quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

"Mordaça" - Poema de Sebastião da Gama

 

Júlio Pomar (Artista plástico/pintor português, 1926 —2018), Lusitânia no Bairro Latino 
acrílico sobre tela, 158,5 cm x 154 cm. 
 
[Esta pintura foi uma das sete telas expressamente concebidas para acompanhar uma edição especial do poema Mensagem de Fernando Pessoa (Clássica Editora, 1985), num trabalho que é exemplo do aprofundado diálogo entre o pictórico e o literário que ocupou muita da pintura de Pomar dos anos 80. Ao título do poeta acrescentou-se o do pintor, 7 Histórias Portuguesas. À semelhança de outros retratos que fez de autores do passado, como Edgar Allan Poe, Baudelaire ou Pessoa, aqui as imagens das personagens, criadas segundo o modelo de antigas e baças fotografias, surgem fantasmáticas, desfocadas, raspadas. Nesses outros retratos os rostos dos poetas eram redefinidos por uma graffitagem de cores warholianas, mas aqui as faces são deixadas neutras, e emolduradas pelas pinceladas largas, livres, que regressam à pintura de Pomar nesta década.

Os dois pintores e o escritor precocemente desaparecidos, Sá-Carneiro em 1916 suicida-se e Amadeo e Santa-Rita vítimas da Gripe Espanhola de 1918, são representantes máximos do que se convencionou chamar de primeiro modernismo português e de que o contemporâneo Pessoa foi também protagonista. Amadeo, em pé, é o único de que distinguimos o corpo, mãos à cintura, numa pose imponente, afirmativa e promissora com que ficou numa conhecida fotografia. A pincelada vai esboçando outros elementos reconhecíveis, mesmo que quase garatujados: a mesa de café, o avião do início do século, a torre Eiffel, a guitarra portuguesa (um objeto clássico em pintura, particularmente explorado pelo cubismo). Associados ao título e contexto de produção do quadro, estes elementos permitem leituras simbólicas em torno da ideia de um fado português que empurra os talentos para fora do país (para o Quartier Latin em Paris, epicentro artístico no início do século XX), que faz com que a vida dos mais promissores artistas cedo seja colhida, que vota ao esquecimento os maiores criadores lusos para muitos anos depois os endeusar e sebastianizar. É uma estratégia – aqui com ponta de ironia – de crítica e visão auto-depreciativa que se tornou frequente no discurso nacional. Pode também sugerir-se que o pintor, radicado em Paris desde 1963, estabelece um paralelo, em jeito de advertência, entre a sua própria história de vida e a destas figuras.]
(daqui)
 
 
 
 Mordaça


Puseram-lhe na boca uma mordaça…

Mas o Poeta era Poeta
E tinha que falar.

Fez um esforço enorme,
puxou a voz como quem golfa sangue
e a mordaça soltou-se-lhe da boca.

Porém, não era já mordaça:

Agora,
era um poema a queimar
os ouvidos das turbas inimigas
que, na praça,
o tinham querido calar.


Sebastião da Gama (1924-1952), 
da obra póstuma Itinerário Paralelo, 1967 
 (Compilado por David Mourão-Ferreira)
 
 

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

"Português Vulgar" - Poema de Inês Lourenço


Julius Adam (German genre painter and animalier specialising in pictures of cats, 1852 - 1913)
 
 

Português Vulgar

 
O meu gato deixa-se ficar
em casa, arejando o prato
e o caixote das areias. Já não vai
de cauda erguida contestar o domínio
dos pedantes de raça, pelos
quintais que restam. O meu gato
é um português vulgar, um tigre
doméstico dos que sabem caçar ratos e
arreganhar dentes a ordens despóticas. Mas
desistiu de tudo, desde os comícios noturnos
das traseiras até ao soberano desprezo
pela ração enlatada, pelo mercantilismo
veterinário ou pela subserviência dos cães
vizinhos. Já falei deste gato
noutro poema e da sua genealogia
marinheira, embarcada nas antigas
naus. Se o quiserem descobrir, leiam
esse poema, num livro certamente difícil
de encontrar. E quem procura hoje
livros de poemas? Eu ainda procuro,
nos olhos do meu gato, os
dias maiores de Abril.


Inês Lourenço, in 'Logros Consentidos'.
Ed.& etc, Lisboa, 2005.
 
 

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

"No baile em que dançam todos" - Poema de Fernando Pessoa


Henri de Toulouse-Lautrec (Peintre, dessinateur, lithographe, affichiste et illustrateur français,
 1864 - 1901), La Danse au Moulin-Rouge, 1890, huile sur toile (100,5 × 150 cm), 
 


No baile em que dançam todos

 
No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar.


4-8-1934

Fernando Pessoa
, Quadras ao Gosto Popular
(Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) 
Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973). - 39.



Henri de Toulouse-Lautrec
, Un examen à la faculté de Médecine de Paris, 1901.  

[Cette toile a été donnée en 1922 au Musée d’Albi par le Colonel Henri Würtz, frère du Docteur Würtz.
La scène évoquée par Lautrec est une reconstitution imaginaire de la soutenance de thèse de son cousin Gabriel Tapié de Céleyran.
Ultime toile achevée, cette œuvre est peinte à larges touches dans une matière épaisse, et structurée par les masses colorées sombres. On ne retrouve plus la prédominance de la ligne, ou le jeu des hachures, qui ont caractérisé les tableaux de la maturité.
L’horizontalité de la composition est accentuée par la découpe géométrique des fenêtres qui occupent le tiers supérieur du tableau, seules plages claires dans une toile de tonalité sombre. La feuille blanche posée sur la table éclaire une scène peinte dans des tonalités vertes et noires, avec pour seule note chaude et vive le rouge de l’épitoge et de la toque posée à droite, comme si le peintre avait voulu souligner ces symboles de l’autorité scientifique détenue par le président de thèse. Jouant sur la perspective, Lautrec accentue la disproportion des mains et des bras du premier plan selon un procédé quasi photographique.]
(daqui)

 
 
 
Pintor francês, descendente de uma família aristocrática, Toulouse-Lautrec nasceu em 1864, em Albi. 
Foi aluno de Léon Bonnat, em Paris. O seu estilo era académico, mas veio mais tarde a integrar o espírito da gravura japonesa e da obra de Edgar Degas. 
A vida de Montmartre tornou-se o tema principal dos seus quadros. A mestria do desenho permitia-lhe um traço firme e muitas vezes desencantado, fruto da lúcida observação dos seus contemporâneos. Frequentador assíduo do Moulin Rouge, utilizou-o para cenário de muitos quadros e litografias. As personagens que habitavam a noite tornaram-se os seus modelos preferidos: La Goulue e Valentin-le-Désossé, Jane Avril e a cantora Yvette Guilbert. 
Durante uma viagem a Londres conheceu Oscar Wilde e Aubrey Beardsley. O seu estilo passa a assumir alguns dos aspetos da Arte Nova, nas formas curvilíneas e na composição. 
Explorou igualmente as artes gráficas, produzindo cartazes e inúmeros desenhos sobre a vida de Montmartre. 
Enfraquecido por uma vida de excessos, veio a falecer a 9 de setembro de 1901. (daqui)

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

"Lamúrias dum eleitor" - Poema de José Augusto da Costa Resende



Felice Casorati (Italian painter, sculptor, and printmaker, 1883–1963) 


Lamúrias dum eleitor


Muito embora não rufe o tambor,
Nem se ponha a troar o canhão,
Ai que vida a dum pobre eleitor,
Quando perto vem uma eleição!

Não se sente soar os clarins,
Nem tão pouco rugir a metralha,
Mas vagueiam intrujões galopins,
E se fere renhida batalha!

Não há fumo, nem fogo, nem balas,
Nem há cenas de fera carnagem,
Mas não faltam mentiras nem palas,
Nem proezas de reles coragem!

Não há sangue a correr das feridas,
Não há gritos nem berros cruéis,
Mas há pratos de favas cozidas,
E bom vinho a correr dos toneis!

Um aqui se propõe deputado,
Outro ali deputado quer ser,
Cada qual a puxar para seu lado
E mil lérias cantando a valer!

Desta banda recebe elogios,
Daquela outra lhe dão patada;
Aqui diz-se ter tino e ter brios,
Ali diz-se não presta para nada!

Um a pátria propõe-se salvar,
Outro quer a nação defender;
Mas em regra (o que cumpre notar)
A maior parte o que quer é comer!

Vê-se em pancas um pobre eleitor,
E metido no meio de dois fogos,
Sem saber do seu voto dispor,
Tantos são os pedidos e rogos!

Dependente e não querendo mal querenças
E temendo o furor dos mandões,
Põe de parte princípios e crenças.
E lá vota com os tais figurões!

(Jornalista, poeta satírico, 1849-1896),
Rimas Humoristicas e Satiricas
Ponta Delgada, Edição do autor, 1892. 
 

domingo, 18 de fevereiro de 2024

"Ficaram-me as Penas" - Poema de Cassiano Ricardo



Ferdinand von Wright (Finnish painter, 1822 - 1906), Jays, 1877, Finnish National Gallery.


Ficaram-me as Penas

 
O pássaro fugiu, ficaram-me as penas
da sua asa, nas mãos encantadas.
Mas, que é a vida, afinal? Um voo, apenas.
Uma lembrança e outros pequenos nadas.

Passou o vento mau, entre açucenas,
deixou-me só corolas arrancadas...
Despedem-se de mim glórias terrenas.
Fica-me aos pés a poeira das estradas.

A água correu veloz, fica-me a espuma.
Só o tempo não me deixa coisa alguma
até que da própria alma me despoje!

Desfolhados os últimos segredos,
quero agarrar a vida, que me foge,
vão-se-me as horas pelos vãos dos dedos.
 
 
(Jornalista, poeta e ensaísta brasileiro, 1894 - 1974) 

 
Ferdinand von Wright, The Fighting Capercaillies, 1886, Finnish National Gallery (Ateneum).


"Este mundo é um inferno para os animais e nós, humanos, seus demónios".

Citado em "Wozu Religion?: Sinnfindung in Zeiten der Gier nach Macht und Geld" 
 - página 122, Eugen Drewermann, Jürgen Hoeren - Herder, 2001 - 224 páginas.
 
 
Ferdinand von Wright, Capercaillies courting, 1862, Finnish National Gallery.


"Agarre-se a seus sonhos, pois, se eles morrerem, a vida será como um pássaro de asa quebrada, incapaz de voar." 
 
"Hold fast to your dreams, for if dreams die, life is a broken winged bird that cannot fly." 
 
The Collected Works of Langston Hughes - Página 409.
 Publicado por University of Missouri Press, 2001, 632 páginas.
 

sábado, 17 de fevereiro de 2024

"Aranha" - Poema de Carlos Queirós Ribeiro


Thalia Flora-Karavia (Greek artist, 1871–1960), Landscape, s.d.
 


Aranha


À sombra dum cedro imenso
Eis-me a sentir e a pensar;
Mas o que sinto não penso
E o que penso está suspenso
Como uma aranha no ar

No ar balouça, fremente,
Num débil fio invisível
Dessa teia intermitente
Que liga o passado ingente
Ao presente irreversível.

Irreversível instante
O estar aqui na paisagem
Dentro dela e já distante
— Pois o que somos durante
É de nós próprios imagem.

Imagem que se desdobra
Sem que a vontade a detenha
No tempo que nunca sobra.
Viver?… Criar uma obra?…
Oh, o mistério da aranha!


Carlos Queirós Ribeiro (1907-1949), 
in Colectânea de Versos Portugueses do séc. XII ao séc. XX,
 org. de Cabral do Nascimento, Ed. Minerva, Lisboa, 1964.
 
 

Thalia Flora-Karavia, Trees, s.d.


"As árvores parecem indefesas, mas a sua ausência é o nosso castigo, o seu desaparecimento é o pior dos venenos."

Ana Miranda, na crónica "Réquiem para um bosque"


Thalia Flora-Karavia, ‘Forest landscape’, s.d.
 
 
 "Quem fica na floresta um dia, quer escrever uma enciclopédia; quem passa 5 anos, fica em silêncio para perceber o quanto é profunda e complexa a Criação." 
 
Pedro Casaldáliga (1928 - 2020), Revista Mérito. SP,  julho/2007.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

"A Festa do Silêncio" - Poema de António Ramos Rosa


Winslow Homer (American painter, photographer, printmaker and illustrator, 1836 - 1910),  
Crossing the Pasture, 1871–72, Amon Carter Museum of American Art.
 
[Children were seen as a poignant symbol of the nation’s future in the years following the Civil War, because of its devastating death toll. Homer was one of many artists and writers, including Mark Twain and Louisa May Alcott, who celebrated the "cult of childhood" in their work. While Homer’s charming vignette commemorates youthful innocence in an idyllic rural landscape, a sense of disquiet seeps into the picture. The figures, standing close together, wear uneasy expressions, with the older boy seeming to serve as a protective presence in relation to his young charge. The source of their apprehension is visible in the distance at left: a bull that seems to have noticed their attempt to traverse the field.] (daqui)
 

A Festa do Silêncio 
 
Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta. 


António Ramos Rosa
, in "Volante Verde" 
 

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

"Bolas de sabão" - Poema de Afonso Lopes Vieira


Jean Siméon Chardin (French painter, 1699–1779), Soap Bubbles, ca.1733-1734,
oil on canvas, 93 x 74.6 cm., National Gallery of Art.



Bolas de sabão


Assenta-se no chão a criancinha
cruza as pernitas, 
 e na ponta do tubo incham e crescem
aqueles vagos, pequeninos mundos
que, como todos os mundos, 
evolucionam e desaparecem.

Já profundos, os seus olhos
contemplam nessas quebradiças bolas
a sua aérea evolução etérea.

Débeis, duma ideal fragilidade
tão frágil que, suspensa e receosa,
inda mais leve, mais, que suspirando,
com vago sentimento de ansiedade
é que o contido bafo as vai lançando…

São corpos cuja alma vaporosa
apenas é um sopro de criança.

E continua, absorta; o rosto sério,
como de quem trabalha e não descansa;
cresce uma…, e parte-se; outra…, já soçobra.

E brincando, embebido no mistério,
esse poeta cria a sua obra…

Mas o sol, que ali vem do céu distante,
trespassa-as, colorindo-as reverbera:
e então a luz cintila deslumbrante
em cada efémera esfera.

Cada raio de sol que vem pôr
o seu divino ser, vai, glorioso,
criando com poder maravilhoso
a maravilha da cor!

Assim por elas, num deslumbramento,
canta, perpassa, brilha à claridade,
este abismo infinito dum momento: 
um pouco de Eternidade.


Afonso Lopes Vieira, in O Pão e as Rosas,
Livraria Ferreira - Editora, Lisboa, 1908.
 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

"Baloiço" - Poema de Alfredo Guisado


Pierre Auguste Cot (French painter, 1837 – 1883), Springtime, 1873,
Metropolitan Museum of Art, New York
.



Baloiço

 
Na minha quinta, em pequeno,
Tive um inquieto baloiço
Que ainda o vejo sereno
E nele os meus gritos oiço.

Longas horas baloiçava
Meu frágil corpo menino.
E ora subia ou baixava
Num constante desatino.

Nesse baloiço, à distância,
Chama por mim minha infância
E eu chamo p’lo que passou.

E sem haver quem me oiça
O baloiço me baloiça
Entre o que fui e o que sou.


Alfredo Guisado
(1891 - 1975)


 
Pierre Auguste Cot (French painter, 1837 – 1883), The Storm, 1880,
Metropolitan Museum of Art, New York.
 

"Aqueles que nós definimos como os nossos dias mais belos 
não são mais do que um brilhante relâmpago numa noite de tempestade". 
 
"Ce qu'on appelle nos beaux jours
 n'est qu'un éclair brillant dans une nuit d'orage."

Alphonse de Lamartine, Méditations poétiques - Página 61,
  A la Librairie grecque-latine-allemande, 1820, 156 páginas.
 
 

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

"As pequenas gavetas do amor" - Poema de Ana Luísa Amaral


 
Claude Monet (French painter and founder of impressionist painting, 1840–1926),
The Red Cape (Portrait of Madame Monet, Camille Doncieux), c. 1868-73,
Cleveland Museum of Art.

[This painting depicts Monet's first wife, Camille, outside on a snowy day passing by the French doors of their home at Argenteuil. Her face is rendered in a radically bold Impressionist technique of mere daubs of paint quickly applied, just as the snow and trees are defined by broad, broken strokes of pure white and green.
In its early stages, this composition contained two figures seated inside the room on either side of the window. Monet radically altered the composition by painting over the figures. They were replaced by an image of the artist's favorite model – his wife Camille, who passes outside the window in a red cape. Intense light – reflected from the snow-covered landscape – floods the room, obliterating details along the walls and floor. The off-center window frame and the blurriness achieved through sketchy brushstrokes suggest the scanning movement of the artist's eye as he viewed this scene. Contrasted with cold blues and silver whites, Camille's red cape draws the viewer's attention through the glass and into a swift exchange of glances, registering a brief moment in time. This painting evidently held special meaning for Monet, for he kept it with him until his death in 1926]
.
(daqui)
 
 
 
As pequenas gavetas do amor


Se for preciso, irei buscar um sol
para falar de nós:
ao ponto mais longínquo
do verso mais remoto que te fiz

Devagar, meu amor, se for preciso,
cobrirei este chão
de estrelas mais brilhantes
que a mais constelação,
para que as mãos depois sejam tão
brandas
como as desta tarde

Na memória mais funda guardarei
em pequenas gavetas
palavras e olhares, se for preciso:
tão minúsculos centros
de cheiros e sabores

Só não trarei o resto
da ternura em resto desta tarde,
que nem nos foi preciso:
no fundo do amor, tenho-a comigo:
quando a quiseres -


Ana Luísa Amaral (1956– 2022),
in Imagias, Gótica, 2002, pág. 21
 
 
[Imagias, o sétimo livro de Ana Luísa Amaral (Lisboa: Gótica, 2002), reúne poemas sobre “coisas exatas”, como anuncia o poema inaugural que serve de portal ao livro e se intitula “O exato curso do rio”. Cuidadosamente organizados em quatro partes, estes novos poemas de Ana Luísa Amaral retomam ou reinventam algumas das formas e temas mais recorrentes desta poeta portuguesa contemporânea: o modo vocativo, os versos de orações elípticas, as repetições com diferença, a sintaxe equívoca, as assonâncias, as aliterações, o uso do raciocínio lógico, o humor; e o tempo, a memória, a infância, a poesia, a perda, a dor, o amor. Sobretudo o amor, e sobretudo amor/eros, por vezes com saudade de amor/agapé. 
Neste livro escreve Ana Luísa Amaral os seus poemas como se a poesia lírica fosse o rigor de ser no caótico estar que é a nossa vida. Por isso, absurdamente, Imagias, o título exato do inexato certeiro que desafiadoramente é a poesia na poética de Ana Luísa Amaral.] (daqui)
 
 
Carolus-Duran (French painter, 1837–1917), Portrait of Madame Alice Hoschedé,
second wife of 
Claude Monet and mother of Blanche Hoschedé Monet, 1878.

 
[This painting, of Madame Hoschedé, was dedicated to the artist'’s friend Ernest Hoschedé, by all accounts, an eccentric character. Hoschedé was the director of a Parisian department store, an occasional art critic and avid collector. He frequented the Café Guerbois, where he kept the company of painters. Although his fortunes fluctuated, he compulsively bought paintings by Pissaro, Sisley, Degas and Monet, among others. Sisley, Manet and Monet were all guest for a time of the Hoschedé household and spent months painting at the Hoschedé mansion. It was during one of these stays, in the spring of 1878, that, it is suggested, Alice Hoschedé and Monet began a love affair. After Ernest Hoschedé was forced, due to utter financial ruin, to sell his extensive art collection (Monet bought back several paintings for significantly less than Hoschedé himself had originally paid Monet), his wife left him, and with complete disregard for social propriety, moving-in with Monet, nursing for a time his dying wife Susanne. Alice married the artist in 1891 upon her husband Earnest’s death.] (daqui)

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

"Poema melancólico a não sei que Mulher" - Poema de Miguel Torga


 
Raimundo de Madrazo y Garreta (Spanish painter, 1841–1920),
Young Lady with a Mask and Glass of Absinthe, Unknown date.
 


Poema melancólico a não sei que Mulher 
 
 
Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão... 


Miguel Torga
, in 'Diário VII'
 
 
Raimundo de Madrazo y Garreta, Preparing for the Costume Ball, Unknown date,
 Private collection.
 
 
"Mulheres sem charme são como poetas que não leem."

"Les femmes sans charme sont comme les poètes qu'on ne lit pas."
 
Astolphe de Custine, in "Le monde comme il est" - Página 101; 
 Publicado por E. Renduel, 1835.


Raimundo de Madrazo y Garreta, Aline with a mask, Unknown date,
 

"Todo mundo diz que as mulheres são como a água. Penso que é porque a água é a fonte da vida e se adapta ao ambiente. Assim como as mulheres, a água dá de si mesma em todo lugar aonde vai para nutrir a vida."
 
  Xinran, As Boas Mulheres da China. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

"É Carnaval, e estão as ruas cheias" - Poema de Álvaro de Campos



James Ensor (Belgian painter and printmaker, 1860–1949), Carnival in Flanders, 1931.
Stedelijk Museum Amsterdam




É Carnaval, e estão as ruas cheias

É Carnaval, e estão as ruas cheias
De gente que conserva a sensação,
Tenho intenções, pensamento, ideias,
Mas não posso ter máscara nem pão.

Esta gente é igual, eu sou diverso —
Mesmo entre os poetas não me aceitariam.
Às vezes nem sequer ponho isto em verso —
E o que digo, eles nunca assim diriam.

Que pouca gente a muita gente aqui!
Estou cansado, com cérebro e cansaço.
Vejo isto, e fico, extremamente aqui
Sozinho com o tempo e com o espaço.

Detrás de máscaras nosso ser espreita,
Detrás de bocas um mistério acode
Que meus versos anódinos enjeita.

Sou maior ou menor? Com mãos e pés
E boca falo e mexo-me no mundo.
Hoje, que todos são máscaras, és
Um ser máscara-gestos, em tão fundo... 

s.d.

Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa.
 (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.)
Lisboa: Estampa, 1993. - 7b.
 
 
James Ensor, Self-Portrait with Masks, 1899, Oil on canvas, 117 x 82 cm., 



Depus a máscara e vi-me ao espelho


Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada... 

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
 
Depus a máscara e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sou a máscara.

E volto à personalidade como a um terminus de linha.

18-8-1934 
 
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa.
Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 61.

"Um livro, um vaso, nada" - Poema de José Manuel Caballero Bonald


William Michael Harnett (American painter known for his trompe-l'œil still lifes of 
ordinary objects, 1848–1892), Old Models, 1892, Museum of Fine Arts Boston.
 


Um livro, um vaso, nada

 
Todas as noites deixo
entre os livros a minha solidão,
abro a porta aos oráculos,
fundo a minha alma com o fogo
do salmista.

Que contrária
vontade de perigo me desvela,
quebra a vigilante
sede de viver na minha palavra.

Todas as noites vivo inutilmente
a frustração do dia, recupero
as horas mortas da minha liberdade,
consisto no que fui.

(Mão esquecida entre os lençóis
rasga papéis, mancha o último
pedaço do meu sonho.)

Oh coração
sem ninguém – para quê
tantas páginas vãs, tantos
hinos vazios? Olha
em teu redor – que fica? Estamos
sós: toda
a vida cabe entre o calar
e o sonho. Aqui
a minha solidão é a minha alegria:
um livro, um vaso, um nada.


José Manuel Caballero Bonald,
Poesia Espanhola do Após-Guerra, Portugália.
Tradução de Egito Gonçalves
 
 
 
 


William Michael Harnett, Still Life with Three Castles Tobacco, 1880, Brooklyn Museum.
 



 
“Escrever é uma luta contínua com a palavra. Um combate que tem algo de aliança secreta.” 
(Escritor, tradutor e intelectual argentino, 19141984) 

sábado, 10 de fevereiro de 2024

"O poeta asseteado por amor" - Poema de Manuel Maria Barbosa du Bocage



Allan Ramsay (Scottish portrait-painter, 1713–1784), Lady in a Pink Silk Dresse, c. 1762,


O poeta asseteado por amor
 
 
Oh Céus! Que sinto n'alma! Que tormento!
Que repentino frenesi me anseia!
Que veneno a ferver, de veia em veia,
Me gasta a vida, me desfaz o alento!

Tal era, doce amada, o meu lamento;
Eis que esse deus, que em prantos se recreia,
Me diz: — «A que se expõe quem não receia
Contemplar Urselina um só momento!

«Insano! Eu bem te vi dentre a luz pura
De seus olhos travessos, e co'um tiro
Puni tua sacrílega loucura:

«De morte, por piedade hoje te firo;
Vai pois, vai merecer na sepultura
À tua linda ingrata algum suspiro.»
 
 
Bocage (1765 –1805), Sonetos 
 
 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

"Oração do milho" - Poema de Cora Coralina



José Malhoa  (Pintor, desenhador e professor português, 1855–1933),
Milho ao Sol, 1927, Museu Nacional Grão Vasco.
 
 

Oração do milho

Senhor, nada valho.
Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das
lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso,
nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste, e se me ajudardes, Senhor,
mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial, salvo por milagre,
que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo
e de mim não se faz o pão alvo universal.
O Justo não me consagrou Pão de Vida, nem
lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que
trabalham a terra, onde não vinga o trigo nobre.
Sou de origem obscura e de ascendência pobre,
alimento de rústicos e animais do jugo.

Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas,
quando os hebreus iam em longas caravanas
buscar na terra do Egito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas de Booz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.

Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustão
do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha económica do proletário.
Sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a
vida em terra estranha.
Alimento de porcos e do triste mu de carga.
O que me planta não levanta comércio, nem avantaja
dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que
amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor,
que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho.


Cora Coralina
, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais,
Global Editora – 14ª edição, 1987.