quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

"Naquele eterno azul, onde Coema" - Poema de Machado de Assis



Naquele eterno azul, onde Coema


Naquele eterno azul, onde Coema,
Onde Lindóia, sem temor dos anos,
Erguem os olhos plácidos e ufanos,
Também os ergue a límpida Iracema.

Elas foram, nas águas do poema,
Cantadas pela voz de americanos,
Mostrar às gentes de outros oceanos
Jóias do nosso rútilo diadema.

E, quando a magna voz inda afinavas
Foges-nos, como se a chamar sentiras
A voz da glória pura que esperavas.

O cantor do Uruguai e o dos Timbiras
Esperavam por ti, tu lhe faltavas
Para o concerto das eternas liras.


Machado de Assis, em "Gazeta de Notícias, 23 dez. 1877,
 em homenagem a José de Alencar".


Panorama de Mariana - Minas Gerais, por Alberto Delfino, 1895


"O perfeito homem do mundo seria aquele que jamais hesitasse por indecisão e nunca agisse por precipitação."

Aforismos sobre a Sabedoria da Vida




AFORISMOS PARA A SABEDORIA DE VIDA
(APHORISMEN ZUR LEBENSWEISHEIT)

de
Tradução de Gabriel Valladão Silva


(Arthur Schopenhauer (1788-1860) nasceu em Gdansk (então Prússia, atual Polónia), numa família de respeitáveis comerciantes de origem holandesa. Após o suicídio do pai, começou a estudar medicina e ciências na universidade de Göttingen e, posteriormente, filosofia. Em 1811 mudou-se para Berlim a fim de escrever sua tese de doutorado e lá iniciou a redação de "O mundo como vontade e representação", terminado em 1818 e publicado no ano seguinte, que reúne o núcleo de sua metafísica. Na época a obra teve pouca repercussão, mas em 1844 foi lançada uma edição expandida. Tornou-se conhecido com a publicação de Parerga e Paralipomena (1851), que reúne diálogos, ensaios e máximas. Após sua morte, "O mundo como vontade e representaçãopassou a ser considerada uma das obras-chave da filosofia ocidental.) 

  • A busca humana pela felicidade 
“Tomo aqui o conceito de sabedoria de vida num sentido totalmente imanente, a saber, o da arte de conduzir a vida da maneira mais agradável e feliz possível [...].” 

Arthur Schopenhauer é um dos mais importantes nomes da filosofia em língua alemã, junto com Kant, Hegel, Nietzsche e Wittgenstein. Embora muitas vezes considerado um pensador “pessimista”, seus estudos sobre a filosofia oriental possibilitaram-lhe uma visão até então inédita da existência humana: a dor e o tédio são, para ele, os dois polos entre os quais oscilamos do nascimento à morte. Para se ter uma vivência feliz e agradável, portanto, é preciso constantemente equilibrar-se entre esses dois extremos. 
Em Aforismos para a sabedoria de vida (1851), Schopenhauer discorre, na linguagem límpida que o caracteriza, sobre os elementos principais da existência, demonstrando que a validade de tal visão de vida não apenas perdura até hoje como parece se fortalecer cada vez mais. 

  • A felicidade moral 
Mais de trinta anos após lançar as bases de sua filosofia em "O mundo como vontade e representação", Arthur Schopenhauer tornou-se conhecido por Parerga e Paralipomena (1851). Deste vasto tratado de mais de mil páginas contendo aquilo que o próprio autor chamou de “escritos esparsos”, Aforismos para a sabedoria de vida compõe o segundo quarto. Nestes ensaios, o pensador se dirige ao leitor com uma linguagem clara e acessível, deixando de lado terminologias filosóficas, para refletir sobre os principais fatores que influenciam a busca humana pela “boa vida” – uma existência agradável e moralmente justa. 
Composto por capítulos como “Daquilo que se é”, “Daquilo que se tem”, “Daquilo que se representa”, “Da diferença entre as idades”, o autor – um dos introdutores da filosofia oriental e budista aos pensadores europeus – discorre sobre a amizade, a simplicidade, a felicidade, a vida, a morte, a honra, sempre com um olhar sereno e estável. Em vez de defender o valor absoluto da razão, postula o indivíduo como o próprio detentor dos meios de se chegar à felicidade, afirmando-se, portanto, como um pensador eminentemente humanista. “Aquilo que alguém é e tem em si mesmo, em suma: a personalidade e o valor, é o único fator imediato para sua felicidade e seu bem-estar”. Chega mesmo a antecipar noções futuras de psicologia e, em seu estilo lapidar e cristalino, propôs ideias hoje correntes: “[...] não é sem razão que nos perguntamos, antes de qualquer outra coisa, pelo estado de saúde uns dos outros e desejamos mutuamente nosso bem-estar: pois esse é com efeito de longe o elemento mais importante para a felicidade humana. [...] a maior de todas as tolices é sacrificar a própria saúde pelo que quer que seja, pelo emprego, pela erudição, pela fama, e tanto mais por volúpia e prazeres efémeros: pelo contrário, deve-se priorizá-la em face de tudo o mais”. 
Aqui está, em toda sua exuberância, a sabedoria daquele que, admitindo a ausência de Deus e o sofrimento intrínseco à experiência humana, enxergava na reflexão, na arte e na conduta moral os grandes trunfos da humanidade, influenciando todos os pensadores posteriores. (Daqui)

domingo, 25 de fevereiro de 2018

"Com as maçãs" - Poema de Eugénio de Andrade


Charles Courtney Curran, Apple Perfume, 1911



Com as maçãs


As crianças chegam com as maçãs.
Vêm do sul,
os choupos brancos sabem o seu nome.
Também as gaivotas as conhecem:
aposto que foram elas,
estas ciganas das areias,
quem lhes mostrou o caminho.
Chegam com as maçãs:
as crianças, as abelhas.


in «Coração habitado»


Andorinha (Hirundo rustica), Springtime' by Luis-Gaspar


Sentadas num fio
estão cinco andorinhas
fugidas do frio




sábado, 24 de fevereiro de 2018

"Vida!" - Poema de Augusto de Lima


Ivan Kramskoi, Girl with a Cat, 1882



Vida!


Olha esta gota de água cristalina:
é tão leve, tão ténue e pequenina,
que a sede vegetal mais estimula,
e nem ao menos molha
do lírio o hastil, o cálice ou a folha,
em que, líquida pérola, trémula;
dir-se-ia um pingo de sidérea mágoa.
Tu, que já penetraste os oceanos
e devassas recônditos arcanos,
não a desprezes, olha-a:
que vês na gota cristalina de água?

Nela se espelham fulgidos, celestes
prismas, que a luz exterior difunde,
como em puro diamante lapidado.
Mas se o olhar limitado
de uma lente revestes,
porque a vista sagaz mais se profunde,
verás, então, do turbilhão da Vida,
surdirem novos seres, e estes seres
aumentando-se em linha indefinida,
de modo a não poderes
contar sequer seu número. Detém-te
e observa a formação vária, infinita
dos corpos, cujo frémito latente
um mesmo protoplasma anima e agita.

Mas não! O olhar perturba-se em vertigens
de febril paroxismo.
Nem procures saber-lhes as origens,
a esses entes anónimos, que viste.
Para o prescrutador olhar humano,
como no grande, existe
no infinito minúsculo – um abismo.
Homem, na gota de água há um oceano!


em "Contemporâneas", 1887.


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

"Pôr-do-sol em Portugal" - Poema de Álvaro Alves de Faria




Pôr-do-sol em Portugal


Quando o sol se põe, 
as ruas de Portugal ficam 
quietas como um pássaro. 
Talvez hajam barcos saindo do porto 
levando o corpo de Álvaro de Campos. 
Os oceanos sempre serão menores 
para tantas embarcações 
que partem, velas invisíveis 
no longínquo silêncio 
de ondas que morrerão. 
Quando o sol se põe, 
as mulheres talvez cantem uma canção 
e talvez amem homens tristes 
em alamedas distantes, 
onde a memória se perdeu 
e onde a música não existe mais. 
Quando o sol se põe, 
as casas de Portugal ficam amarelas 
e todas as janelas se fecham 
em adeus a todas as coisas. 
Quando o sol se põe, 
os passos se perdem nas calçadas, 
talvez os dias não amanheçam mais, 
talvez as igrejas fechem 
e talvez um lábio faça ainda uma súplica 
de amor. 
Quando o sol se põe, 
as sombras de Portugal ficam mais 
nítidas, 
os casais talvez chorem, 
talvez sorriam, 
mas isso ninguém sabe, 
mas isso ninguém saberá.





"Aquele que o meu coração ama" - Poema de Alice Vieira


Hildegard Thorell, Model with a Mirror, 1899, oil on canvas 



Aquele que o meu coração ama


Aquele que o meu coração ama
ergueu-se do meu leito e nele esqueceu
as repetidas promessas de um regresso
em que aos meus olhos ensinaria
a única maneira de esconder
o prenúncio de invisíveis desertos

aquele que o meu coração ama
afogou em noites de leite e mel
o rasto dos oásis que
teciam a sede do desejo no meu peito
e bebeu neles as horas de um destino que
me acenava de muito longe

aquele que o meu coração ama
partiu às cegas sem descobrir
as húmidas palavras que se espalham
à sombra dos ciprestes
contando os minutos que faltam
para a vertigem do corpo onde o aguardo


O que Dói às Aves

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

"Que fazer?!" - Poema de Amílcar Cabral


Richard Bergh (1858-1919), Hypnotic Seance, 1887



Que fazer?!...


Eu não compreendo o Amor,
eu não compreendo a Vida
Mistérios insondáveis,
Formidáveis,
Mistérios que o Homem enfrenta
Mistérios de um mistério
Que é a alma humana …

Eu não compreendo a Vida:
Há luta entre os humanos,
Há guerra,
Há fome, e há injustiça imensa:
Há pobres seculares,
Aspirações que morrem …
Enquanto os fortes gastam
Em gastos não precisos
Aquilo que outros querem …

Eu não compreendo o amor:
Amamos quem sabemos impossível
Sentir por nós aquilo
Que tanto cobiçamos …

A Vida não me entende,
Eu não compreendo a Vida.
Quero entender o Amor,
E o amor não me compreende!


(Poemas recolhidos em “Emergência da Poesia em Amílcar Cabral”, Oswaldo Osório, 1984.)


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

"Minha Mãe" - Poema de Azevedo Cruz


Charles Courtney Curran, 'Breakfast for Three', 1909


Minha Mãe


Da luz do Além vejo terras distantes
Num quadro de expressão que nunca vira.
Orion, Sirius, Aldebaran, Alfa e Lira…
Na celeste harmonia de gigantes.

 A saudade cruel é a força que me inspira.
Todo ambiente em torno é belo como dantes
No reduto das rosas fascinantes
Sustentadas aos toques da safira.

 Busco uma casa amiga, o coração estala.
Encontro minha mãe! Corro a beijá-la
Abraçado no amor de que me inundo.

Meu Deus! Não quero o céu, mesmo em te amando.
Quero ficar com minha mãe rezando
Na verdadeira paz que achei no mundo!…




Charles Courtney Curran, Dolly's Portrait, 1909


"As mulheres são as flores da vida, assim como as crianças são os frutos dela." 


domingo, 18 de fevereiro de 2018

"A gata" - Poema de Eugénia Tabosa


Hans Andersen Brendekilde (1857-1942), Summer day in the village 
with a little girl and a kitten



A gata 

(A meu filho Carlos) 


A gata branca tinha um olho verde e outro azul
mas para mim ela era como uma aranha.
Que pena eu tinha de a não amar,
que pena eu tinha do seu ronronar em mim não ter eco.
E sempre que a gata vinha eu ia
e ela ficava mais triste mais só.
Sim, ela tivera casa, almofada e mesmo um nome
depois nasceu um menino e ela foi para o quintal.
Como ela soube então que as noites eram azuis,
o luar, o cheiro da terra molhada e tudo o mais.
Mas um dia a casa ficou vazia.
Aqueles de quem ela tinha sido e seus se diziam
fizeram malas e levaram tudo o que havia,
foram-se deixando a porta fechada.
Só ela ficou, toda branca um olho verde outro azul.
Passaram noites, dias longos e silêncios.
Depois cheguei eu, as flores e os risos,
a casa enchera-se outra vez, mas ela não entrou.
Rondava, olhando-me como intrusa.
Passou o verão, houve noites de chuvas
Noites azuis e de estrelas que nevavam.
E numa delas chegou um menino, o meu menino.
Então amei-o, amei-o daquele amor à vida
transbordante e doce, até às coisas pequenas.
E quando um dia a gata se foi deitar
em meu casaco numa cadeira esquecido,
olhei-a e não a pude enxotar.


Portugal (1931)



Haicais de crianças
H. A. Brendekilde, The New Doll


Boneca de trapo
no baú esquecida
quem te beijou?

(Eugénia Tabosa)


H. A. Brendekilde, Gathering Water From the Well


Na casa vazia
ficou o som do riso
das crianças

(Eugénia Tabosa)


H. A. Brendekilde, Fishing Village 


Vidraça molhada,
o menino
desenha a estrada

(Eugénia Tabosa)


H. A. Brendekilde, Summer in the Garden


Monte a cima
crianças sobem trenós
só para descer

(Eugénia Tabosa)


H. A. Brendekilde, Danish summer idyll with old folks talking at the white country house, 1894


Ursos, carrinhos...
agora outros cuidados
e carinhos

(Eugénia Tabosa)


H. A. Brendekilde, The Cottage Garden


Sentada na grama
a menina chora,
orvalho de flor

(Eugénia Tabosa)


H. A. Brendekilde, At the garden bank, 1913


Ao sol sentada
as mãos no ventre
acaricia o filho

(Eugénia Tabosa)


H. A. Brendekilde


Cabelos negros
e saias rodadas
elas dançam ao vento

(Eugénia Tabosa)


H. A. Brendekilde, You come out for playing


Pingos de gelo,
choro de anjo
ou doce de criança?

(Eugénia Tabosa)

sábado, 17 de fevereiro de 2018

"Aqui desta varanda" - Poema de Marly de Oliveira


Hans Heyerdahl (1857-1913), At the Window, 1881



A vida natural - XIX


Aqui desta varanda
espaçosa que dá
sobre um jardim e sobre o imenso largo,
contemplo sossegada
o cair, sobre as coisas,
lento, do dia, o céu por todo lado.
Contraponho o silêncio
desta vida perfeita,
à vida que se vive
na cidade, em tumulto.
A minha pálpebra sustenta o peso
da tarde, que me fecha
num sonho, vagarosa.

Sonhamos o que vemos?
ou somos nós o sonho
daquilo que não vemos no que vemos?
A matéria das coisas
me desmaterializa
ao ponto de me ser inatingível
o sentido de estar,
o sentido de ser
distinto delas. Ah,
quem me é? quem me sabe,
sob este céu de estrelas quentes e úmidas?
Não vivo, sou vivida
na noite, pelas coisas.


em "A vida natural". 
Rio de Janeiro: Literatura, 1967.


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

"O Relógio" - Poema de João Cabral de Melo Neto


Francis Cadell, The Harbour, Cassis, 1924



O Relógio

1

Ao redor da vida do homem 
há certas caixas de vidro, 
dentro das quais, como em jaula, 
se ouve palpitar um bicho. 

Se são jaulas não é certo; 
mais perto estão das gaiolas 
ao menos, pelo tamanho 
e quebradiço de forma. 

Uma vezes, tais gaiolas 
vão penduradas nos muros; 
outras vezes, mais privadas, 
vão num bolso, num dos pulsos. 

Mas onde esteja: a gaiola 
será de pássaro ou pássara: 
é alada a palpitação, 
a saltação que ela guarda; 

e de pássaro cantor, 
não pássaro de plumagem: 
pois delas se emite um canto 
de uma tal continuidade 

que continua cantando 
se deixa de ouvi-lo a gente: 
como a gente às vezes canta 
para sentir-se existente.

2

 O que eles cantam, se pássaros, 
é diferente de todos: 
cantam numa linha baixa, 
com voz de pássaro rouco; 

desconhecem as variantes 
e o estilo numeroso 
dos pássaros que sabemos, 
estejam presos ou soltos; 

têm sempre o mesmo compasso 
horizontal e monótono, 
e nunca, em nenhum momento, 
variam de repertório: 

dir-se-ia que não importa 
a nenhum ser escutado. 
Assim, que não são artistas 
nem artesãos, mas operários 

para quem tudo o que cantam 
é simplesmente trabalho, 
trabalho rotina, em série, 
impessoal, não assinado, 

de operário que executa 
seu martelo regular 
proibido (ou sem querer) 
do mínimo variar.

3

A mão daquele martelo 
nunca muda de compasso. 
Mas tão igual sem fadiga, 
mal deve ser de operário; 

ela é por demais precisa 
para não ser mão de máquina, 
a máquina independente 
de operação operária. 

De máquina, mas movida 
por uma força qualquer 
que a move passando nela, 
regular, sem decrescer: 

quem sabe se algum monjolo 
ou antiga roda de água 
que vai rodando, passiva, 
graças a um fluido que a passa; 

que fluido é ninguém vê: 
da água não mostra os senões: 
além de igual, é contínuo, 
sem marés, sem estações. 

E porque tampouco cabe, 
por isso, pensar que é o vento, 
há de ser um outro fluido 
que a move: quem sabe, o tempo.

4

 Quando por algum motivo 
a roda de água se rompe, 
outra máquina se escuta: 
agora, de dentro do homem; 

outra máquina de dentro, 
imediata, a reveza, 
soando nas veias, no fundo 
de poça no corpo, imersa. 

Então se sente que o som 
da máquina, ora interior, 
nada possui de passivo, 
de roda de água: é motor; 

se descobre nele o afogo 
de quem, ao fazer, se esforça, 
e que ele, dentro, afinal, 
revela vontade própria, 

incapaz, agora, dentro, 
de ainda disfarçar que nasce 
daquela bomba motor 
(coração, noutra linguagem) 

que, sem nenhum coração, 
vive a esgotar, gota a gota, 
o que o homem, de reserva, 
possa ter na íntima poça.




Samuel Peploe, Cassis, 1913


"Viver sem filosofar é o que se chama ter os olhos fechados sem nunca os haver tentado abrir."


quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

"Música" - Poema de António Gancho


Gerard van Honthorst (1592-1656), The Concert, 1623



Música 


A música vinha duma mansidão de consciência 
era como que uma cadeira sentada sem 
um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo 
nada fazia prever que o vento fosse de azul para cima 
e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante 
era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa 
nós não movimentamos o espaço mas a vida erige a cifra 
constrói por dentro um vocábulo sem se saber 
como o que será 
era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante 
silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento. 


in 'O Ar da Manhã' 



"Os problemas de um livro" - Poema de Laura Riding


Charles Courtney Curran, An Afternoon Respite, 1894, Private collection


Os problemas de um livro

 
O problema de um livro é, primeiro, não ser 
Pensamentos para ninguém 
E ficará tão inescrito 
Quanto permanecerá não lido 
E construir um autor palavra por palavra 
E ocupar sua cabeça 
Até que a cabeça feche pra balanço 
Para publicar a todos 
Seu esvaziamento. 

O segundo problema de um livro 
É ficar desperto e pronto 
À escuta como um dono de pousada 
Querendo, não querendo hóspedes, 
Indeciso entre a esperança de folga nenhuma 
E a esperança de folga. 
Vacilantes, as páginas cochilam 
E piscam para os dedos que passam 
Com sorriso proprietário, e fecham-se. 

O terceiro problema de um livro é 
Dar seu sermão e virar as costas 
Suscitando comoção nas margens 
Onde a língua cruza o olho, 
Sem declarar nenhuma experiência de pânico, 
Nenhuma cumplicidade neste tumulto. 
A provação de um livro é não dar pistas 
De ser provação, é ser neutro e leigo 
No sentido reto do impresso. 

O problema de um livro, principalmente, 
É ser só livro na superfície; 
Vestir capa como capa, 
Se enterrar em morte-livro 
Mas se sentir tudo menos livro, 
Respirar palavras vivas, mas com o hálito 
Das letras; endereçar vivacidade 
Nos olhos que lêem, ser respondido 
Com letras e livrescidade.


Laura Riding, "Mindscapes - poemas"
Seleção, tradução e introdução de Rodrigo Garcia Lopes,
São Paulo: Iluminuras, 2004.
 

Charles Courtney Curran, Fair Critics, 1887, The Metropolitan Museum of Art


"Um pintor não tem outros inimigos sérios senão os seus piores quadros."



quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

"O coração latino-americano" - Poema de Thiago de Mello


Alberto da Veiga Guignard, Paisagem de Ouro Preto, 1950, Coleção Museu de Arte de São Paulo 



O coração latino-americano


Incas, ianomamis, tiahuanacos, aztecas, 
mayas, tupis-guaranis, a sagrada intuição 
das nações mais saudosas. Os resíduos. 
A cruz e o arcabuz dos homens brancos. 
O assombro diante dos cavalos, 
a adoração dos astros. 
Uma porção de sangues abraçados. 
Os heróis e os mártires que fincaram no 
tempo 
a espada de uma pátria maior. 
A lucidez do sonho arando o mar. 
As águas amazônicas, as neves da 
cordilheira. 
O quetzal dourado, o condor solitário 
o uirapuru da floresta, canto de todos os 
pássaros. 
A destreza felina das onças e dos pumas. 
Rosas, hortênsias, violetas, margaridas, 
flores e mulheres de todas as cores, 
todos os perfis. A sombra fresca 
das tardes tropicais. O ritmo pungente, 
rumba, milonga, tango, marinera, 
samba-canção. 
O alambique de barro gotejando 
a luz-ardente do canavial. 
O perfume da floresta que reúne, 
em morna convivência, a árvore altaneira 
e a planta mais rasteirinha do chão. 
O fragor dos vulcões, o árido silêncio 
do deserto, o arquipélago florido, 
a pampa desolada, a primavera 
amanhecendo luminosa nos pêssegos e nos 
jasmineiros, 
a palavra luminosa dos poetas, 
o sopro denso e perfumado do mar, 
a aurora de cada dia, o sol e a chuva 
reunidos na divina origem do arco-íris. 
Cinco séculos árduos de esperança. 
De tudo isso, e de dor, espanto e pranto, 
para sempre se fez, lateja e canta 
o coração latino-americano. 
em "De uma vez por todas", 1996.


"Testamento lírico" - Poema de Hilda Hilst


Charles Joshua Chaplin (1825-1891), Blowing Bubbles, c.1881, coleção privada.



Testamento lírico


Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras douradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo,
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós, resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.




segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

"Expropriação" - Poema de Rubens Jardim


Hans Andersen Brendekilde (1857 – 1942, Danish), Springtime, the first anemones, 1889


Expropriação

1

Quando eu era pequeno
e andava de mãos dadas com minha mãe
o mundo inteiro era minha casa.
Hoje, nem minha casa
é minha casa. 

2

Os anjos desapareceram
do espelho.
Da rua.
Da vila.
Eles não habitam mais
nem as igrejas. 

3

Antes o mundo era dádiva
acolhimento
oferenda.
Hoje estou fora de todas as coisas.
Sempre fora.
Sempre em face das coisas
em face do mundo
em face dos homens.
Sozinho diante de Deus.


em "Fora da estante - Rubens Jardim".
 Coleção Poesia Viva.


Hans Andersen Brendekilde, A Spring Day, Date unknown 


"A alegria é a nossa evasão do tempo." 


domingo, 11 de fevereiro de 2018

"Vento e Bandeiras" - Poema de Eugenio Montale


Charles-Amable Lenoir (french, 1861-1940), The Pink Rose



Vento e Bandeiras


A ventania que alçou o amargo aroma
do mar às espirais dos vales,
e te assaltou, desgrenhou teu cabelo,
novelo breve contra o pálido céu;

a rajada que colou teu vestido
e rápida te modulou à sua imagem,
como voltou, tu longe, a estas pedras
que o monte estende sobre o abismo;

e como passada a embriagada fúria 
retoma agora ao jardim o hálito submisso 
que te ninou, estirada na rede, 
entre as árvores, nos teus voos sem asas.

Ai de mim! O tempo nunca arranja duas vezes 
de igual maneira suas contas! E é esta a 
nossa sorte: de outra maneira, como na natureza, 
nossa história se abrasaria num relâmpago.

Surto sem igual, — e que agora traz vida 
a um povoado que exposto
ao olhar na encosta de um morro 
se paramenta de galas e bandeiras.

O mundo existe... Um espanto pára
o coração que sucumbe aos espíritos errantes,
mensageiros da noite: e não pode acreditar
que homens famintos possam ter sua festa.


Eugenio Montale, em Poesias
Tradução  de Geraldo Holanda Cavalcanti



Charles Amable Lenoir, Reflective thoughts


"A vida é como um sonho; é o acordar que nos mata."