segunda-feira, 30 de outubro de 2017

"Arrojos" - Poema de Cesário Verde


Émile Eisman Semenowsky (1857-1911), Portrait of a Spanish Woman



Arrojos


Se a minha amada um longo olhar me desse 
Dos seus olhos que ferem como espadas, 
Eu domaria o mar que se enfurece 
E escalaria as nuvens rendilhadas. 

Se ela deixasse, extático e suspenso 
Tomar-lhe as mãos «mignonnes» e aquecê-las, 
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso 
Apagaria o lume das estrelas. 

Se aquela que amo mais que a luz do dia, 
Me aniquilasse os males taciturnos, 
O brilho dos meus olhos venceria 
O clarão dos relâmpagos noturnos. 

Se ela quisesse amar, no azul do espaço, 
Casando as suas penas com as minhas, 
Eu desfaria o Sol como desfaço 
As bolas de sabão das criancinhas. 

Se a Laura dos meus loucos desvarios 
Fosse menos soberba e menos fria, 
Eu pararia o curso aos grandes rios 
E a terra sob os pés abalaria. 

Se aquela por quem já não tenho risos 
Me concedesse apenas dois abraços, 
Eu subiria aos róseos paraísos 
E a Lua afogaria nos meus braços. 

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos 
E os lamentos das cítaras estranhas, 
Eu ergueria os vales mais profundos 
E abateria as sólidas montanhas. 

E se aquela visão da fantasia 
Me estreitasse ao peito alvo como arminho, 
Eu nunca, nunca mais me sentaria 
As mesas espelhentas do Martinho. 


in 'O Livro de Cesário Verde'


"O gaio e o papagaio" - Poema de Leonel Neves


O Gaio-comum (Garrulus glandarius) é uma ave da família CorvidaeFotografia  de Marek Szczepanek



O gaio e o papagaio


Não sei quem teve a ideia
de contar a um velho gaio
que outra ave papagueia
e se chama papagaio.

Disse o gaio: «Papa-quê?»
Disse o outro: «Papa-gaio!»
Disse o gaio: «Pois você
diga lá a esse bicho
que, se não muda de nome,
não me escapa, ainda o lixo;

que um gaio tem muita fome,
que sou um papão de um raio,
que este velho gaio o papa,
que sou papa-papagaio.»

Quando isto contaram a
um medroso papagaio,
gaguejou: «Eu... sou... pa... pa...»
e depois teve um desmaio.

Engasgou-se a rir, o gaio,
do desmaio do papagaio.




Papagaio-verdadeiro - Amazona aestiva - conhecido vulgarmente como papagaio-verdadeiro, ajuruetê, papagaio-grego
ajurujurá, curau, papagaio-comum, papagaio-curau, papagaio-de-fronte-azul e trombeteiro, é uma ave da família Psittacidae.
É nativa do Brasil oriental. Fotografia de Jair da Costa Moreira



Papagaio gaio 


Papagaio insensato, 
que te fez assim? 
Que não sabes falar 
brasileiro 
e já sabes latim?

Papagaio insensato, 
ave agreste, do mato, 
que diabo em ti existe, 
verde-gaio, 
que nunca estás triste?

Papagaio do mato, 
se nunca estás triste, 
quem foi que te ensinou, 
por maldade, 
a palavra saudade?

Papagaio triste, 
papagaio gaio, 
quem te fez tão triste 
e tão gaio, 
triste mas verde-gaio?

Papagaio gaio, 
quem te ensinou, 
em mais 
do mato, a repetir, 
papagaio, 
tanto nome feio?

Gaio papagaio, 
gaio, gaio, gaio, 
que repetes tudo... 
Antes fosses 
um pássaro mundo.

Papagaio do mato, 
se nunca estás triste, 
quem foi que te ensinou, 
por maldade, 
a palavra saudade?

Papagaio gaio. 
Gaio, gaio, gaio.




domingo, 29 de outubro de 2017

"Canção de uma sombra" - Poema de Teixeira de Pascoaes


Leon Kroll (1884 -1974), Girl in a Hammock



Canção de uma sombra


Ah! se não fosse a névoa da manhã
E a velhinha janela onde me vou
Debruçar para ouvir a voz das coisas,
Eu não era o que sou.

Se não fosse esta fonte que chorava
E como nós, cantava e que secou...
E este sol que eu comungo, de joelhos,
Eu não era o que sou.

Ah! se não fosse este luar que chama
Os espectros à Vida, e se infiltrou,
Como fluido mágico, em meu ser,
Eu não era o que sou.

E se a estrela da tarde não brilhasse;
E se não fosse o vento que embalou
Meu coração e as nuvens nos seus braços
Eu não era o que sou.

Ah! se não fosse a noite misteriosa
Que meus olhos de sombras povoou
E de vozes sombrias meus ouvidos,
Eu não era o que sou.

Sem esta terra funda e fundo rio
Que ergue as asas e sobe em claro voo;
Sem estes ermos montes e arvoredos
Eu não era o que sou.




sábado, 28 de outubro de 2017

"Eu sabia por ela as estações" - Poema de Helder Macedo


Paul Cézanne (1839 - 1906), Chestnut trees at the Jas de Bouffan, c.1885-1887



Eu sabia por ela as estações


Eu sabia por ela as estações 
os esquilos os corvos as gaivotas. 
Chegada a primavera abria os nós 
em flores precipitadas e carnudas 
de longas redondezas tateantes 
que batiam no vidro da janela. 
Não dava fruto a minha castanheira 
e na verdade não era sequer minha 
ou só seria porque nos olhámos 
cada manhã por mais de trinta anos. 
Mas dava flores e esquilos e gaivotas 
verão outono corvos primavera 
sem contabilidades biológicas 
doutras fertilidades transmissíveis. 
Dava flores como se desse versos 
sem precisar por isso de escrevê-los 
como os amantes se amam num só corpo 
sem ver onde um começa e o outro acaba 
aberta toda em lábios vaginais 
com uterinos longos falos brancos. 
Também este ano floriu no tempo certo. 
Mas o inverno chegou em plenas maias. 
Disseram que a raiz rachou ao meio 
que o centro do seu tronco estava oco 
não percebiam como tinha flores. 
Cortaram membro a membro a minha árvore 
ficou só a raiz e o seu vazio 
e sobre o campo em volta a neve quente 
das suas flores perplexas 
impossíveis.




sexta-feira, 27 de outubro de 2017

"As Crianças" - Poema de António Gomes Leal


H. A. Brendekilde (Danish, 1857–1942), Blowing Bubbles, 1906


As Crianças


Repele alguém do Mestre, brutalmente,
Os louros querubins de rostos finos.
- Mas o sábio Rabi lhes diz, clemente:
«Deixai virem a mim os pequeninos.

Deixai-os vir a mim. Sou o ceifeiro
Que nada perde, e os mundos vem ceifar.
Feliz de quem como estes é rasteiro.
Ai daquele, cruel, que os molestar!»


H. A. Brendekilde, Four girls chatting in front of the village church.


"A criança é alegria como o raio de sol e estímulo como a esperança."


quarta-feira, 25 de outubro de 2017

"Inscrição" - Poema de Luís Filipe Castro Mendes


Émile Bernard (1868-1941), Iron Bridges at Asnières, 1887, oil on canvas


Inscrição


Ama silenciosamente o teu destino. 
Nem pátria nem palavras memoráveis 
farão durar a luz nos teus sentidos: 
alguns objetos que te lembrem, poucos livros 
e versos que sílaba a sílaba transfiguras 
até entardecer cada palavra. 

Teces o teu tremor. E sobre a pedra 
a marca que ficar será de ausência. 


in "Os Amantes Obscuros"


Émile Bernard, Afternoon at Saint-Briac, 1887, Oil on canvas


"Somos o que fazemos, mas somos principalmente o que fazemos para mudar o que somos."



"Que se passa?" - Poema de João Camilo


Pintura de Joseph Lorusso


Que se passa? 


Claro que não, de maneira nenhuma.
Estava sentada ao meu lado, o desejo
agitava-lhe o ventre, ela semicerrava
os olhos. De maneira nenhuma, assim não,
ainda não. Debrucei-me sobre o seu rosto
e beijei-a. Pousei a cabeça no seu peito
e esperei pelas suas mãos. Continuava,
lento, a ir devagar ao encontro do desejo.
Não tinha pressa. Ela apertava-me
contra si silenciosamente, parecia
dormir e repousava o seu corpo como
se a morte ou uma hibernação o tivessem
ocupado. A televisão passava um filme
de John Ford. Ela ergueu-se subitamente,
afastou-me. Que se passa, perguntei-lhe,
surpreendido. Nada, respondeu ela, mas não é
o filme de John Ford que acaba de começar?
Não o quero perder. De acordo, pensei eu.
Levantei-me, fui sentar-me na cadeira do outro
lado da sala. Acendi um cigarro. Lá fora
caíra a noite há muito tempo. Mas quem
tinha vontade de pensar no que se passava
lá fora? Um filme de John Ford, repeti em voz
baixa. Apaguei o cigarro e concentrei-me
na aventura irreal, nas cores magníficas do deserto.


Pintura de Joseph Lorusso


"Existe algo mais importante que a lógica: a imaginação. Se a ideia é boa, atire a lógica pela janela."


(Alfred Hitchcock)


segunda-feira, 23 de outubro de 2017

"Fuga" - Poema de Pedro Homem de Mello

 

 
Pintura de Jesus Helguera
 
 

Fuga 
 
 
O músico procura
Fixar em cada verso
O cântico disperso
Na luz, na água e no vento.

Porém, luz, vento e água
Variam riso e mágoa,
De momento a momento.

E em vão a área dos dedos
Se eleva! Não traduz
Os súbitos segredos
Escondidos no vento,
Nas águas e na luz...
 
 
Pedro Homem de Melo, in "Segredo" 
 
 
 
Galeria de Jesus Helguera  



Jesus Helguera
 
 
"Não se pode ser sábio e amar ao mesmo tempo."
    
(Bob Dylan)
 
 

Jesus Enrique Emilio de la Helguera Espinoza (28 de maio de 1910, Chihuahua, México – 5 de dezembro de 1971, Córdoba, Vera Cruz, México) foi um pintor e ilustrador mexicano, filho de Alvaro García de la Helguera, um imigrante espanhol e de Maria Espinoza Escarzaga. Passou a infância na Cidade do México e mais tarde em Veracruz. Por causa da Revolução Mexicana, sua família deixou o México fixando residência na Espanha, inicialmente em Ciudad Real, depois Madrid, onde estuda na Escola de Artes e Ofícios e, em seguida, na Academia de San Fernando com Marcelino Santamaria, Benedito Manuel e Julio Romero de Torres, entre outros professores.
Com apenas 18 anos, tornou-se professor de artes visuais em Bilbao e trabalhou para revistas como a Estampa.
Casou-se com Julia Gonzalez Llanos, natural de Madrid, que lhe serviu como modelo para muitas de suas pinturas. Tiveram dois filhos.
Forçado a voltar ao estado mexicano de Veracruz, devido à eclosão da Guerra Civil Espanhola e da consequente crise económica, passou a trabalhar na "Cigarrera la Moderna" (uma empresa de tabaco) produzindo calendários. Muitos deles refletem o seu fascínio com a mitologia asteca, o catolicismo e a tão diversa paisagem mexicana. (Daqui)
 
 

domingo, 22 de outubro de 2017

"O passarinho preso" - Poema de Manuel Maria Barbosa du Bocage


Charles Spencelayh (English painter, 1865–1958) 



O passarinho preso


Na gaiola empoleirado,
um mimoso passarinho
trinava brandos queixumes
com saudades do seu ninho.

«Nasci para ser escravo
(carpia o cantor plumoso),
não há ninguém neste mundo,
que seja tão desditoso.

Que é do tempo, que eu passava,
ora descantando amores,
ora brincando nos ares,
ora pousando entre flores?

Mal haja a minha imprudência,
mal haja o visco traidor;
um raio, um raio te abrase,
fraudulento caçador!

Em que pequei? Porventura
fiz-te à seara algum mal?
Encetei, mordi teus frutos,
como o daninho pardal?

Agrestes, incultas plantas
produziam o meu sustento
inútil aos que se prezam
do alto dom do entendimento...

 Do entendimento! Ah malignos!
vós, possuindo a razão,
tendes de vícios sem conto
recheado o coração.

Ah! Se a vossa liberdade
zelosamente guardais,
como sois usurpadores
da liberdade dos mais?

O que em vós é um tesouro
nos outros perde o valor?
destrói- se o jus do oprimido 
pela força do opressor

Não tem por base a justiça
funda-se em nossa fraqueza
a lei, que a vós nos submete,
tiranos da natureza

Em ofensa das deidades
em nosso dano, abusais
da primazia que tendes
entre os outros animais.

Mas, ah triste! Ah malfadado!
Para que me queixo em vão?
Que espero, se contra a força
de nada serve a razão?

Aqui parou de cansado
o volátil carpidor;
eis que vê chegar da caça
o seu bárbaro senhor.

Trazia encostado ao ombro
o arcabuz fatal, e horrendo,
e alguns pássaros no cinto,
uns mortos, outros morrendo.

Das penetrantes feridas
ainda o sangue pingava, 
e do cruento verdugo
as curtas vestes manchava

O preso vendo a tragédia,
coitadinho, estremeceu,
e de susto, e de piedade
quase os sentidos perdeu.

Mas apenas do soçobro
repentino a si tornou,
com os olhos nos seus finados
estas palavras soltou:

«Entendi que dos viventes
eu era o mais infeliz:
que outros têm pior destino
aquele exemplo me diz.

Da minha sorte já agora
queixas não torno a fazer:
antes gaiola que um tiro,
antes penar que morrer».


domingo, 15 de outubro de 2017

"Minha Mãe" - Poema de Casimiro de Abreu


  Arthur John Elsley (English painter, 1860-1952), Good Night, 1914


Minha Mãe


Da pátria distante e saudoso,
Chorando e gemendo meus cantos de dor,
Eu guardo no peito a imagem querida
Do mais verdadeiro, do mais santo amor:
- Minha mãe! -

Nas horas caladas das noites de estio,
Sentado sozinho com a face na mão,
Eu choro e soluço por quem me chamava
O filho querido do seu coração:
- Minha mãe! -

No berço, pendente dos ramos floridos,
Em que eu pequenino feliz dormitava,
Quem é que esse berço com todo o cuidado
cantando cantigas alegres embalava?
- Minha mãe! -

De noite, alta noite, quando eu já dormia,
Sonhando esses sonhos dos anjos dos céus,
Quem é que meus lábios dormentes roçava,
Qual anjo da guarda, qual sopro de Deus?
- Minha mãe! -

Feliz bom filho, que pode contente
Na casa paterna, de noite e de dia,
Sentir as carícias do anjo de amores,
Da estrela brilhante que a vida nos guia:
- Uma mãe! -

Por isso eu agora, na terra do exílio,
Sentado sozinho com a face na mão,
Suspiro e soluço por quem me chamava:
«Oh filho querido do meu coração!»
- Minha mãe! -




Arthur John Elsley, Baby's Bath Time 
 
 
"Um único raio de sol é suficiente para afastar várias sombras."



domingo, 8 de outubro de 2017

"Ave-Maria" - Poema de Fernando Pessoa


Enguerrand Quarton ou Charonton (1410 - 1466), A Coroação da Virgem, 1452-53



AVE-MARIA

À minha mãe


Ave Maria, tão pura,
Virgem nunca maculada
Ouvi a prece tirada
No meu peito da amargura!

Vós que sois cheia de graça,
Escutai minha oração,
Conduzi-me pela mão
Por esta vida que passa!

O Senhor, que é vosso filho
Que seja sempre connosco,
Assim como é convosco
Eternamente o seu brilho!

Bendita sois vós, Maria,
Entre as mulheres da terra;
A vossa alma só encerra
Doce imagem de alegria!

Mais radiante do que a luz
E bendito, oh Santa Mãe,
É o fruto que provém
Do vosso ventre, Jesus!

Gloriosa Santa Maria,
Vós que sois a Mãe de Deus
E que morais lá nos céus,
Velai por mim cada dia!

Rogai por nós pecadores,
Ao vosso filho, Jesus,
Que por nós morreu na cruz
E que sofreu tantas dores!

Orai, agora, oh Mãe querida
E (quando quiser a sorte)
Na hora da nossa morte
Quando nos fugir a vida!

Ave Maria, tão pura,
Virgem nunca maculada,
Ouvi a prece tirada
No meu peito da amargura.




sábado, 7 de outubro de 2017

"As Fadas" - Poema de Antero de Quental


William Henry Margetson (British painter, 1861-1940), 
Cinderella and the Fairy Godmother, Date unknown 



As Fadas  
 
 
As fadas… eu creio nelas!
Umas são moças e belas,
Outras, velhas de pasmar…
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar…

Algumas em fonte fria
Escondem-se, enquanto é dia,
Saem só ao escurecer…
Outras, debaixo da terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder…

O vestir… são tais riquezas,
Que rainhas, nem princesas
Nenhuma assim se vestiu!
Porque as riquezas das fadas
São sabidas, celebradas
Por toda a gente que as viu…

Quando a noite é clara e amena
E a lua vai mais serena,
Qualquer as pode espreitar,
Fazendo roda, ocupadas
Em dobar suas meadas
De ouro e de prata, ao luar.

O luar é os seus amores!
Sentadinhas entre as flores
Ficam-se horas sem fim,
Cantando suas cantigas,
Fiando suas estrigas,
Em roca de oiro e marfim.

Eu sei os nomes de algumas:
Viviana ama as espumas
Das ondas nos areais,
Vive junto ao mar, sozinha,
Mas costuma ser madrinha
Nos batizados reais.

Morgana é muito enganosa;
Às vezes, moça e formosa,
E outras, velha, a rir, a rir…
Ora festiva, ora grave,
E voa como uma ave,
Se a gente lhe quer bulir.

Que direi de Melusina?
De Titânia, a pequenina,
Que dorme sobre um jasmim?
De cem outras, cuja glória
Enche as páginas da história
Dos reinos de el-rei Merlim?

Umas têm mando nos ares;
Outras, na terra, nos mares;
E todas trazem na mão
Aquela vara famosa,
A vara maravilhosa,
A varinha de condão.

O que elas querem, num pronto,
Fez-se ali! parece um conto…
Mesmo de fadas… eu sei!
São condões, que dão à gente
Ou dinheiro reluzente
Ou joias, que nem um rei!

A mais pobre criancinha
Se quis ser sua madrinha,
Uma fada… ai, que feliz!
São palácios, num momento…
Beleza, que é um portento…
Riqueza, que nem se diz…

Ou então, prendas, talento,
Ciência, discernimento,
Graças, chiste, discrição…
Vê-se o pobre inocentinho
Feito um sábio, um adivinho,
Que aos mais sábios vai à mão!

Mas, com tudo isto, as fadas
São muito desconfiadas;
Quem as vê não há de rir,
Querem elas que as respeitem,
E não gostam que as espreitem,
Nem se lhes há de mentir.

Quem as ofende cautela!
A mais risonha, a mais bela,
Torna-se logo tão má,
Tão cruel, tão vingativa!
É inimiga agressiva,
É serpente que ali está!

E têm vinganças terríveis!
Semeiam coisas horríveis,
Que nascem logo no chão…
Línguas de fogo, que estalam!
Sapos com asas, que falam!
Um anão preto! um dragão!

Ou deitam sortes na gente…
O nariz faz-se serpente,
A dar pulos, a crescer…
É-se morcego ou veado…
E anda-se assim encantado,
Enquanto a fada quiser!

Por isso quem por estradas
For, de noite, e vir as fadas
Nos altos, mirando o céu,
Deve com jeito falar-lhes,
Muito cortês e tirar-lhes
Até ao chão o chapéu.

Porque a fortuna da gente
Está às vezes somente
Numa palavra que diz.
Por uma palavra, engraça
Uma fada com quem passa
E torna-o logo feliz.

Quantas vezes já deitado,
Mas sem sono, inda acordado
Me ponho a considerar
Que condão eu pediria,
Se uma fada, um belo dia,
Me quisesse a mim fadar…

O que seria? Um tesoiro?
Um reino? Um vestido de oiro?
Ou um leito de marfim? 
Ou um palácio encantado,
Com seu lago prateado
E com pavões no jardim?

Ou podia, se eu quisesse,
Pedir também que me desse
Um condão, para falar
A língua dos passarinhos,
Que conversam nos seus ninhos…
Ou então, saber voar!

Oh, se esta noite, sonhando,
Alguma fada, engraçando
Comigo (podia ser?)
Me tocasse co’a varinha
E fosse minha madrinha,
Mesmo a dormir, sem a ver…

E que amanhã acordasse
E me achasse… eu sei! me achasse
Feito um príncipe, um emir!…
Até já, imaginando,
Se estão meus olhos fechando…
Deixa-me já, já dormir! 


in "Tesouro Poético da Infância"

"Tesouro Poético da Infância"
é uma antologia poética destinada às crianças, organizada e prefaciada por Antero de Quental. Na "Advertência", onde revela a influência das ideias pedagógicas de João de Deus, Antero afirma ter intentado favorecer "a formação do caráter moral" das crianças, expondo uma conceção da poesia como "ideal percebido instintivamente", "o veículo da doutrina e a linguagem própria das cousas ideais". Entre os textos selecionados, figuram composições de João de Deus, Castilho, Tomás Ribeiro, Gonçalves Crespo, Mendes Leal, Bulhão Pato e o próprio Antero, bem como vários romances populares. (daqui)