domingo, 17 de novembro de 2019

"Maria Lisboa" - Poema de David Mourão Ferreira


Luís Dourdil, Varinas


Maria Lisboa



É varina, usa chinela,
tem movimentos de gata;
na canastra, a caravela,
no coração, a fragata.

Em vez de corvos no xaile,
gaivotas vêm pousar.
Quando o vento a leva ao baile,
baila no baile com o mar.

É de conchas o vestido,
tem algas na cabeleira,
e nas velas o latido
do motor duma traineira.

Vende sonho e maresia,
tempestades apregoa.
Seu nome próprio: Maria;
seu apelido: Lisboa. 


David Mourão-Ferreira,
In Obra Poética


Mariza - Maria Lisboa

Composição / Music by: David Mourão-Ferreira / Alain Oulman 


sábado, 16 de novembro de 2019

"Retrato de Família" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Carolus-Duran (French painter, 1837–1917), Merrymakers, 1870



Retrato de Família


Este retrato de família
está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
quanto dinheiro ele ganhou.

Nas mãos dos tios não se percebem
as viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa e amarela,
sem memórias da monarquia.

Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranquilo,,
usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.

O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
é um oceano de névoa.

No semicírculo das cadeiras
nota-se certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
mas sem barulho: é um retrato.

Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
outra, sorrindo, se propõe.

Esses estranhos assentados,
meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
numa sala que se abre pouco.

Ficaram traços da família
perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
que um corpo é cheio de surpresas.

A moldura deste retrato
em vão prende suas personagens.
Estão ali voluntariamente,
saberiam -— se preciso —voar.

Poderiam sutilizar-se
no claro-escuro do salão,
ir morar no fundo dos móveis
ou no bolso de velhos coletes.

A casa tem muitas gavetas
e papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
quando a matéria se aborrece?

O retrato não me responde.
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam

os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha ideia de família
viajando através da carne.


Carlos Drummond de Andrade,
'A Rosa do Povo'



domingo, 3 de novembro de 2019

"O Gato Cinzento" - Poema de Cassiano Ricardo


Konstantin Korovin, Black cat on the windowsill, 1902



O Gato Cinzento


Ei-lo, quieto, a cismar, como em grave sigilo,
vendo tudo através a cor verde dos olhos,
onça que não cresceu, hoje é um gato tranquilo.
A sua vida é um “manso lago”, sem escolhos...

Não ama a lua, nem telhado a velho estilo.
De uma rica almofada entre os suaves refolhos,
prefere ronronar, em gracioso cochilo,
vendo tudo através a cor verde dos olhos.

Poderia ser mau, fosforescente espanto,
pequenino terror dos pássaros; no entanto,
se fez um professor de silêncio e virtude.

Gato que sonha assim, se algum dia o entenderdes,
vereis quanto é feliz uma alma que se ilude,
e olha a vida através a cor de uns olhos verdes.


Cassiano Ricardo
In “A Flauta de Pã”, 1917


sexta-feira, 1 de novembro de 2019

"Finados" - Poema de Delminda Silveira


Vasily Perov, Old Parents Visiting the Grave of Their Son, 1874



Finados


Dobram os sinos... Quanta tristeza
Quanta saudade vinda do Além!...
Até parece que a Natureza
De pura mágoa chora também!

Caem dos ares, lá derramadas,
Lágrimas tristes por sobre a terra;
Pérolas d'alma cristalizadas
Enchem o campo, cobrem a terra.

Quem sabe? — almas, que Além partiram,
Neste momento lá chorarão?...
Outras que em vida dores curtiram,
A paz eterna já fruirão?...

Cobrem-se os campos de tantas flores...
Lágrimas correm por tantos lares
Abrem saudades que avivam amores...
Morrem sorrisos, nascem pesares...

E as almas idas pedem aos vivos
Por sobre as campas deixem cair
Dos rosários os lenitivos
Que — Ave-Maria lhes faz sentir!

Aos Céus piedosos todos mandemos
Preces ungidas de fé bendita;
Murcham as flores... mas nós teremos
Nas flores d'alma vida infinita!


2 Novembro de 1925