domingo, 28 de novembro de 2021

"Lady Bi" - Poema de Haroldo de Campos

 

Gata Lady - Haroldo de Campos
 
 

Lady Bi - 1

 
a gata lady
bi
felina -
mente finge
morder minha
mão com
dentes de fina 
agulha
mas lânguida
a lambe
com sua (cálida)
língua avessa:
pétala rosa - 
choque e 
pedra-pomes


Haroldo de Campos,
em 'Crisantempo: no espaço curvo nasce um'
 São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.
 
 
Haroldo de Campos com a gata Lady Bi em seu escritório.
Foto: Carmen de Arruda Campos (daqui)
 
 
 
Lady Bi - 2


a gata lady
bi (née
bichana)
fixa-me os olhos 
de esmeralda
líquida

seu pelame
- casco-de-tartaruga -
ruivo-ouro e 
negro-pelúcia
contra fundo branco
brilha

e muda
(patas prênseis
segurando o ar)
fala-me -
mudez entrecortada
de arrulhos
- plena -
como um discurso
amoroso 
 
 
Haroldo de Campos,
em 'Crisantempo: no espaço curvo nasce um'
São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.

[Este volume (Crisantempo: no espaço curvo nasce um) reúne a produção dos últimos vinte anos do poeta. O leitor e o interessado em literatura de criação encontrarão aí, não só a mais atual, como a mais abrangente expressão do extraordinário percurso inventivo do poeta que, como poucos, ousou expandir os horizontes da poesia brasileira, quer do ponto de vista da experimentação quanto da tradição, inserindo neles as vozes poéticas das mais significativas culturas humanas. Marco de cinquenta anos de atividade inventiva e inovadora, este livro celebra Haroldo de Campos levando ao leitor a palavra poética, à viva voz de um autor que tem a paixão de pensar e criar.] (daqui)
 

domingo, 21 de novembro de 2021

"A minha filha Violante" - Poema de Eugénio de Castro

(Eylau and Jeanine Lepic), 1871
 


A minha filha Violante 

 
Acorda cedo como os passarinhos,
vem logo direita à minha cama;
sacode-me com jeito, por mim chama
e abre-me os olhos com os seus dedinhos.

Estremunhado, zango-me. – “Beijinhos,
não quer beijinhos?” com voz d’ouro exclama.
Da minha ira empalidece a chama,
e, acarinhando-a, pago os seus carinhos.

Senhor! que amor de filha tu me deste!
Dá-lhe um caminho brando e sem abrolhos,
dá-lhe a Virtude por amparo e guia.

E destina também, ó Pai celeste,
que a mão com que ela agora me abre os olhos
seja a que há de fechar-mos algum dia!

Eugénio de Castro

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

"Louvor e Simplificação de Mário Cesariny de Vasconcelos" - Poema de Alexandre O’Neill


 
Alexandre O'Neill (1924-1986),  A linguagem, 1948,  
Museu Nacional de Arte Contemporânea



Louvor e Simplificação de Mário Cesariny de Vasconcelos



Sobreviveste, Mário (como assim!) de Vasconcelos,
aos grilos da paróquia.
Entre os blocos de prédios cada vez mais enevoados,
conténs os teus sapatos, como outrora.

Não houve pão-de-ló, nem malvasia,
naquele piquenique no Rossio.
Houve um anão. (Os burros da Malveira
ficaram retidos na fronteira.)

E o anão, que era um trotador,
fez questão de saltar-te para o ombro.
Com a voz grilada pôs-se a gritar «É a Hora!»
Oh, Mário, e tu mandaste-o embora!

Murmurações, cricris acompanharam
o teu gesto nada paternal.
Finalmente os burros liberaram.
Num chouto desesperado aqui chegaram
e estão a comer o teu bornal.

Mário, faz mal? 
 

Alexandre O'Neill
Poesias Completas & Dispersos
(edição de Maria Antónia Oliveira) 
 
 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

"Mal penso, logo existo" - Poema de Ana Luísa Amaral


 
François-Marie Firmin-Girard (1838-1921), Tarde de Domingo, s/d


Mal penso, logo existo


Penso que sim, que o verso
desejado é o que mais resiste
ao vendaval da letra, que
a dor mais rente a tudo
a que se insiste e vive
no bolso do poeta.

Penso que sim, que ao pôr
a mão no bolso, de lá tirando
a dor em vez de rebuçado,
berlinde de mil cores
ou minúsculo
fósforo quebrado,

esse dirá também: Penso que sim.
Que as coisas se repetem
infinitas em círculo de lua,
que a minha dor, não sendo
igual à tua, é rente
a bolso igual.

Assim existo. Porque penso
mal, já que pensar que sim
em negação
é forma de negar
inevitável conta de hospital
após doença longa em quarto
a flores.

[E todavia, às vezes,
bem no fundo
do bolso:
cristalizado mundo.
Minúsculo berlinde
a cores.]


Ana Luísa Amaral
,
Inversos - Poesia 1990-2010,
Dom Quixote, 2010


 Ana Luísa Amaral (daqui) 
 

Ana Luísa Amaral, poetisa portuguesa, nascida em 1956, em Lisboa, doutorou-se em literatura norte-americana, defendendo uma tese sobre Emily Dickinson.
A partir de 1990, ano de publicação do seu primeiro livro de poemas Minha Senhora de quê, a autora não mais deixou "escapar" a inspiração, legando-nos mais cinco títulos de poesia: Coisas de Partir (1993), Epopeias (1994), E Muitos Os Caminhos (1995), Às Vezes o Paraíso (1998) e Imagens (2000). Mais tarde, publicou o livro de contos infantis Gaspar, o Dedo Diferente e Outras Histórias.
Escrevendo, ela própria em espanhol, a sua obra encontra-se traduzida nas línguas castelhana, inglesa, francesa, alemã e búlgara.
Membro da Direção da Associação Portuguesa de Literatura Comparada, colaboradora da revista literária Colóquio-Letras e docente das cadeiras de Literatura e Cultura Inglesa e de Literatura Americana, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, publica com regularidade ensaios sobre poesia moderna e contemporânea americana, inglesa e portuguesa.
Daqui)

 

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

"Outono" - Poema de Eugénio de Andrade


Ettore Tito  (Italian artist, 1859–1941), Autumn / Autunno (portrait of Tito's sons), 1914
 
 

Outono 
 
 
O outono vem vindo, chegam melancolias, 
cavam fundo no corpo, 
instalam-se nas fendas; às vezes 
por aí ficam com a chuva 
apodrecendo; 
ou então deixam marcas; as putas, 
difíceis de apagar, de tão negras, 
in 'O Outro Nome da Terra'
 
 
Ettore Tito, Autunno (portrait of Tito's sons), 1914 (detail)
Galleria Nazionale d'Arte Moderna e Contemporanea


"Repara que o outono é mais estação da alma do que da natureza."
 
 Carlos Drummond de Andrade
 Do livro “Fala, Amendoeira

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

"As quatro estações" - Poema de Rui Caeiro


Nicolas Poussin (1594–1665), The Autumn (The Bunch of Grapes Taken from the Promised Land)
L’Automne (La Grappe de raisin rapportée de la Terre promise), 1660-64
 

 
As quatro estações


Vem o Inverno com o seu carrinho do frio
a apertar nas curvas; a Primavera e os seus
paroxismos que não duram muito; o Verão
e os seus langores de ainda menos; e por fim,
mas também pode ser no meio ou no princípio,
lá vens tu, que não falhas nunca, melancólico
e misericordioso Outono, a estenderes-me a taça
de vinho puro que eu bebo lenta e gravemente
com aquela lentidão, aquela gravidade característica
dos que não têm religião nenhuma, ou têm apenas essa. 
 
 
in "Este é o Meu Sangue", pág.20, 
Tea For One, 2012

["Este é o meu sangue" (antologia de poemas inéditos sobre o vinho), em que participam Abel Neves, A. Maria de Jesus, Clara Caldeira, Inês Dias, Jaime Rocha, John Frey, Levi Condinho, Luís Pedroso, Manuel da Silva Ramos, Manuel de Freitas, Marta Chaves, Ricardo Álvaro, Rui Azevedo Ribeiro, Rui Caeiro e Vasco Gato. A edição é da Tea For One e o grafismo da Inês Mateus.]

 
 Poussin, The Winter (The Flood) / L’Hiver ou Le Déluge, 1660-1664
 
 
 Poussin, The Spring (The Garden of Eden) / Le Printemps (Le Paradis Terrestre), 1660-1664
 

Poussin, The Summer (Ruth and Boaz) / L’été (Ruth et Boaz), 1660-1664


"O que a natureza nos dá nunca é obsoleto. Porque o que a natureza cria contém eternidade."
(Nobel de Literatura, 1978)
 
 
Isaac Bashevis Singer 
 
 Escritor norte-americano de etnia judaica, Icek-Hersz Zynger nasceu a 14 de julho de 1904, em Leoncin, na Polónia, e faleceu a 24 de julho de 1991. Filho de um rabino, acompanhou a família na sua mudança para Varsóvia, quando contava apenas quatro anos de idade. O pai mantinha a esperança de que Isaac se viesse também a tornar um rabino, pelo que o educou nos preceitos tradicionais judaicos, dando-lhe a ler a lei talmúdica e textos aramaicos.
No ano de 1920 ingressou no Seminário Rabínico Tachkemoni, mas logo abandonou os seus estudos, mudando-se para uma aldeia típica judaica, Bilgorai, onde ganhou o seu sustento dando aulas de Hebraico. Ao fim de três anos regressou a Varsóvia, para junto do irmão, um escritor que o encorajou e lhe deu emprego como revisor de provas no Literarische Bleter, onde era editor. Singer começou então a fazer traduções, versando para o Iídiche autores como Thomas Mann, Knut Hamsun e Erich Maria Remarque.
O seu romance de estreia, Der Sotn In Goray, foi publicado pela primeira vez na Polónia em 1932. Utilizando um estilo que remontava ao das crónicas judaicas medievais, foi escrito originalmente em Iídiche, e contava a história da vinda de um falso messias no século XVII.
Em 1933 passou a trabalhar como editor-associado da publicação Globus e, em 1935, tornou-se correspondente estrangeiro de um jornal diário. Nesse mesmo ano separou-se da família e decidiu emigrar para os Estados Unidos da América, fixando-se em Nova Iorque. Deu início a uma colaboração com o jornal Forverts, impresso nos Estados Unidos em idioma Iídiche. Adotou a cidadania norte-americana em 1947.
Em 1950 publicou Die Familje Moshkat, o seu primeiro romance a ser traduzido para o Inglês. A obra fazia parte de uma trilogia que descrevia a saga de uma família judaica, continuada com os dois volumes Der Hoyf In Forverts (1952-55), versados para a língua inglesa com os títulos The Manor (1967) e The Estate (1969).
Der Kunstnmakher Fun Lublin apareceu em 1960, a que se seguiram, entre outras obras de sucesso, Der Knecht (1962) e Shosha (1978), ainda em Iídiche e, em tradução, When Schliemmel Went To Warsaw and Other Stories (1968), escrito para um público infantil, Enemies, A Love Story (1972, Inimigos, Uma História de Amor) e The Penitent (1983).
Em 1964 foi eleito membro do Instituto Nacional das Artes e Letras norte-americano, tornando-se no único a escrever numa língua estrangeira e, em 1978, foi honrado com o Prémio Nobel da Literatura.
(Daqui)