domingo, 30 de junho de 2019

"Procissão" - Poema de António Lopes Ribeiro


 

Procissão


Tocam os sinos da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Mesmo na frente, marchando a compasso,
De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz popó, popó.

Olha os bombeiros, tão bem alinhados!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!

Ai, que bonitos que vão os anjinhos!
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!

Com o calor, o Prior aflito.
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.



João Villaret - "A Procissão", de António Lopes Ribeiro (RTP)
 


"Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo."

António Lopes Ribeiro (Daqui)

António Lopes Ribeiro, cineasta português, nasceu a 16 de abril de 1908, em Lisboa, e faleceu em abril de 1995. Estreou-se na crítica cinematográfica em 1925.
Com Chianca de Garcia, criou a revista Imagem, e mais tarde fundou e dirigiu Kino, bem como as duas séries de Animatógrafo.
Nas suas peças jornalísticas, mostrou-se desde muito cedo defensor do cinema sonoro.
Na realização, Lopes Ribeiro estreou-se em 1928 com o documentário Bailando ao Sol.
Grande parte da sua carreira, aliás, ao nível da curta-metragem, seria preenchida com produções de natureza documental, nas quais Lopes Ribeiro se tornaria uma espécie de cineasta do regime.
Mesmo em produções de outra natureza, como A Revolução de maio (1937) e Feitiço do Império (1940), a marca ideológica do Estado Novo permanece evidente. 
Em 1941, fundou as Produções António Lopes Ribeiro, que marcaram uma nova época no cinema português, na medida em que criaram condições consistentes para uma produção cinematográfica regular.
Assim, pôde Lopes Ribeiro rodar filmes dos mais conseguidos das décadas de 40 e 50 em Portugal, como a comédia O Pai Tirano (1941), protagonizada por Vasco Santana e Ribeirinho, Amor de Perdição (1943), com António Vilar e inspirado no romance homónimo de Camilo Castelo Branco, Frei Luís de Sousa (1950), uma adaptação do drama de Almeida Garrett protagonizada por Raul de Carvalho, João Villaret e Barreto Poeira, e O Primo Basílio (1959), inspirado na obra de Eça de Queiroz. 
As Produções A.L.R. estiveram ainda por trás da realização de películas bem conhecidas, como sejam Aniki-Bobó (1942), de Manoel de Oliveira, O Pátio das Cantigas (1942) e Camões (1946). 
Lopes Ribeiro foi também membro de diversos júris de festivais de cinema.
Entre 1961 e 1974, foi o apresentador, na RTP, do programa Museu de Cinema.
O último título que rodou foi a curta-metragem documental Dia de Portugal na Expo'70 (1970). 
Paralelamente à sua carreira de cineasta, foi empresário teatral (fundou em 1944, juntamente com o seu irmão Ribeirinho, a companhia Os Comediantes de Lisboa), poeta (compôs em 1956 a letra do famoso poema Procissão, declamado por João Villaret) e tradutor (em 1957, traduziu a peça Três Rapazes e Uma Rapariga, de Roger Ferdinand, protagonizada por Vasco Santana, Henrique Santana, João Perry e Raul Solnado).
Em 1984, surpreendeu o público português, quando surgiu como ator, interpretando um padre liberal na telenovela Chuva na Areia (1984), ao lado de Virgílio Teixeira, Mariana Rey Monteiro, Armando Cortez, José Viana, Carlos Wallenstein e Rogério Paulo. (Daqui)


João Villaret  (Daqui)

João Villaret, ator e declamador de excecional talento nasceu a 10 de maio de 1913, em Lisboa, e faleceu a 21 de janeiro de 1961, na mesma cidade.
Depois de ter terminado o Liceu, dedicou-se ao teatro, tendo estado ligado à revitalização do teatro nacional.
Gradualmente, ganhou fama de declamador pelo que causou algum escândalo quando decidiu, em 1941, enveredar pelo teatro de revista, provando em êxitos sucessivos que era possível conciliar o género dramático e o de revista.
A mais popular de todas terá sido 'Tá Bem Ou Não 'Tá? (1947), onde popularizou o célebre Fado Falado, da autoria de Aníbal Nazaré e Nélson de Barros, que mais não era do que um recitativo sobre melodia de fado onde a letra em vez de ser cantada era declamada.
Este género de poesia ganhou enorme popularidade, especialmente depois de A Vida É Um Corridinho (1952) ou o famoso A Procissão (1956), da autoria de António Lopes Ribeiro, que viria, anos mais tarde a popularizar num seu programa televisivo.
Aliás, a poesia, especialmente a de Cesário Verde, era uma das suas grandes paixões, tendo ficado famosas as suas tertúlias no Café Brasileira do Rossio.
De entre as suas peças mais célebres, destacam-se A Recompensa (1937), de Ramada Curto, A Madrinha de Charley (1938), de Brandon Thomas, Leonor Teles (1939), Melodias de Lisboa (1955), da sua autoria, Não Faças Ondas (1956) e Esta Noite Choveu Prata (1959).
Das suas interpretações cinematográficas, destacam-se a sua personificação de D.João VI em Bocage (1936), um papel secundário, mas mordaz de mudo, em O Pai Tirano (1941), de Bobo, em Inês de Castro (1944), de D. João III, em Camões (1946) e aquela que terá sido a sua melhor interpretação de sempre em cinema, a de Telmo Pais, em Frei Luís de Sousa (1950).
O seu último papel foi o de Sebastião, em O Primo Basílio (1959). 
Doença prolongada obrigou-o a retirar-se dos palcos em 1960, tendo falecido no ano seguinte.
A sua morte causou manifestações de grande pesar em Lisboa, de tal forma que, durante muitos anos, os lisboetas celebraram o aniversário da sua morte com um recital de poemas no Cinema S. Jorge, onde a sua voz se ouvia num palco vazio iluminado apenas por um foco de luz.
Em sua homenagem, Raul Solnado fundou, em 1965, o Teatro Villaret. (Daqui)


sábado, 29 de junho de 2019

"Fala o Poeta ao seu Amor" - Poema de Teixeira de Pascoaes


Emil Fuchs (1866–1929), A Young Juno (Miss Ellen Kamerly), 1925



Fala o Poeta ao seu Amor


Eu venho do Mistério e do Desconhecido...
Por lá meu triste coração andou perdido,
Nesse país que fica além dos horizontes,
Da clara luz do sol, do murmúrio das fontes...

Venho d´além do Luar, das nuvens e do Vento,
Eu venho do Esplendor e do Deslumbramento...
Venho de percorrer o coração das coisas,
Espíritos sem nome, almas misteriosas.

Venho de percorrer esses lugares virgens,
Onde é um sonho de luz a alma das Origens...
Eu venho dum jardim distante, aureoral,
Onde cresce e floresce a árvore do Ideal.

Nas suas veias corre o sangue dos Poetas
E é alimentada pela cinza dos Profetas.
Seus verdes ramos vem doirar a eterna luz
E neles fez seu ninho a alma de Jesus...

Trago-te, meu amor, dessa árvore sagrada
Um farrapo ideal de sombra iluminada,
Para que faças com ele um lenço sacrossanto
Que, de tudo o que existe, enxugue o amargo pranto!...


Teixeira de Pascoaes 

quarta-feira, 26 de junho de 2019

"Mãe, os meninos andam distraídos" - Poema de Maria do Rosário Pedreira


Jules Breton, Femme avec une bougie fine, 1873


Mãe, os meninos andam distraídos


Mãe, os meninos andam distraídos junto
ao rio e tu não queres saber de os perder.
Sentaste-te a pensar nesse homem que
apareceu e a desfolhar os malmequeres
da tua bata nova — e não viste que te
largaram a mão nem para onde fugiram
com a pressa do vento. Mãe, os meninos

saíram da tua beira para a beira do rio
e tu não queres saber de os chamar. Eles
estendem agora os braços pequeninos
para o sol que brilha sobre as águas
como um punhado de moedas que nunca

hão de ter — mas tu hoje só conheces
um nome nos teus lábios e nem sequer te
lembras que esse nome não é o que puseste
a nenhum deles. Mãe, os meninos

são tão pequenos e já vão tão longe que
a luz pode cegá-los para sempre. Andam
perdidos no rio há tanto tempo que será
tarde de mais quando gritarem por ti —
porque a ideia do amor é hoje muito maior
do que a voz deles. Mãe, se tu quiseres, eu

posso tomar conta dos meninos, sento-me
com eles na margem a desenhar o sol e
havemos de fazer horas para o teu sonho:
depois de tanta dor e tanto luto, eu não
vou deixar que percas os teus meninos
nem pedir-te que sejas viúva para sempre. 


Maria do Rosário Pedreira,
in 'Antologia Poética'


domingo, 23 de junho de 2019

"Profundamente" - Poema de Manuel Bandeira



Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegrias e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.


Manuel Bandeira,
“Estrela da Vida Inteira”


sexta-feira, 21 de junho de 2019

"Dormindo" - Poema de Olavo Bilac


William Shih-Chieh Hung (1928 – 2011), Sleeping Model



Dormindo 


De qual de vós desceu para o exílio do mundo
A alma desta mulher, astros do céu profundo?
Dorme talvez agora... Alvíssimas, serenas,
Cruzam-se numa prece as suas mãos pequenas.
Para a respiração suavíssima lhe ouvir,
A noite se debruça... E, a oscilar e a fulgir,
Brande o gládio de luz, que a escuridão recorta,
Um arcanjo, de pé, guardando a sua porta.
Versos! podeis voar em torno desse leito,
E pairar sobre o alvor virginal de seu peito,
Aves, tontas de luz, sobre um fresco pomar...
Dorme... Rimas febris, podeis febris voar...
Como ela, num livor de névoas misteriosas,
Dorme o céu, campo azul semeado de rosas;
E dois anjos do céu, alvos e pequeninos,
Vêm dormir nos dois céus dos seus olhos divinos..
Dorme... Estrelas, velai, inundando-a de luz!
Caravana, que Deus pelo espaço conduz!
Todo o vosso clarão nesta pequena alcova
Sobre ela, como um nimbo esplêndido, se mova:
E, a sorrir e a sonhar, sua leve cabeça
Como a da Virgem Mãe repouse e resplandeça! 
 in "Poesias" 


William Shih-Chieh Hung (1928 – 2011), Moonlight



Noite

 
Luar nos cabelos.
Constelações na memória.
Orvalho no olhar.


Helena Kolody
(Haicai)


quinta-feira, 20 de junho de 2019

"Cala-te" - Poema de José Gomes Ferreira


Hanna Hirsch-Pauli, Portrait of  Georg Pauli, c. 1910



Cala-te


Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera,
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido…

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
com a minha sede.


José Gomes Ferreira
 (1900-1985)



Georg Pauli, Portrait of his wife Hanna, 1896


Depois 

Será sempre agora.
Viajarei pelas galáxias
universo afora.

Helena Kolody
(Haicai) 

quarta-feira, 19 de junho de 2019

"Louvor do Esquecimento" - Poema de Bertolt Brecht


Henri Jules Jean Geoffroy, In Class, Instructions for the young Children, 1889
 (also known as En classe, le travail des petits) 



Louvor do Esquecimento 


Bom é o esquecimento.
Senão como é que
o filho deixaria a mãe que o amamentou?
Que lhe deu a força dos membros e
o retém para os experimentar.

Ou como havia o discípulo de abandonar o mestre
que lhe deu o saber?
Quando o saber está dado
o discípulo tem de se pôr a caminho.

Na velha casa
entram os novos moradores.
Se os que a construíram ainda lá estivessem
a casa seria pequena de mais.

O fogão aquece. O oleiro que o fez
já ninguém o conhece. O lavrador
não reconhece a broa de pão.

Como se levantaria, sem o esquecimento
da noite que apaga os rastos, o homem de manhã?
Como é que o que foi espancado seis vezes
se ergueria do chão à sétima
pra lavrar o pedregal, pra voar
ao céu perigoso?

A fraqueza da memória dá
fortaleza aos homens. 
 in 'Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas'
Tradução de Paulo Quintela


terça-feira, 18 de junho de 2019

"Gato num apartamento vazio" - Poema de Wislawa Szymborska


Patrick William Adam, Orange And Blue, The Library At Ardilea, 1911


Gato num apartamento vazio


Morrer não é coisa que se faça a um gato.
Que há de um gato fazer
num apartamento vazio?
Subir às paredes?
Roçar-se nos móveis?
Aparentemente não mudou nada
e no entanto está tudo mudado.
Continua tudo no seu lugar
e no entanto está tudo fora do sítio.
E à noite a lâmpada já não está acesa.

Ouvem-se passos nas escadas,
mas não são os mesmos.
A mão que põe o peixe no prato
também já não é a que o punha.

Há aqui qualquer coisa que já não começa
à hora do costume,
qualquer coisa que não se passa
como deveria passar-se.
Havia aqui alguém que há muito estava e estava
e que de repente desapareceu
e agora insistentemente não está.

Procurou-se em todos os armários,
revistaram-se as estantes,
espreitou-se para debaixo do tapete.
Violou-se até a proibição
de desarrumar os papéis.
Que mais se pode fazer?
Dormir e esperar.

Quando regressar, ele vai ver,
ele vai ver quando chegar.
Vai ficar a saber
que isto não é coisa que se faça a um gato.
Caminhar-se-á em direção a ele
como que contrariado,
devarinho, com patas amuadas.
E nada de saltos ou mios.
 Pelo menos ao princípio.
Patrick William Adam, The library at Tyninghame, 1925


"O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba receber." - Artur da Távola

segunda-feira, 17 de junho de 2019

"Os gatos" - Poema de Manuel António Pina


Wilhelm Friedrich Johann Schwar (German painter, 1860-1943), 
 Mother with her three kittens, 1894


Os gatos


Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos


Manuel António Pina

In Como se desenha uma casa; ed. Assírio & Alvim, 2011


Wilhelm Schwar, Mother with her three kittens


“O ideal da tranquilidade é um gato sentado.”

 Wilhelm Schwar, A Tempting Treat, 1909


"Uma casa sem gato é como um aquário sem peixe."


(Jean-Louis Hue)


domingo, 16 de junho de 2019

"Poema de Sete Faces" - Carlos Drummond de Andrade


John French Sloan, Renganeschi's Saturday Night, 1912



Poema de Sete Faces


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, 
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


Carlos Drummond de Andrade
,
Alguma poesia, 1930
 
 

sábado, 15 de junho de 2019

"Ressurreição" - Poema de Miguel Torga


Hugh Allan (Scottish, 1862 - 1909), Rural Cottages, Date unknown



Ressurreição


Porque a forma das coisas lhe fugia,
O poeta deitou-se e teve sono.
Mais nenhuma ilusão apetecia,
Mais nenhum coração era seu dono.

Cada fruto maduro apodrecia;
Cada ninho morria de abandono;
Nada lutava e nada resistia,
Porque na cor de tudo havia outono.

Só a razão da vida via mais:
Terra, sementes, caules, animais
Descansavam apenas um momento.

E o vencido poeta despertou
Vivo como a certeza dum rebento
Na seiva do poema que sonhou.


Miguel Torga
Libertação
1944

sexta-feira, 14 de junho de 2019

"Correm turvas as águas deste rio" - Poema de Luís de Camões


Patrick William Adam, Notre Dame and the Seine, Private Collection



Correm turvas as águas deste rio


Correm turvas as águas deste rio
que as do Céu e as do monte as enturbaram;
os campos florecidos se secaram,
intratável se fez o vale, e frio.

Passou o verão, passou o ardente estio,
umas coisas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece.


Luís de Camões
,
Sonetos


Patrick William Adam, Pont Neuf, near the Wine Market at the Edge of the Seine, Private Collection


Jornada

 
Tão longa a jornada!
E a gente cai, de repente,
No abismo do nada.


Helena Kolody
(Haicai) 

quinta-feira, 13 de junho de 2019

"Paz" - Poema de Teixeira de Pascoaes




Como ao terror do Inferno
Sucedeu
O horror do Nada!
A inquietação moderna,
A antevisão
Da cósmica catástrofe,
Prometida
Por sábios e teólogos
Apocalípticos.
Divino Orfeu, vem tu, salvar-nos.
Tange de novo a Lira!
Amansa as feras.
Que o teu cantar volatilize
A estátua em bronze do Deus Marte!
A esculpa, em oiro amanhecente,
Sobre o mais alto
Píncaro do mundo,
O Anjo simbólico
Da Paz!


Teixeira de Pascoaes, 
Últimos Versos,
 in Obras Completas de Teixeira de Pascoaes


A alma não é mais
Que transcendente imagem
De tudo quanto abrange
A luz do nosso olhar.
É o retrato perfeito
E fiel duma paisagem:
Tem uma serra ao fundo, e, depois dela, o mar.


Teixeira de Pascoaes



quarta-feira, 12 de junho de 2019

"Num Bairro Moderno" - Poema de Cesário Verde


Júlio Resende, Vendedeiras, 1974



Num Bairro Moderno 


Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama do papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho da horta aglomerada
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a.
Pôs-se de pé, ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." É muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, ao bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
"Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!..."

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantamos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.

"Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!"
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre, afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,
Ouço um canário - que infantil chilrada!
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras. 
 in 'O Livro de Cesário Verde'

terça-feira, 11 de junho de 2019

"Primavera" - Poema de Augusto dos Anjos


Patrick William Adam, In the Garden, the Knoll, North Berwick, 1915
 

Primavera

A meu irmão Odilon dos Anjos


Primavera gentil dos meus amores,
- Arca cerúlea de ilusões etéreas,
Chova-te o Céu cintilações sidéreas
E a terra chova no teu seio flores!

Esplende, Primavera, os teus fulgores,
Na auréola azul dos dias teus risonhos,
Tu que sorveste o fel das minhas dores
E me trouxeste o néctar dos teus sonhos!

Cedo virá, porém, o triste outono,
Os dias voltarão a ser tristonhos
E tu hás de dormir o eterno sono,

Num sepulcro de rosas e de flores,
Arca sagrada de cerúleos sonhos,
Primavera gentil dos meus amores!


Augusto dos Anjos


Patrick William Adam, Tulips, Forgetmenots, 1928


Repuxo Iluminado

 
Em líquidos caules,
irisadas flores d'água
cintilam ao sol.


Helena Kolody
(Haicai) 
 
 

domingo, 9 de junho de 2019

"O Bicho Harmonioso" - Poema de Vitorino Nemésio


Ivan Aivazovsky, The Bay of Naples, 1845



O Bicho Harmonioso


Eu gostava de ter um alto destino de poeta,
Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes
E as raparigas que os leem quando eles já são tão leves
que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.

Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata;
Abstratos mas vivos;
Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às ervas grossas da chuva
E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco!

Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino.

Depois, dar a minha Mãe a glória de me ter tido;
A meu Pai, vendado de terra, um halo da minha luz; e tocar tudo,
Onde eu houvesse estado, de uma sagração natural; ‑
Não digo como as Virgens Aparecidas,
Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos,
Mas como certo orvalho de que me lembro, em pequeno –
Para lá da janela a luz cortada por chuva,
E uma prima que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao fundo.

Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir, vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor forrado de desgosto,
Como as estrelas encobertas,
Que, depois de girar a nuvem, mostram como estão altas:

Tudo isto seria aquele poeta que não sou,
Feito graça e memória,
Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.

Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No meu buraco vil de bicho harmonioso.

Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem fremente dos meus dedos num pouco de terra
Estranho fóssil!

Boulogne-sur-Seine, Páscoa de 1935

Vitorino Nemésio
Publicado em O Bicho Harmonioso, 1938



Ivan Aivazovsky, The Bay of Naples, 1841



Sempre madrugada


Para quem viaja ao encontro do sol,
é sempre madrugada.


Helena Kolody

"Liberdade" - Poema de Paul Éluard





Liberdade


Nos meus cadernos de escola
no banco dela e nas árvores
e na areia e na neve
escrevo o teu nome

Em todas as folhas lidas
nas folhas todas em branco
pedra sangue papel cinza
escrevo o teu nome

Nas imagens todas de ouro
e nas armas dos guerreiros
nas coroas dos monarcas
escrevo o teu nome

Nas selvas e nos desertos
nos ninhos e nas giestas
no eco da minha infância
escrevo o teu nome

Nas maravilhas das noites
no pão branco das manhãs
nas estações namoradas
escrevo o teu nome

Nos meus farrapos de azul
no charco sol bolorento
no lago da lua viva
escrevo o teu nome

Nos campos e no horizonte
nas asas dos passarinhos
e no moinho das sombras
escrevo o teu nome

No bafejar das auroras
no oceano nos navios
e na montanha demente
escrevo o teu nome

Na espuma fina das nuvens
no suor do temporal
na chuva espessa apagada
escrevo o teu nome

Nas formas mais cintilantes
nos sinos todos das cores
na verdade do que é físico
escrevo o teu nome

Nos caminhos despertados
nas estradas desdobradas
nas praças que se transbordam
escrevo o teu nome

No candeeiro que se acende
no candeeiro que se apaga
nas minhas casas bem juntas
escrevo o teu nome

No fruto cortado em dois
do meu espelho e do meu quarto
na cama concha vazia
escrevo o teu nome

No meu cão guloso e terno
nas suas orelhas tesas
na sua pata desastrada
escrevo o teu nome

No trampolim desta porta
nos objetos familiares
na onda do lume bento
escrevo o teu nome 

Na carne toda rendida
na fronte dos meus amigos
em cada mão que se estende
escrevo o teu nome

Na vidraça das surpresas
nos lábios todos atentos
muito acima do silêncio
escrevo o teu nome

Nos refúgios destruídos
nos meus faróis arruinados
nas paredes do meu tédio
escrevo o teu nome

Na ausência sem desejos
na desnuda solidão
nos degraus mesmos da morte
escrevo o teu nome

Na saúde rediviva
aos riscos desaparecidos
no esperar sem saudade
escrevo o teu nome

Por poder de uma palavra
recomeço a minha vida
nasci para conhecer-te
nomear-te

Liberdade.


Paul Éluard
trad.Jorge de Sena

sábado, 8 de junho de 2019

"Mundo interior" - Poema de Machado de Assis


George Clausen (British, 1852-1944), Ploughing, 1889



Mundo interior


Ouço que a Natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
De sol à ínfima luzerna.

Ouço que a natureza, — a natureza externa, —
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.

E contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia — e dorme.


Machado de Assis,
em Ocidentais (1901)

quarta-feira, 5 de junho de 2019

"Mocidade e Morte" - Poema de Castro Alves


 Jean Geoffroy, Visit day at the Hospital,1889



Mocidade e Morte

E perto avisto o porto
Imenso, nebuloso e sempre noite
Chamado — Eternidade.
(Laurindo)

Lasciate ogni speranza, voi ch′entrate
(Dante)


Oh! eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh'alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n'amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
— Árabe errante, vou dormir à tarde
A sombra fresca da palmeira erguida.

Mas uma voz responde-me sombria:
Terás o sono sob a lájea fria.

Morrer... quando este mundo é um paraíso,
E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! o seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas.
Vem! formosa mulher — camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas,
Minh'alma é a borboleta, que espaneja
O pó das asas lúcidas, douradas ...

E a mesma voz repete-me terrível,
Com gargalhar sarcástico: — impossível!

Eu sinto em mim o borbulhar do gênio,
Vejo além um futuro radiante:
Avante! — brada-me o talento n'alma
E o eco ao longe me repete — avante! —
O futuro... o futuro... no seu seio...
Entre louros e bênçãos dorme a glória!
Após — um nome do universo n’alma,
Um nome escrito no Panteon da história.

E a mesma voz repete funerária:
Teu Panteon — a pedra mortuária!

Morrer — é ver extinto dentre as névoas
O fanal, que nos guia na tormenta:
Condenado — escutar dobres de sino,
— Voz da morte, que a morte lhe lamenta —
Ai! morrer — é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher — no visco
Da larva errante no sepulcro fundo,

Ver tudo findo... só na lousa um nome,
Que o viandante a perpassar consome.

E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito
Um mal terrível me devora a vida:
Triste Ahasverus, que no fim da estrada,
Só tem Por braços uma cruz erguida.
Sou o cipreste, qu'inda mesmo florido,
Sombra de morte no ramal encerra!
Vivo — que vaga sobre o chão da morte,
Morto — entre os vivos a vagar na terra.

Do sepulcro escutando triste grito
Sempre, sempre bradando-me: maldito!

E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,
Quando a sede e o desejo em nós palpita..
Levei aos lábios o dourado pomo,
Mordi no fruto podre do Asfaltita.
No triclínio da vida — novo Tântalo
O vinho do viver ante mim passa...
Sou dos convivas da legenda Hebraica,
O estilete de Deus quebra-me a taça.

É que até minha sombra é inexorável,
Morrer! morrer! soluça-me implacável.

Adeus, pálida amante dos meus sonhos!
Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos!
Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga
Os prantos de meu pai nos teus cabelos.
Fora louco esperar! fria rajada
Sinto que do viver me extingue a lampa...
Resta-me agora por futuro — a terra,
Por glória - nada, por amor — a campa.

Adeus... arrasta-me uma voz sombria,
Já me foge a razão na noite fria!...

 1864

segunda-feira, 3 de junho de 2019

"Infância" - Poema de Helena Kolody


Simon Glücklich (1863 - 1943), Blind men’s buff, Date unknown


Infância


Aquelas tardes de Três Barras,
Plenas de sol e de cigarras!

Quando eu ficava horas perdidas
Olhando a faina das formigas
Que iam e vinham pelos carreiros,
No áspero tronco dos pessegueiros.

A chuva-de-ouro
Era um tesouro,
Quando floria.
De áureas abelhas
Toda zumbia.
Alfombra flava
O chão cobria...

O cão travesso, de nome eslavo,
Era um amigo, quase um escravo.

Merenda agreste:
Leite crioulo,
Pão feito em casa,
Com mel dourado,
Cheirando a favo.

Ao lusco-fusco, quanta alegria!
A meninada toda acorria
Para cantar, no imenso terreiro:
“Mais bom dia, Vossa Senhoria”...
“Bom barqueiro! Bom barqueiro...”
Soava a canção pelo povoado inteiro
E a própria lua cirandava e ria.

Se a tarde de domingo era tranquila,
Saía-se a flanar, em pleno sol,
No campo, recendente a camomila.
Alegria de correr até cair,
Rolar na relva como potro novo
E quase sufocar, de tanto rir!

No riacho claro, às segundas-feiras,
Batiam roupas as lavadeiras.
Também a gente lavava trapos
Nas pedras lisas, nas corredeiras;
Catava limo, topava sapos
(Ai, ai, que susto! Virgem Maria!)

Do tempo, só se sabia
Que no ano sempre existia
O bom tempo das laranjas
E o doce tempo dos figos...

Longínqua infância... Três Barras
Plena de sol e cigarras! 

in A Sombra no Rio, 1951



Simon Glücklich, Children in the evening


Arco-íris

Arco-íris no céu.
Está sorrindo o menino
Que há pouco chorou.


Helena Kolody
(Haicai)