada" - Poema de Rubens Jardim


Francis Cadell, The Embroided Cloak, 1920-29



A Desejada 


Onde está a desejada da minha alma,
a mulher que criou janelas, portas e abismos
e se escondeu de todos os meus caminhos?
Antes que o tempo destrua minha calma

Eu quero me debruçar sobre sua presença.
Ou sobre sua lembrança. Preciso de um prisma
Para celebrar as suas cóleras, as suas cismas.
A desejada da minha alma é uma sentença

Que ficou no avesso controverso do fichário,
é o verso rabiscado em um momento raro,
é a urgência escrita desta brasa imaginária.

Sou o construtor desta mulher lendária
que me habita como botequim ignaro
e me faz louvar até as mágoas mais ordinárias.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

"Poema 20" - Pablo Neruda


Poema 20 


Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Escrever, por exemplo: “A noite está estrelada,
e piscam, azuis, os astros, ao longe”.

O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu a quis, e às vezes ela também me quis.

Nas noites como esta, tive-a entre meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela me desejou, e às vezes eu também a desejava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.

Que importa que o meu amor não pudesse guardá-la?
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
Minha alma não se conforma por havê-la perdido.

Como que para aproximá-la, meu olhar a procura.
O meu coração a procura, e ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós, os de então, já não somos os mesmos.

Já não a desejo, é verdade, mas como a desejei…
Minha voz buscava o vento para tocar seu ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos.

Já não a desejo, é verdade, mas talvez a deseje…
É tão curto o amor, e tão longo o esquecimento…

Porque em noites como esta tive-a entre meus braços,
minha alma não se conforma por tê-la perdido.

Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que eu lhe escrevo.

 (Daqui)
 

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

"Entrega" - Poema de Pedro Homem de Mello





Entrega


Descalço venho dos confins da infância,
Que a minha infância ainda não morreu.
Atrás de mim em face ainda há distância.
Menino Deus, Jesus da minha infância,
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu.

Venho da estranha noite dos poetas,
Noite em que o mundo nunca me entendeu.
Vê, trago as mãos vazias dos poetas.
Menino Deus, amigo dos poetas,
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu.

Feriu-me um dardo, ensanguentei as ruas
Onde o demónio em vão me apareceu.
Porque as estrelas todas eram suas.
Menino, irmão dos que erram pelas ruas,
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu.

Quem te ignorar ignora os que são tristes,
Ó meu irmão Jesus, triste como eu.
Ó meu irmão, menino de olhos tristes,
Nada mais tenho além dos olhos tristes
Tudo o que tenho, e nada tenho, é teu!


Pedro Homem de Mello




Ricardo Ribeiro e Pedro Jóia - Entrega 

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

"Z" - Poema de António Maria Lisboa


François Gérard, Portrait d'une dame assise dans un paysage


Z


As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim. 


in "Ossóptico e Outros Poemas"


domingo, 18 de novembro de 2018

"Bem cedo" - Poema de Wisława Szymborska


Alfred Sisley, Early Snow at Louveciennes, c. 1871-1872



Bem cedo


Ainda durmo,
mas enquanto isso as coisas acontecem.
A janela embranquece,
a escuridão se acinzenta,
o quarto emerge de um espaço indefinido,
listas pálidas e instáveis buscam apoio.
Na fila, sem pressa,
pois isso é uma cerimónia,
amanhecem as superfícies do teto e das paredes,
as formas se destacam
umas das outras,
as da esquerda das da direita.
As distâncias entre os objetos vibram,
as primeiras luzes cintilam
no copo, na maçaneta.
As coisas deixam de ser impressões, já existem,
como o que ontem foi deslocado,
o que caiu no chão
e o que está contido nas molduras.
Apenas os detalhes continuam invisíveis.
Mas atenção, atenção, atenção,
tudo indica que as cores estão retornando
e mesmo a mínima coisa recebe de volta sua matiz,
acompanhada de uma ponta de sombra.
Raramente isso me surpreende, mas deveria.
Normalmente eu acordo, testemunha atrasada,
o milagre finalizado,
o dia definido
e a aurora magistralmente transformada em manhã.

sábado, 17 de novembro de 2018

"Anjo és" - Poema de Almeida Garrett


Marie-Guillemine Benoist, Portrait d'une dame, 1799



Anjo és
 

Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua fronte anuviada
Não vejo a c'roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d'amor.
Teus olhos têm negra a cor,
Cor de noite sem estrela;
A chama é vivaz e é bela,
Mas luz não têm. - Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?

Não respondes - e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!...
Isto que me cai no peito
Que foi?... - Lágrima? - Escaldou-me...
Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De donde?
Em que mistérios se esconde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu ou és mulher? 


Almeida Garrett,
 in 'Folhas Caídas' 



Robbie Williams, Angels


"Tudo passa, só a arte robusta possui a eternidade."

(Théophile Gautier)


quinta-feira, 15 de novembro de 2018

"Perdoa-me" - Poema de Henryk Siewierski



Francis Cadell, Cassis, c. 1914 



 Perdoa-me


Perdoa-me, língua materna,
tu, que me deste à luz,
recebeste tão pouco.

Em vez de ficar do teu lado,
fazer-te os saborosos pratos de poesia,
proteger dos bárbaros,
multiplicar o património,
fui nascer outra vez,
da outra,
e fiquei
longe de casa,
numa luz diferente
das outras estrelas.

Sei que jamais
pretendeste ser a única
a dar-me à luz,
que os meus irmãos
cuidam bem de ti,
que já me perdoaste,
e que guardas
as mais doces palavras
para cada encontro nosso.
Perdoa, perdoa sempre
a teu filho,
nem fiel,
nem pródigo.


Henryk Siewierski


 
Francis Cadell, Venice


O cordão umbilical da língua-mãe
só serve até a fronteira
desse ventre em que ninguém
mais que uma vida aguenta.

Como o corte é inevitável
e a tesoura não falha,
é bom aprender uma outra língua
para não começar tudo de nada.


Henryk Siewierski 


terça-feira, 13 de novembro de 2018

"A umas flores amarelas" - Poema de A. M. Pires Cabral


Abbott Fuller Graves, Poppies, c. 1905-1910

 

A umas flores amarelas


Encontro-as por acaso numa ilharga
sombria do caminho. São amarelas.
Reluzem como um sol que arda na noite.

Estas flores tão densamente de ouro,
eriçadas de estames que parecem
a pelagem dum gato posto à prova,

a mim, que me comovo com igrejas singelas
de preferência a grandes catedrais,

mostram um esplendor totalmente inesperado
neste chão de pedra que ninguém diria
poder florir assim.

Ó flores cujo nome desconheço,
prolongai esse fulgor humilde em cada dia
de que ainda disponho para ver as flores,

antes de as flores virem ter comigo...

in Gaveta do Fundo
 

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

"Os sinos da aldeia" - Poema de Antônio Brasileiro



Francis Cadell, Barcaldine Castle, Argyll, 1928
 


Os sinos da aldeia


São tantos os caminhos desandados
e tantos os amores não havidos —
e a música do mundo nos ouvidos
esboroando-se contra rochedos;
são tantos os segredos não guardados,
tantas as moças tristes nos jardins —
e nós na ponte pênsil sobre nadas
e tudo entardecendo pouco a pouco;
ah, tantos os encontros soterrados
no mais fundo do peito iludido —
tantas as vozes que jamais se calam
e falam e falam e falam e falam e falam!

E os sinos desta aldeia, clangorosos,
chamando-nos, chamando-nos, chamando-nos.


Antônio Brasileiro Borges
, 
Desta Varanda (2011) 



domingo, 11 de novembro de 2018

"Lugares Comuns" - Poema de Ana Luísa Amaral


Valentín Thibon de Libian (1889-1931), Mademoiselle Papillon, c. 1917



Lugares Comuns


Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mais adiante)

Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.

Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora...

E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu

Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber

E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
Como quem diz: That’s it 

e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte as mesmas coisas são


Ana Luísa Amaral

"Fotografia do 11 de Setembro" - Poema de Wisława Szymborska


As torres gémeas incendiaram atrás de um dos marcos emblemáticos de Nova Iorque, o Empire State Building
a 11 de setembro de 2001. Fotografia por Marty Lederhandler, AP
(Daqui)



Fotografia do 11 de Setembro


Pularam dos andares em chamas –
um, dois, alguns outros,
acima, abaixo.
A fotografia os manteve em vida,
e agora os preserva
acima da terra rumo à terra.
Ainda estão completos,
cada um com seu próprio rosto
e sangue bem guardado.
Há tempo suficiente
para cabelos voarem,
para chaves e moedas
caírem dos bolsos.
Permanecem nos domínios do ar,
na esfera de lugares
que acabam de se abrir.
Só posso fazer duas coisas por eles –
descrever este voo
e não acrescentar o último verso.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

"Meus amigos, meus conhecidos, meus afetos e desafetos" - Poema de Walmir Ayala


Christoffer Wilhelm Eckersberg, Rainbow at Sea with some cruising Ships, 1836



Meus amigos, meus conhecidos


Meus amigos, meus conhecidos, meus afetos e desafetos,
meus leitores e detratores, ouçam e atendam:
quando chegar a hora do meu último repouso,
busquem meu corpo onde ele estiver,
na poeira do Rio ou na neve gaúcha,
nalgum Japão antípoda, ou aqui mesmo,
na rua Dr. Luiz Januário, uma rua que
possivelmente já tenha perdido os belos paralelepípedos
em nome do duvidoso progresso.

Busquem meu corpo de carro ou rabecão, de carrinho de mão
ou num simples lençol usado,
e depositem ali, atrás da Igreja da mãe de Nazaré,
naquela terra que o mato insiste em invadir,
e onde não há sinal de diferença de classe ou de sonho,
tão singelas são as lápides.

Deitem-me ali, com toda memória possível que tenham de mim,
lembrem e inventem sobre a minha vida, mas deixem-me ali.

Quero enfrentar a vida eterna com prazer,
o vento e o azul do céu fazendo um toldo móvel sobre o meu leito.

Eu e o silêncio
ouvindo eternamente o mar. 


Walmir Ayala

Rio, 11-08-1990


segunda-feira, 5 de novembro de 2018

"Os Significados" - Poema de Pedro Mexia


Sonia Delaunay, Rhythm Colour no. 1076, 1939



Os Significados 


Não sei como tudo começou: suponho
que havia uma figura que depois
se estilhaçou para formar um puzzle.
Mas se juntarem todas as peças
talvez não haja nenhuma figura, e então
de que origem intacta partiu tudo
o que depois se quebrou? É impossível
fazer estilhaços de estilhaços sem uma
coerência primeira, agora ausente.
Quando todas as peças se juntam
estaremos reduzidos ainda a uma peça
de uma figura maior, ou essa figura
é uma utopia pragmática, instrumental,
que permite algum sentido?
Ó significados, para vós, na infância,
tinha um caderno.


Pedro Mexia, in "Duplo Império"


domingo, 4 de novembro de 2018

"Essa Chuva de Inverno" - Poema de Jayro José Xavier


John French Sloan, Spring Rain, New York, 1912, oil on canvas



Essa Chuva de Inverno


Essa chuva de inverno, que fluía
por entre a verde várzea derramada,
já não flui sua linfa em terra fria,
que quente está do sal de que é salgada.
Aqui eterna é a chuva, e não se adia,
e a mudança das coisas proclamada:
só a terra de fértil não vê dia,
que só a água em mágoa vê mudada.
Aqui, de malogradas esperanças,
vive o povo sem crença em tais mudanças,
no fecundo milagre dessa guerra
— que, estando a Natureza em guerra tanta,
não nos transforma a chuva o pranto em planta,
e mais se chore, é mais salgada a terra!


Jayro José Xavier, in 'Idade de Urânio'