sexta-feira, 5 de novembro de 2021

"Mal penso, logo existo" - Poema de Ana Luísa Amaral


 
François-Marie Firmin-Girard (1838-1921), Tarde de Domingo, s/d


Mal penso, logo existo


Penso que sim, que o verso
desejado é o que mais resiste
ao vendaval da letra, que
a dor mais rente a tudo
a que se insiste e vive
no bolso do poeta.

Penso que sim, que ao pôr
a mão no bolso, de lá tirando
a dor em vez de rebuçado,
berlinde de mil cores
ou minúsculo
fósforo quebrado,

esse dirá também: Penso que sim.
Que as coisas se repetem
infinitas em círculo de lua,
que a minha dor, não sendo
igual à tua, é rente
a bolso igual.

Assim existo. Porque penso
mal, já que pensar que sim
em negação
é forma de negar
inevitável conta de hospital
após doença longa em quarto
a flores.

[E todavia, às vezes,
bem no fundo
do bolso:
cristalizado mundo.
Minúsculo berlinde
a cores.]


Ana Luísa Amaral
,
Inversos - Poesia 1990-2010,
Dom Quixote, 2010


 Ana Luísa Amaral (daqui) 
 

Ana Luísa Amaral, poetisa portuguesa, nascida em 1956, em Lisboa, doutorou-se em literatura norte-americana, defendendo uma tese sobre Emily Dickinson.
A partir de 1990, ano de publicação do seu primeiro livro de poemas Minha Senhora de quê, a autora não mais deixou "escapar" a inspiração, legando-nos mais cinco títulos de poesia: Coisas de Partir (1993), Epopeias (1994), E Muitos Os Caminhos (1995), Às Vezes o Paraíso (1998) e Imagens (2000). Mais tarde, publicou o livro de contos infantis Gaspar, o Dedo Diferente e Outras Histórias.
Escrevendo, ela própria em espanhol, a sua obra encontra-se traduzida nas línguas castelhana, inglesa, francesa, alemã e búlgara.
Membro da Direção da Associação Portuguesa de Literatura Comparada, colaboradora da revista literária Colóquio-Letras e docente das cadeiras de Literatura e Cultura Inglesa e de Literatura Americana, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, publica com regularidade ensaios sobre poesia moderna e contemporânea americana, inglesa e portuguesa.
Daqui)

 

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