sexta-feira, 29 de abril de 2022

"Divindades Incógnitas" - Poema de Eugenio Montale



Steven DaLuz (born 1953), "Between Worlds", Oil and metal leaf on panel
 
 

Divindades Incógnitas


Dizem
que de divindades terrestres entre nós
se encontram cada vez menos.
Muitas pessoas duvidam
de sua existência nesta terra.

Dizem
que neste mundo ou no de cima existe uma só ou nenhuma;
creem
que os sábios antigos eram todos uns loucos,
escravos de sortilégios se diziam
que algum incógnito
os visitava.

Eu digo
que imortais invisíveis
aos outros ou talvez inconscientes
de seus privilégios,
divindades em jeans e com suas mochilas,
sacerdotisas em gabardine e sandálias,
pitonisas de ar absorto à fumação de um fogo de pinhões,
numinosas visões não irreais, tangíveis,
intocadas,
vi muitas vezes
mas sempre tarde demais se tentava
desmascará-las.

Dizem
que os deuses não descem neste mundo,
que o criador não cai de paraquedas,
que o fundador não funda porque ninguém
jamais o fundou ou fundiu
e que nós não somos mais do que os desastres
de seu nulificante magistério;
contudo
se uma divindade, mesmo de ínfimo grau,
alguma vez me roçou
o arrepio que senti me disse tudo e no entanto
faltava-me reconhecê-la e o não existente
ser se esvanecia.
 
 
(Nobel de Literatura, 1975)
in Poesias


terça-feira, 19 de abril de 2022

"Poema Relativo" - Jorge de Lima

 
Albert Eckhout (c.1610–c.1666), Natureza-morta com Bananas, goiaba e outras frutas,
Museu Nacional da Dinamarca



Poema Relativo



Vem, ó
bem-amada
Junto à minha casa
Tem um regato (até quieto o regato).

Não tem pássaros que pena!

Mas os coqueiros fazem,
Quando o vento passa,
Um barulho que às vezes parece
Bate-bate de asas.

Supõe, ó bem-amada,
Se o vento não sopra,
Podem vir borboletas
À procura das minhas jarras
Onde há flores debruçadas,
Tão debruçadas que parecem escutar.

Todos os homens têm seus crentes,
Ó bem-amada:
os que pregam o amor ao próximo
e os que pregam a morte dele.

Mas tudo é pequeno
E ligeiro no mundo, ó amada.
Só o clamor dos desgraçados
É cada vez mais imenso!

Vem, ó bem-amada.
Junto à minha casa
Tem um regato até manso.
E os teus passos podem ir devagar
Pelos caminhos:
aqui não há a inquietação
de se atravessar o asfalto.

Vem, ó bem-amada,
Porque como te disse
Se não há pássaros no meu parque,
Pode ser, se o vento
Não soprar forte
Que venham borboletas.
Tudo é relativo
E incerto no mundo.
Também tuas sobrancelhas
Parecem asas abertas.


Jorge de Lima
,
Em Bazar, ano 1, n. 4, nov. 1931. 


Albert Eckhout, Natureza-morta com melancia, abacaxi e outras frutas brasileiras.
 
 
"Quando me tornei vegetariano, poupei dois seres, o outro e eu."

Prof° Hermógenes (Natal, 1921 –  Rio de Janeiro, 2015),
Militar, escritor, professor, divulgador do hatha ioga



Albert Eckhout, Natureza-morta com Abacaxi, Mamão e Outras Frutas.

"Ser vegetariano é viver uma vida de paz, saúde e longevidade."

Sócrates (c. 470 a.C. – 399 a.C.), Filósofo da Grécia Antiga

 

 
Busto de Sócrates, cópia romana.


Sócrates, figura emblemática da filosofia, nasceu em Atenas cerca de 470 a. C. e foi considerado, segundo alguns historiadores na esteira de Cícero - que afirmou ter sido Sócrates quem «fez descer a filosofia do céu para a terra e a fez penetrar nos lares e nas praças públicas de Atenas» -, como o responsável pela transição para um novo período da filosofia grega, que se caracteriza pelo abandono das preocupações cosmológicas em favor de uma temática predominantemente antropológica.
Embora esta interpretação seja muito polémica - os temas do discurso socrático não divergem substancialmente das preocupações dos sofistas, que já haviam colocado o homem no centro da reflexão filosófica -, é pacífico reconhecer que se notabilizou pela inflexão que impôs no sentido da problematização ética.
Movido por um ideal essencialmente prático - acreditava que só a troca de ideias através do diálogo direto era relevante -, Sócrates não deixou obra escrita, tendo o seu pensamento sobrevivido graças a Platão, de quem foi mestre. Enquanto personagem central de grande parte das obras platónicas, foi louvado como um pensador que, longe de procurar impor ou defender qualquer sistema - é dele a imortal máxima « sei que nada sei» -, se orientou sobretudo para uma missão pedagógica com o objetivo de levar os concidadãos a «conhecerem-se a si mesmos», libertando-os dos preconceitos que lhes impediam o acesso à virtude, à felicidade e ao verdadeiro saber.
Este tipo de proposta colocou-o em tenaz oposição aos sofistas, cujos desígnios interesseiros e funcionalistas censurava, por colocarem indiscriminadamente o conhecimento ao serviço dos poderosos que lhes podiam pagar aulas de retórica e erística com o único objetivo de melhor defenderem os seus interesses particulares.
O método que desenvolveu visava convencer os interlocutores a rejeitar o saber aparente - «opinião», ou doxa -, desprovido de qualquer fundamento objetivo, com origem no «senso comum». Inquirindo acerca do significado e definição de conceitos como «o bem», «a virtude» ou «a felicidade» - motivo pelo qual Aristóteles o considerou como fundador da filosofia do conceito -, fazia sobressair a incoerência e a inconsistência das crenças que dirigiam as ações daqueles que não refletiam sobre a essência dos valores.
Este método ficou conhecido como «aporético» por se concluir de forma «negativa»: uma vez atingida pelo opositor a autoconsciência da sua profunda ignorância, Sócrates não propunha qualquer solução para os problemas identificados. Dotado de uma fé inquebrantável na realização da razão, acreditava que esse procedimento era suficiente para indicar o caminho do saber genuíno - a episteme.
Assim, classificava a sua filosofia como uma maiêutica (literalmente: «arte de parturejar»), ou seja, como uma forma de «trazer à luz» as almas transviadas por um conhecimento vulgar e irrefletido, cabendo posteriormente a cada um a tarefa de se elevar por si mesmo até à verdade.
No entanto, é preciso referir que a «missão socrática» não tinha por escopo a mera promoção intelectual dos que o ouviam; longe disso, ao admitir como autêntica virtude humana o conhecimento, combatendo a ignorância estava também pugnando pelo aperfeiçoamento moral dos indivíduos - o mal e as condutas injustas são apenas fruto da ignorância e a ética é correlativa à sabedoria.
A acutilância de Sócrates na crítica à sociedade ateniense da altura, dilacerada pela guerra, por uma série de conflitos internos e por uma decadência moral devida em grande parte ao relativismo propagandeado pelos sofistas, levou a que se tornasse uma personagem demasiado incómoda para ser tolerada. Em 399 a. C. foi acusado de corromper os jovens e de impiedade por não acreditar nos deuses da cidade. Enfrentando o processo que lhe moveram com a maior serenidade, recusou o exílio infamante e acabou por ser condenado à morte pela ingestão de cicuta. (Daqui)


Albert Eckhout, Natureza-morta com Abóboras e Melões.

"Os vegetais constituem alimentação suficiente para o estômago e, no entanto, o recheamos com vidas valiosas." 

Séneca (ca. 4 a.C. 65 d. C.), Filósofo estoico e um dos mais célebres advogados,
 escritores e intelectuais do Império Romano
 
 
 
Busto de Séneca, atribuído ao escultor Giuliano Finelli
(1641-1644), Museu do Prado.
 
 
Lucius Annaeus Seneca, o Jovem, filósofo, orador e trágico romano, nasceu em Córdova no ano 4 a. C. e morreu em Roma em 65 d. C.
Era o segundo filho de uma família rica. O pai, Lucius Annaeus Séneca, o Velho, tornou-se famoso em Roma como professor de Retórica.
Séneca foi levado para Roma por uma tia e treinado como orador e educado em filosofia.
A sua saúde tornou-se débil e foi para o Egito, em repouso, para casa da tia, mulher do prefeito, Gaius Galerius.
Regressado a Roma, por volta de 31 d. C., começou a sua carreira como político e advogado.
Em 41 o imperador Cláudio desterrou-o para a Córsega por acusação de adultério com a princesa Lucia Livilla, sobrinha do imperador. Aí estudou ciências naturais e filosofia e escreveu os três tratados intitulados Consolationes. Por influência de Agripina, mulher do imperador, retornou a Roma em 49, foi nomeado pretor em 50, casou com Pompeia Paulina, mulher rica, rodeou-se de um poderoso grupo de amigos e tornou-se tutor do futuro imperador Nero.
A morte de Cláudio, em 54, trouxe Séneca para a ribalta.
O primeiro discurso de Nero, escrito por Séneca, prometia liberdade para o Senado e o fim da influência das mulheres.
Agripina, mãe de Nero, entendia que a sua influência devia continuar, e havia mais inimigos.
Em 59 teve de participar no assassinato de Agripina.
Depois da morte de Burrus, em 62, Séneca sentiu que não poderia continuar. Teve autorização para se retirar e nos últimos anos da sua vida escreveu algumas das suas melhores obras filosóficas.
Em 65, os seus inimigos acusaram-no de ter tomado parte na conspiração de Piso.
Foi-lhe ordenado que se suicidasse.
Fê-lo com toda a dignidade e coragem.
Principais obras filosóficas: Apolocyntosis divi Claudii, Naturales questiones, Consolationes, De ira, De Clementia, De Tranquillitate animi, De vita beata, De constantia sapientis, De otio, De beneficiis, De brevitate vitae. (Daqui)
 
 
Albert Eckhout, Natureza-morta com cocos.


"Que horror é meter entranhas em entranhas, engordar um corpo com outro corpo, viver da morte de seres vivos!" 
 
Pitágoras (c. 570 a.C c. 495 a.C.), Matemático e filósofo grego. 
 
 


Pitágoras, natural de Samos, na Ásia Menor, onde terá nascido nos finais do século VI a. C., emigrou para Crotona, colónia grega no Sul da Itália, e aí fundou uma escola místico-filosófica com preocupações sociopolíticas, cuja influência acabou por dominar a cidade. Atendendo ao carácter hermético da sua doutrina - no interior da escola vigorava uma regra de sigilo que considerava como crime a divulgação dos ensinamentos aos não iniciados, pelo que não existiam quaisquer escritos -, assim como à aura de profeta prodigioso que acabou por o envolver, são pouco fidedignos os relatos que dele nos chegaram, além de se tornar muito difícil distinguir o que é genuinamente de Pitágoras do que foi introduzido pelos seus discípulos.
Contrariamente aos pensadores milésios, não se dedicou a especulações sobre o arkê - princípio material das coisas -, procurando sobretudo aceder ao conhecimento das estruturas formais que regem o mundo, que se podem sumariar em três grandes vertentes: harmonia matemática, doutrina dos números e dualismo cosmológico essencial.
Com base na redução da harmonia da escala musical a razões matemáticas, inferiu que todo o Universo seria harmonia e número, criando a teoria da harmonia das esferas (o Cosmos é regido por relações matemáticas). Considerava que as coisas eram números, que os corpos eram constituídos por pontos e que os números que representavam as quantidades desses pontos lhes definiam as propriedades. Acreditou ainda que o próprio número, agente de todas as modificações, estaria na origem do dualismo Limite/Ilimitado, que representava o início do processo cosmogónico (implantação do princípio masculino do Limite no seio do Ilimitado circundante, feminino, análoga à fecundação ou deposição de uma semente no solo).
Do interesse pela matemática resultaram alguns avanços científicos, sobretudo nas áreas da geometria e da aritmética (dos quais o Teorema de Pitágoras será o mais famoso).
No que diz respeito a crenças, acreditou na imortalidade e transmigração das almas, tal como no parentesco de todos os seres vivos, além de se ter dedicado à enunciação de uma série de regras éticas e religiosas que deveriam presidir à ação dos seus discípulos.
Segundo alguns testemunhos, teria sido o primeiro a usar as palavras «cosmos» e «filosofia» na aceção atual.
Apesar de a intervenção política de Pitágoras em Crotona ter sido de curta duração - os habitantes cedo se rebelaram contra o governo que instaurara -, a escola que fundou acabou por florescer e já na altura da sua morte, que deverá ter ocorrido próximo do ano de 480 a. C., se encontravam comunidades pitagóricas espalhadas por toda a Grécia, difundindo e aprofundando o pensamento do mestre, tendo contribuído dessa forma para que durante vários séculos ele fosse fonte de inspiração para muitos dos grandes nomes da filosofia. (Daqui)

 
Albert Eckhout, Natureza-morta com mandioca.

 
"Por mim discerni uma certa sublimidade na disciplina de Pitágoras, e como uma certa sabedoria secreta capacitou-o a saber, não apenas quem ele era a si mesmo, mas também o que ele tinha sido; e eu vi que ele se aproximou dos altares em estado de pureza, e não permitia que a sua barriga fosse profanada pelo partilhar da carne de animais; e que ele manteve o seu corpo puro de todas as peças de roupa tecidas de refugo de animais mortos; e que ele foi o primeiro da humanidade a conter a sua própria língua, inventando uma disciplina de silêncio descrito na frase proverbial, 'Um boi senta-se sobre ela.' Eu também vi que o seu sistema filosófico era em outros aspetos oracular e verdadeiro. Então corri a abraçar os seus sábios ensinamentos..."
 
 Apolónio de Tiana (15 d.C. – c. 100 d.C.), Filósofo neopitagórico e professor de origem grega. 
 
 
Estátua de Apolónio de Tiana de autoria de Barthélémy de Mélo 
 no Parque dos Filósofos, Versalhes.
 


Apolónio de Tiana, filósofo neopitagórico, nasceu no início do século I, no reinado de Augusto, em Tiana, cidade da Capadócia. Aos catorze anos foi para Tarso estudar gramática e retórica. O encontro com o filósofo Euxene revelou-lhe o pitagorismo. Absolutamente convicto da verdade desta doutrina, deixa o seu mestre, cuja conduta lhe parecia desadequada da teoria. Começa então um processo ascético muito austero, durante o qual empreendeu múltiplas viagens em busca das fontes do pitagorismo: Babilónia, Cáucaso, Índia, Etiópia, Egito, Grécia e Itália.
Este contemporâneo de Cristo foi venerado como um deus descido à Terra, um contraponto pagão ao cristianismo. Os habitantes da sua cidade natal chegaram mesmo a erguer-lhe um templo.
Não chegou aos nossos dias qualquer obra de Apolónio; o que sabemos dele é-nos dado quase na totalidade pelo seu biógrafo Filóstrato.
Apolónio pretendia encontrar a tradição universal original, transmitida de mestre a discípulo desde o início dos tempos, procurando reformar o culto dos seus contemporâneos, que lhe parecia demasiado rudimentar. Opõe-se por exemplo aos sacrifícios; a divindade suprema, diz Apolónio, não necessita de nada. Num espírito verdadeiramente universal, de influência pitagórica, considera a Terra inteira como uma só pátria, na qual os homens devem partilhar os bens oferecidos pela natureza. (Daqui)
 

sábado, 9 de abril de 2022

"Ao longo de uma praia um triste dia" - Soneto de Domingos dos Reis Quita


 
XXXIII
 

Ao longo de uma praia um triste dia,
Já quando a luz do sol se desmaiava,
O saudoso Alcino caminhava
Com seus cuidados só por companhia.

Os olhos pelas águas estendia,
Porque alívio a seu mal nelas buscava,
E entre os tristes suspiros que exalava,
Em lágrimas banhado assim dizia:

Os suspiros, as lágrimas que choro
Levai, ondas, levai, ligeiro vento,
Para onde me levastes quem adoro.

Oh, se podeis ter dó do meu tormento,
Que me torneis o bem, só vos imploro,
Que pusestes em longo afastamento.


 
 
Obras Completas de Domingos dos Reis Quita, 
o Alcino Micénio da Arcádia Lusitana 
 

Reis Quita, poeta português nascido em 1728, em Lisboa, e falecido em 1770. Cresceu no seio de uma família humilde e teve, por conseguinte, de valer-se, desde muito novo, do ofício de cabeleireiro, que era na época relativamente bem cotado. Brilhante exemplo de autodidatismo, aprendeu latim, espanhol, italiano e francês.

Munido de diversos contactos com personalidades de categoria, o poeta foi eleito sócio da Arcádia Lusitana, onde adotou o nome de Alcino Micénio, e promovido a bibliotecário do conde de S. Lourenço. Os auspícios deste protetor não foram, todavia, duradouros, uma vez que o conde de S. Lourenço acabou por ser preso às ordens de Pombal, tendo ficado Quita privado dos parcos bens que possuía. Após o terramoto de 1755, caiu na extrema miséria. Foi no fim da vida protegido por Dona Teresa Teodora de Aloim, que ele muitas vezes cantou em ternos idílios e éclogas, atribuindo-lhe o pseudónimo de Tirceia: (...) Oh! Pastora mais firme do que os montes! Mais amante, mais terna do que as rolas! Mais perfeita, mais cândida e formosa Que a pura neve, que a vermelha rosa!(...)

O árcade acabou por morrer de tuberculose com 42 anos. Quita dedicou-se à tragédia, deixando-nos quatro exemplares do género (Hermíone, Astarto, Mégara e Castro), mas foi sobretudo no drama pastoril que o seu génio se evidenciou, através de um bucolismo saudoso e inconsolável. Sujeitou-se inteiramente ao convencionalismo arcádico, revelando, no entanto, um certo sabor romântico nos seus poemas. Através da sua poesia amorosa, de frequentes laivos petrarquistas e lirismo-subjetivo-objetivo, perpassa certa nota de amargura e desilusão - realidades provenientes do amor dedicado a Tirceia que ele viu solteira, viúva e casada pela segunda vez sem promessas de felicidade em comum. Recuperámos, pelos seus versos, este infeliz amor que assistiu a diversas juras quebradas, ao ciúme, à ansiedade de um encontro ou à dor da separação.

Os seus idílios e éclogas descrevem-nos belas cenas da vida amorosa de zagalas e pastoras, articuladas com os prazeres da vida rústica. Por outro lado, os seus sonetos apontam para temas como o amor platónico e a mutabilidade da Natureza em contraste com os seus sentimentos tristes imutáveis. (Daqui)
 

João Marques de Oliveira, Praia de banhos, Póvoa de Varzim, 1884


"A voz do mar é sedutora; nunca cessa, sussurrando, clamando, murmurando, convidando a alma a vaguear por um feitiço em abismos de solidão; se perder em labirintos de contemplação interior. A voz do mar fala com a alma. O toque do mar é sensual, envolvendo o corpo suavemente, num abraço apertado!" - Kate Chopin (1851–1904), em "The Awakening" (1899).

quinta-feira, 7 de abril de 2022

"Dedicatória" - Poema de Guerra Junqueiro


Franz Stuck (1863-1928), Sounds of Spring, 1910, Private Collection (Symbolism)


 
Dedicatória

(Introdução a «A Musa em Férias»)


Recordam-se vocês do bom tempo d'outrora,
Dum tempo que passou e que não volta mais,
Quando íamos a rir pela existência fora
Alegres como em Junho os bandos dos pardais?
C'roava-nos a fronte um diadema d'aurora,
E o nosso coração vestido de esplendor
Era um divino Abril radiante, onde as abelhas
Vinham sugar o mel na balsamina em flor.
Que doiradas canções nossas bocas vermelhas
Não lançaram então perdidas pelo ar!...
Mil quimeras de glória e mil sonhos dispersos,
Canções feitas sem versos,
E que nós nunca mais havemos de cantar!
Nunca mais! nunca mais! Os sonhos e as esp'ranças
São áureos colibris das regiões da alvorada,
Que buscam para ninho os peitos das crianças.
E quando a neve cai já sobre a nossa estrada,
E quando o Inverno chega à nossa alma, então
Os pobres colibris, coitados, sentem frio,
E deixam-nos a nós o coração vazio,
Para fazer o ninho em outro coração.
Meus amigos, a vida é um Sol que chega ao cúmulo
Quando cantam em nós essas canções celestes;
A sua aurora é o berço, e o seu ocaso é o túmulo
Ergue-se entre os rosais e expira entre os ciprestes.
Por isso, quando o Sol da vida já declina,
Mostrando-nos ao longe as sombras do poente,
É-nos doce parar na encosta da colina
E volver para trás o nosso olhar plangente,
Para trás, para trás, para os tempos remotos
Tão cheios de canções, tão cheios de embriaguez,
Porque, ai! a juventude é como a flor do lótus,
Que em cem anos floresce apenas uma vez.

E como o noivo triste a quem morreu a amante,
E que ao sepulcro vai com suas mãos piedosas
Sobre um amor eterno — o amor dum só instante —
Deixar uma saudade e uma c'roa de rosas;
Assim, amigos meus, eu vou sobre um tesouro,
Sobre o estreito caixão, pequenino, infantil,
Da nossa mocidade, — a cotovia d'ouro
Que nasceu e morreu numa manhã d'Abril! —
Desprender, desfolhar estas canções sem nexo,
Estas pobres canções, tão simples, tão banais,
Mas onde existe ainda um pálido reflexo
Do tempo que passou, e que não volta mais.


Guerra Junqueiro
,
in A Musa em Férias (1879)
 
 

[A Musa em Férias é um volume de poesias de Guerra Junqueiro, subintitulado Idílios e Sátiras, de 1879. No poema inicial, "A Musa", o autor aponta por antonomásia os atributos da sua poesia: é "reta como a justiça", "detesta os velhos pedantes, / ama o justo, o belo e o nu"; "vai neste caminho escuro / lutando, cantando e rindo, / senta-se junto ao Futuro". Nestes versos resumem-se as orientações temáticas das composições, distribuídas por três partes - "As crianças", "À sombra das árvores", "Combates" -, que aduzem à componente de crítica social uma forte intenção progressista.] (daqui)
 
 
Franz Stuck, Landscape with storm, 1920, Private Collection (Symbolism)


Jugendstil

O termo Jugendstil designa um movimento cultural alemão, com expressão fundamentalmente no campo das artes plásticas, formado em 1880, em Munique, desenvolvendo-se em simultâneo com os estilos congéneres da Arte Nova e do Modern-Style (o primeiro com significativa representação em França e o segundo surgido em Inglaterra).
O seu nome derivou da revista de Munique "Jugend" (mocidade) que era publicada, desde 1896, por Georg Hirth, traduz alguns dos princípios do movimento como o seu carácter inovador e jovem.
Procurando antes de mais estabelecer o corte com o passado imediato, dominado pelo estilo Guilhermino e pelos revivalismos historicistas de final de oitocentos, o Jugensdtil posicionou-se como uma corrente revolucionária pela vontade de mudar não só as formas mas os meios produtivos e a própria cultura alemã, cada vez mais uniformizada e mecanizada. A sua inspiração no movimento coevo da Arte Nova francesa, revelou-se na recuperação marcadamente decorativa, ainda que estilizada, do carácter formalista e exuberante da gramática curva do barroco e da decoração vegetal do romantismo.
A origem ideológica do movimento remonta ao trabalho teórico e filosófico do inglês John Ruskin (1819-1900). Em termos formais, a influência mais direta veio de Paul Gauguin, dos Nabis e de outros pintores simbolistas bem como das formas expressivas e sinuosas de Van Gogh e de Georges Seurat.
O Jugendstil apresentou duas tendências principais, com desenvolvimentos geográficos específicos. Uma delas, que era também conhecida por Secessão, encontrava-se sediada em Munique e surgiu em 1882, sendo pioneira na introdução das formas Arte Nova na Alemanha. Seguiu-se o grupo de Berlim, formado em 1899, tendo como presidente Mac Liebermann.
Tal como os movimentos congéneres da Arte Nova e do Modern Style, o Jugendstil encontra as suas mais interessantes manifestações no campo da arquitetura, das artes aplicadas (mobiliário, joalharia e vidros) e das artes gráficas (gravura e ilustração).
Franz von Stuck foi o mais notável pintor deste movimento (conhecido pelos seus retratos eróticos de mulheres), destacando-se ainda o trabalho do pintor Otto Eckmann.
Na arquitetura distinguem-se o arquiteto August Endell, que trabalhou em Munique, Bruno Taut, pioneiro no uso de grandes planos envidraçados, e o belga Henry van de Velde, autor do teatro do Werkbund.
A colónia de artistas de Darmstadt, formada de 1899, reuniu alguns dos principais artistas deste movimento e possibilitou a realização da primeira Gesamtkunstwerk (obra de arte total), que incluía o planeamento urbano, a arquitetura, a escultura, a pintura e as artes aplicadas.
O Jugendstil representa a mais significativa contribuição dos artistas alemães para a consolidação e o desenvolvimento das chamadas artes aplicadas (ou seja, daquilo que posteriormente se designou por Design), na transição do século XIX para o período modernista.
No entanto, um aspeto menos positivo e que terá determinado por parte da historiografia da arte uma apreciação negativa deste período foi a gradual transformação das suas propostas formais e estéticas num novo academismo fácil e superficial, que rapidamente caiu num barroquismo formalista que acompanhava a produção de banais objetos industriais.
O grupo desfez-se em 1925, no entanto, o Jugendstil apresentaria reprecussões importantes no desenvolvimento do futuro movimento expressionista do Die Brücke. (Daqui)
 

terça-feira, 5 de abril de 2022

"A Matança" - Poema de A. M. Pires Cabral


John Steuart Curry (American painter, 1897-1946) The Stockman, 1929, 
Whitney Museum of American Art, New York (Regionalism)


 
A Matança
 
 
Não penses
que a carne apenas é aquela oca
lívida carcaça
em imóvel galope alucinado,
embarrada numa trave da adega.

Não penses
que o milagre anual da salgadeira
vem sem morte e sem trabalhos. Não:

Contar-te-ei
que primeiro atam o porco em sua loja
com uma corda em torno do focinho
e o arrastam à força para o ar lavado e frio.

Contar-te-ei
que o porco luta e resiste: ora sentado
sobre os quartos traseiros (os futuros presuntos),
ora comicamente no solo as quatro patas
fincando com bravura se defende
da mal-agourada violação. Por fim, cedendo,
colocam-no, ainda contrafeito,
entre roncos, bufos e sacões,
no banco, deitado sobre o lado,
por forma a expor o vulnerável,
comestível coração.

Contar-te-ei
que quando a faca penetra nas entranhas,
qual punhal vingador de antiga fome,
o grito é tal, tão desolado e aflito,
tão humano, tão digno de compaixão,
tão de criatura insultada e indefesa -
que tenho de tapar a mãos ambas os ouvidos
e recuar para os fundos da casa,
onde o rumor mal chegue. Ainda assim,
a voz implorativa é uma cascata,
uma cascata lenta e descendente,
em que o animal se esvai.
Quando calado - o sangue
jorrando impetuoso no alguidar -
é sinal que
                               o porco é morto:
                                                       viva o porco! 


A. M. Pires Cabral
,
 in Algures a Nordeste (poesia, 1974). Catálogo de Feios, Simples e Humildes.  
Macedo de Cavaleiros: Edição de Autor
 
['A Matança' de A. M. Pires Cabral: Poema para reflexão.]
 


A. M. Pires Cabral


António Manuel Pires Cabral, escritor português, nasceu em 1941, em Chacim, Macedo de Cavaleiros. Licenciado em Filologia Germânica pela Universidade de Coimbra, além da atividade docente no ensino secundário, foi responsável pelo pelouro da Cultura na Câmara Municipal de Vila Real.
A sua produção literária abrange os domínios do drama e da ficção, com especial destaque para a poesia que, ressentindo-se inicialmente da sua implantação transmontana, tem uma acentuada tendência para o diálogo intertextual nas últimas publicações. 
Autor de numerosos textos teatrais e antologias, sobretudo escolares, interessa-se principalmente pela problemática do Nordeste português, quer na vertente humana quer na paisagistíca, evocando por vezes motivos ou ambientes neorrealistas.
Em 1983 ganhou o Prémio Literário do Círculo de Leitores, com o romance Sancirilo, e em 2006 o Prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus, Vila Real. (Daqui)
 

"Feliz seria a terra se todos os seres estivessem unidos pelos laços da benevolência e só se alimentassem de alimentos puros, sem derrame de sangue. Os dourados grãos que nascem para todos dariam para alimentar e dar fartura ao mundo." - Sidarta Gautama (Buda)
 
 
 
 
"Se um ser sofre, não pode existir justificativa moral para alguém se recusar a levar esse sofrimento em consideração. Não importa a natureza do ser, o princípio de igualdade requer que seu sofrimento seja considerado igual ao sofrimento semelhante de qualquer outro ser." - Jeremy Bentham
 
 
 

Jeremy Bentham, filósofo inglês, nasceu a 15 de fevereiro de 1748, em Londres, e morreu a 6 de junho de 1832, na mesma cidade. Estudou no Colégio de Westminster e na Universidade de Oxford. Exerceu, durante pouco tempo, advocacia, a qual abandonou, descontente com a injustiça com que aí deparou.
Este filósofo preocupou-se sobretudo com a filosofia do direito e a filosofia moral. Para Bentham, a moral baseia-se na noção de utilidade, segundo a qual uma ação é moralmente boa ou má dependendo de ser útil ou não ao maior número possível de pessoas. O "princípio da utilidade" deve servir para conduzir, tanto o indivíduo em particular como a sociedade em geral, à felicidade, que equivale, no entender de Bentham, ao prazer. Aquele que transgrida ou agrida a felicidade do outro deve ser punido, correspondendo o castigo à aplicação de sofrimento.
O homem só age se tiver nisso um interesse, que, segundo a conceção de Bentham, se liga intimamente aos interesses dos outros homens. As ações humanas voluntárias têm como elemento constitutivo a racionalidade e as ações boas são sempre objeto de prazer, assim como as más são objeto de dor.
Todo o pensamento de Bentham se dirige para a ação prática política visando o bem do homem e tendo como objetivo a reforma do sistema jurídico. (Daqui)










































sexta-feira, 1 de abril de 2022

"Eternidade" - Poema de Pedro Homem de Mello


Robert Zünd (Swiss painter, 1826-1909), Three Crosses along a Country Lane
 


Eternidade 
 
 
A minha eternidade neste mundo
Sejam vinte anos só, depois da morte!
O vento, eles passados, que, enfim, corte
A flor que no jardim plantei tão fundo.

As minhas cartas leia-as quem quiser!
Torne-se público o meu pensamento!
E a terra a que chamei — minha mulher —
A outros dê seu lábio sumarento!

A outros abra as fontes do prazer
E teça o leito em pétalas e lume!
A outros dê seus frutos a comer
E em cada noite a outros dê perfume!

O globo tem dois polos: Ontem e hoje.
Dizemos só: — Meu pai! ou só:— Meu filho!
O resto é baile que não deixa trilho.
Rosto sem carne; fixidez que foge.

Venham beijar-me a campa os que me beijam
Agora, frágeis, frívolos e humanos!
Os que me virem, morto, ainda me vejam
Depois da morte, vivo, ainda vinte anos!

Nuvem subindo, anis que se evapora...
Assim um dia passe a minha vida!
Mas, antes, que uma lágrima sentida
Traga a certeza de que alguém me chora!

Adro! Cabanas! Meu cantar do Norte!
(Negasse eu tudo acreditava em Deus!)
Não peço mais: — Depois da minha morte
Haja vinte anos que ainda sejam meus! 
 in "Bodas Vermelhas", 1947



Pedro Homem de Melo
retratado de Júlio Resende (daqui)


Poeta português, de nome completo Pedro da Cunha Pimentel Homem de Mello, nascido a 6 de setembro de 1904, no Porto, e falecido a 5 de março de 1984, na mesma cidade, pertencente à geração dos poetas presencistas. 
Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, foi professor de Português e de Literatura Portuguesa no ensino técnico. É autor de uma obra poética extensa (cerca de 25 volumes de poesia) que surpreende pela coerência de características métricas, temáticas e retóricas mantidas quase inalteráveis de livro para livro. 
Integrando uma poesia de cunho tradicional, fundada na regularidade rítmica e versificatória, tematiza frequentemente a revolta, o desafio da lei ou da repressão moral, a mitificação do Povo, "numa abordagem complexa que conjuga certo aristocratismo folclórico com a construção de algumas das suas imagens-símbolo (cf. LOPES, Óscar - Entre Fialho e Nemésio II, Lisboa, INCM, 1987, pp. 808-817). 
Para Joaquim Manuel Magalhães, os poemas de Pedro Homem de Mello bifurcam-se em dois grandes grupos: "Um, em que certa realidade da paisagem humana e natural do norte minhoto ao centro litoral irrompe; outro, em que a densidade conflituosa das paixões se prende numa manifestação lírica quase confessional" (cf. MAGALHÃES, Joaquim Manuel - Os Dois Crepúsculos, Lisboa, A Regra do Jogo, 1981, pp.39-40). 
Ao mesmo tempo, a sua poesia, de raiz popular, deixa revelar uma faceta importante de escritor apaixonado pelo folclore português, área de interesse para a qual escreveu vários ensaios e desenvolveu programas de rádio e de televisão.
Foi distinguido com o Prémio Antero de Quental (1940) e o Prémio Nacional de Poesia (1973). A sua obra poética encontra-se compilada em Poesias Escolhidas (1983). Como estudioso do folclore nacional, escreveu A Poesia na Dança e nos Cantares do Povo Português (1941) e Danças de Portugal (s/d). (Daqui)
 
 
Robert Zünd, Clearance in an Oak Forest


"Cada momento da busca é um momento de encontro com Deus e com a Eternidade." 
 
 
 
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