segunda-feira, 21 de agosto de 2023

"Lisboa" - Poema de António Gomes Leal


Estêvão Soares (Pintor português, 1914-1992), Vista de Lisboa, Portugal.

 
Lisboa

 
De certo, capital alguma neste mundo
Tem mais alegre sol e o céu mais cavo e fundo,
Mais colinas azuis, rio d'águas mais mansas,
Mais tristes procissões, mais pálidas crianças,
Mais graves catedrais  e ruas, onde a esteira
Seja em tardes d'estio a flor de laranjeira!

A Cidade é formosa e esbelta de manhã!
É mais alegre então, mais límpida, mais sã;
Com certo ar virginal ostenta suas graças,
Há vida, confusão, murmúrios pelas praças;
—  E, às vezes, em roupão, uma violeta bela
Vem regar o craveiro e assoma na janela. 

A Cidade é beata  e, às lúcidas estrelas,
O Vício à noite sai às ruas e às vielas,
Sorrindo a perseguir burgueses e estrangeiros;
E à triste e dúbia luz dos baços candeeiros,
Em bairros sepulcrais, onde se dão facadas
Corre às vezes o sangue e o vinho nas calçadas! 
 
 As mulheres são vãs; mas altas e morenas,
D'olhos cheios de luz, nervosas e serenas,
Ébrias de devoções, relendo as suas Horas;
Outras fortes, cruéis, os olhos cor d'amoras,
Os lábios sensuais, cabelos bons, compridos...
E às vezes, por enfado, enganam os maridos! 

Os burgueses banais são gordos, chãos, contentes,
Amantes de Cupido, avaros, indolentes,
Graves nas procissões, nas festas e nos lutos,
Bastante sensuais, bastante dissolutos;
Mas humildes cristãos!  e, em lúgubres momentos,
Tendo, ainda, cruéis saudades dos conventos! 

E assim ela se apraz num sono vegetal,
Contrária ao Pensamento e hostil ao Ideal!
—  Mas mau grado assim ser cruel, avara, dura,
Como Nero também dá concertos à lua,
E, em noites de verão quando o luar consola,
Põe ao peito a guitarra e a lírica viola. 

No entanto a sua vida é quase intermitente,
Afunda-se na inação, feliz, gorda, contente;
Adora ainda as ações dos seus navegadores
Velhos heróis do mar; detesta os pensadores;
Faz guerra a Vida, à Ação, ao Ideal  e ao cabo
É talvez a melhor amiga do Diabo! 
 

António Gomes Leal
1848-1921), in 'Claridades do sul'
Lisboa : Braz Pinheiro, 1875
 
 

Claridades do sul / Gomes Leal. - 2ª ed. rev. e aument.
 Lisboa : Emp. da Historia de Portugal, 1901. - 349 p. (daqui)
 

Claridades do Sul
 
Volume de poesias de Gomes Leal, de 1875. onde, como o autor bem reconhece no posfácio intitulado "Algumas palavras", confluem "muitas e várias correntes do espírito humano, e muitas impressões, muitas nobres ideias do seu tempo", como sendo as influências diversas do romantismo social de Hugo, o humorismo satânico de Heine, o baudelairianismo, espelhado na visão decandentista da cidade ou no visionarismo sinestésico dos sonetos intitulados "O Visionário ou Som e Cor" ("Alucina-me a Cor! - A Rosa é como a Lira, / A Lira pelo tempo há muito engrinalada, / E é já velha a união, a núpcia sagrada / Entre a cor que nos prende e a nota que suspira."). 
Aludindo ao título, o autor classifica o seu livro como sendo o "dum meridional, mas dum meridional moderno, que celebra o Sol porque desperta o homem para a ação, para a Vida e para o Trabalho e que achou curioso, no seu tempo, fazer um livro de vida, de imaginação, de ironia, de sol, e de liberdade - o mais heroico dos ideais." (daqui)
 

Luciano dos Santos (Pintor e professor português, 1911 - 2006),
"Rossio - Lisboa",
1947 (Praça D. Pedro IV, Lisboa, Portugal).


Lisboa

"No largo, a manhã resplandecia. Depois dos dias de chuva, aquele sol delicioso dava à cidade a alegria de um renascimento: até dois moços que num pátio lavavam uma carruagem a baldes de água e os galegos que palravam à beira do chafariz pareciam tão satisfeitos como os canários que gorjeavam nas janelas."

Eça de Queirós (1845 - 1900), excerto de 'A Capital', 1925
 


'A Capital'  de Eça de Queirós. Editor: 11 X 17. 
Edição/reimpressão: 05-2015 (daqui)

A Capital é um romance do escritor português Eça de Queirós publicado postumamente em 1925, sob a orientação de seu filho José Maria Eça de Queirós. Obra iniciada em 1877, A Capital relata a história da ambição social, profissional e pessoal da personagem principal, Artur Corvelo, que acompanhamos ao longo do seu amadurecimento emocional e consequente resignação à triste realidade. A história desenrola-se por diferentes épocas e locais. Começa na sua "resguardada" infância, atravessa por uma adolescência contemplativa e termina já na sua enfadada vida adulta. 

A Capital é uma obra considerada normalmente pela crítica portuguesa uma novela clássica e de qualidade sobre a antinomia das relações humanas e um retrato credível e bem-escrito do século XIX português, em particular das famosas tertúlias lisbonenses e seus defeitos e virtudes, do enraizamento das ideias republicanas, da influência espanhola na vida boémia da capital e da transformação moral geral de uma sociedade tradicionalista, sendo também considerada (apesar de ser sobre, e resultado do século XIX), de uma atualidade sarcástica sobre a mentalidade coletiva portuguesa. (daqui)
 
José Saramago, livro A Jangada de Pedra

Fonte: https://citacoes.in/citacoes/103147-jose-saramago-chegaram-a-lisboa-ao-cair-da-tarde-na-hora-em-que/
José Saramago, livro A Jangada de Pedra

Fonte: https://citacoes.in/citacoes/103147-jose-saramago-chegaram-a-lisboa-ao-cair-da-tarde-na-hora-em-que/
José Saramago, livro A Jangada de Pedra

Fonte: https://citacoes.in/citacoes/103147-jose-saramago-chegaram-a-lisboa-ao-cair-da-tarde-na-hora-em-que/

domingo, 20 de agosto de 2023

"As Minhas Horas" - Poema de Teixeira de Pascoaes


João Cristino da Silva (Pintor português da época romântica, 1829 - 1877), Cinco Artistas em Sintra, 1855. 
Óleo sobre tela, 87 X 129 cm. Museu do Chiado, Lisboa, Portugal

[Neste quadro realizado propositadamente para a Exposição Universal de 1855, podem-se ver os artistas Francisco Augusto Metrass atrás de Tomás da Anunciação (a figura central, sentado com a perna esquerda avançada usando uma capa clara e chapéu), o escultor Vítor Bastos tendo ao seu lado Cristino a desenhar e José Rodrigues sentado.] (daqui)
 
 
As Minhas Horas

I
Horas de dúvida cruel e de tortura,
Que se abraçam a mim, geladas, a tremer...
E levam no seu peito, impressa a tinta escura,
A efígie dolorosa e humana do meu ser.
Horas em que o Passado, o ermo, o solitário,
Nos visita e nos fala em voz de cinza e poeira...
Ei-lo surgindo, além, mais alvo que um sudário,
E, como Hamlet, traz, nas mãos, uma caveira.
Horas em que nos pesa a velha e doida herança,
O remorso velhinho em luta contra nós.
E somos pequenina e lívida criança,
Entre espectros hostis de trágicos avós!
Momentos de saudade eterna, quando tudo
Volve para o meu rosto um vago rosto ausente...
Quando, em alma despida e coração desnudo,
Eu ando ao vento frio e choro intimamente.
E logo me disperso em formas espectrais.
Sou aparência vã da Dor que me consome.
Sou alguém que a si mesmo exclama: nunca mais!
E, súbito, se vê fantástico e sem nome.
Dias mortos de Inverno os céus escurecendo...
Erma terra ao luar, cadáver insepulto.
Negra noite molhada e lúgubre, gemendo,
Que em nosso coração parece tomar vulto.
Horas de indiferença e inerte calmaria,
Isentas de prazer, de angústias, fome e sede,
Em que sou, de mim próprio, a máscara vazia,
Meu retrato pintado a sombra, na parede.
Horas falsas de cor em pardos tons de mágoa,
Em que de tudo, tudo, assim nos desprendemos,
Como a água a deixar em névoa a própria água...
E a dor de não sofrer, a dor maior, sofremos!
Horas em que abandono as regiões divinas...
Triste, desencantado, exposto às tempestades,
Sob a treva a chover dum céu, todo em ruínas,
Onde pairam — que horror! — defuntas Divindades!
Sou a lástima eterna! A humana voz sangrando,
Sem um eco de amor que, ao longe, a repercuta!
Voz, num deserto imenso e negro, suplicando!
Sempiterna oração que nenhum Deus escuta!

Momentos de aventura, ímpetos sobre-humanos...
Ó viagens no mar! Ó praias do Nascente!
E gostavam de olhar meus olhos lusitanos
Água e céu, água e céu, indefinidamente!
Desejei afrontar os grandes temporais!
Num relâmpago ver o teu perfil, ó Morte!
Ver as ondas bailar em loucas saturnais,
Ter por único amparo a frágil mão da Sorte!
Horas em que sonhei, nas ruínas, meditar;
Nesses templos de pedra e sombra, à luz da Lua,
Onde algum velho Deus, pobre fantasma a errar,
Pára, junto de nós, e é fria estátua nua...
E sonhei vaguear, saudoso e solitário,
Sob um luar nascido em montes da Judeia...
Ver, em sombra espectral, o drama do Calvário
E a representação fantástica da Ceia!
Ver Marta, Salomé, nas trevas da Paixão!
E, aos pés da cruz, tombado, o corpo de Maria.
Ver, à nublosa luz de íntima invocação,
O que viu Madalena, à clara luz do dia...
Ser nómada! Viver errante! Que aventura
Nesses desertos da Ásia! Eu vejo, dentro em mim,
Planícies de aridez extensas de brancura;
Ermos que a Sede alonga em areais sem fim!
E desejei perder-me entre as florestas virgens!
Ser homem primitivo, em luta contra as feras!
E cercado, a tremer, de pálidas vertigens,
Meus olhos sepultar na boca das crateras!
O negro e doido encanto, em nós, a rir, a rir!
Dir-se-á que nos deslumbra ardente labareda!
Que prazer não seria, ó meus irmãos, sentir
Num abismo sem fundo uma perpétua queda!
Momentos de delírio e de desvairamento,
De grandes sensações que se apagavam logo!
Momentos em que fui mais louco do que o vento.
Fazendo, à minha vida, o que ele faz ao fogo.
O trágico destino! Horror! Fatalidade!
Almas que andam, de dia e noite, embriagadas.
Sensíveis para além da Sensibilidade
E vivas para além das coisas animadas!
Ai de nós! Ai de nós! Vede que estranha sorte!
Cair, cair, cair, sem descansar jamais...
E esse espaço que vai do nascimento à morte
É a hora em que o profundo Abismo contemplais!

II 
 Horas em que eu medito, absorto e comovido,
Na branca solidão da noite misteriosa,
Sob a Lua a emanar etéreo mármor fluido,
Que é um sepulcro evolado em sombra luminosa.
Momentos em que anima os pobres versos meus
A luz espiritual, que, em névoas, resplandece,
Quando, de joelhos, rezo e a tarde me entristece
E o meu ansioso olhar quase descobre Deus.
Momentos em que vivo o sonho, oculto e mudo,
Sonhado em cada cousa humilde, que se esconde;
Quando vejo crescer, crescer, diante de tudo,
Essa interrogação a que ninguém responde!
Momentos em que sou o incompreendido, o eleito,
Sentindo-me afogar na torva escuridade...
E toco a Imperfeição, a fim de ser perfeito,
Porque entender a treva é ser a claridade.
E posso contemplar o Abismo; ver-lhe o fundo!
E trémulo de medo, ébrio de horror e encanto,
Oferto a Deus, à Dor e aos astros o meu canto,
Ao percorrer sozinho a noite deste mundo.
E vou cantando o amor e a terra abençoada,
Quando a Esperança inflora os arvoredos nus,
E o sorriso dum Anjo, além, é madrugada,
E todo o espaço vibra em comoções de luz!
E sou nuvem de sonho, ao vento que perpassa.
A divina Pureza, a Infância original,
A essência da Alegria, o espírito da Graça
E a presença da Dor, sombria, já carnal...
Horas em que me exalto e elevo intimamente.
Nos meus olhos, um astro acorda: uma oração,
Uma lágrima pura, à luz do sol, tremente,
Uma gota de orvalho, em brasa, na amplidão...
Horas em que me enleva o marulhar das fontes.
A dor da água aflora, em mimos de verdura.
Manhãs de Abril, doirando os pobrezinhos montes,
Esboçam o perfil sagrado da Ternura.
Horas em que meu ser, subindo além da Vida,
Mostra a sua figura, ao longe, esplendorosa;
Aqui, na terra obscura, é feia e dolorosa,
E lá, cristal aceso e pérola incendida!
Horas em que a Verdade às almas se revela...
Horas de Eternidade e graça repentina,
Quando ouço murmurar a mais longínqua estrela
E o silêncio em que desce, ao mundo, a voz divina.
Horas em que uma fonte, humilde, que chorava,
Deu formas de harmonia ao meu primeiro canto...
Dos meus lábios nascido, em pleno céu, pairava,
Caótico de sombra e de noturno espanto!
Horas em que, sofrendo, a Divindade imploro;
E sinto, no meu peito, o coração aflito!
E há Serafins bailando, ao som da Lira de ouro
Que a gente vê brilhar, à noite, no Infinito...
Horas vivas de luz, de amor e de esperança
Que infloram, ao passar, as bordas dos caminhos...
E fico extasiado a ouvir, como em criança,
A alegria do sol cantar nos passarinhos!
Horas de oiro em que sou igreja alumiada.
Íntima aleluia etérea me deslumbra...
Surge, d'além da serra, a Deusa da alvorada,
E o seu perfil, lá fora, alveja na penumbra.
Horas que são irmãs da Hora derradeira.
Em que a terra nos abre o seio todo em flor.
E alcançamos, enfim, presença verdadeira
E somos nós, enfim, diante do Senhor.


Teixeira de Pascoaes
(
1877 - 1952), Terra Proibida, 1899
 Tipografia França Amado, Coimbra, 1900 (1.ª ed.).


 
 
“É preciso que o nosso espírito chegue a um princípio, em que o nosso coração acredite.” 
  
Teixeira de Pascoaes, in Senhora da Noite / Verbo Escuro
Editor: Assírio & Alvim
 
 
 

“Em nós, a existência é um mar; a vida uma gota de água.” 

Teixeira de Pascoaes, in Senhora da Noite / Verbo Escuro
Editor: Assírio & Alvim
 

sábado, 19 de agosto de 2023

"A Vida é líquida" - Poema de Hilda Hilst


Eugène Laermans (Belgian painter, 1864-1940), L'Ivrogne, 1898 (Social realism),
Bruxelles, musées royaux des Beaux-Arts de Belgique.
 


A Vida é líquida

I

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A Vida é líquida.

II

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.

III

Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida.

IV

E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

V

Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.


Hilda Hilst
, in
"Alcoólicas"
 "Alcoólicas" é uma série de poemas, lançada em reunião com "Do Desejo""Amavisse",  
"Sobre a tua grande face" e "Da noite" no livro "Do Desejo", em 1992. (daqui)


Eugène Laermans, The Blind Woman, 1898, Royal Museum of Fine Arts Antwerp.

 
 
Eugène Laermans, La Promenade, 1907, Bruxelles, Musée Charlier.
 

Realismo social
 
Realismo social é o termo usado para designar trabalhos produzidos por pintores, gravadores, fotógrafos, escritores e cineastas que visam chamar a atenção para as reais condições sociopolíticas da classe trabalhadora como meio de criticar as estruturas de poder por trás dessas condições. Embora as características do movimento variem de nação para nação, quase sempre utiliza uma forma de realismo descritivo ou crítico. Tendo suas raízes no realismo europeu, o realismo social visa revelar as tensões entre uma força opressora hegemónica e suas vítimas.

O termo é às vezes usado de forma mais restrita para um movimento artístico que floresceu entre as duas Guerras Mundiais como reação às dificuldades e problemas sofridos pelas pessoas comuns após a Quinta-Feira Negra. Para tornar sua arte mais acessível a um público mais amplo, os artistas recorreram a retratos realistas de trabalhadores anónimos e também de celebridades como símbolos heroicos de força em face à adversidade. O objetivo dos artistas ao fazer isso era político, pois desejavam expor as condições de deterioração das classes pobres e trabalhadoras e responsabilizar os sistemas governamentais e sociais existentes. O realismo social não deve ser confundido com o realismo socialista, a forma de arte oficial soviética que foi institucionalizada por Josef Stalin em 1934 e mais tarde adotada por partidos comunistas aliados em todo o mundo. Também é diferente do realismo, pois não apenas apresenta as condições dos pobres, mas o faz transmitindo as tensões entre duas forças opostas, como entre os fazendeiros e seu senhor feudal. No entanto, às vezes os termos realismo social e realismo socialista são usados alternadamente. (daqui)
 
 
Eugène Laermans, Les Émigrants, 1896, Musée royal des Beaux-Arts d'Anvers. (Social realism)

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

"Ámen" - Poema de José Agostinho Baptista


Albert Edelfelt (Finnish-Swedish painter, 1854-1905), Women Outside the Church at Ruokolahti
or Women of Ruokolahti on the Church Hill, 1887, AteneumHelsinki.
 


Ámen


Em círculo,
estão os círios e as candeias,
nas aldeias de novembro elas também estão
em círculo,
as mães que fecham a escuridão.
Às vezes a neve cai sobre as palavras que
os anjos aprenderam no bosque noturno e
então abre-se como um livro a casa de luzes
vermelhas,
acendendo, num porto antigo, os olhos
profundos do abismo e da desolação.
Rezamos em silêncio e os sinos dobram e
na curva da colina
já se avista o cortejo da música.

Não podemos entrar.
Não há lugar aqui para as rosas do pai,
inúteis, magoadas pelo furor das nossas mãos.
A mortalha arrefece.
Arrefecem longamente as estrelas que um
dia vi sobre os jardins. Sem regresso
estão os cisnes parados, quando a neve cai. 


José Agostinho Baptista,
in "Agora e na Hora da Nossa Morte".
Assítio & Alvim, edição/reimpressão: 04-1998.
 
["Agora e na Hora da Nossa Morte" é um livro-duelo com Deus. José Agostinho Baptista escreveu-o secretamente enquanto assistia à morte de uma pessoa amada. Nunca a sua poesia foi tão arriscada e íntima.] (daqui)

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

"Deste modo ou daquele modo" - Poema de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa


 
João Vaz (Pintor e professor português, 1859-1931), Vista do Castelo de Leiria, Portugal.



Deste modo ou daquele modo

XLVI

Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.

Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o Sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.

s.d.

Alberto Caeiro
, “O Guardador de Rebanhos”.
In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.
(Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

 

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

"Eu poeta me confesso" - Poema de João Braz



Inês Dourado
(Pintora portuguesa, n. 1958), Lagos (Algarve, sul de Portugal), 2016.
Acrílico s/tela, 50 x 40 cm.
 

Eu poeta me confesso

l

Porque vim no Algarve à luz do dia,
Menino me criei perto do mar
E, com ele, aprendi a rebeldia
Das ondas altaneiras a lutar...

Não sei se nas artérias eu teria
Sangue de avós heroicos a pulsar,
Ou se era de Poetas que trazia
Uma herança de sonho em meu olhar...

O certo é que intentei, louco e audaz,
A conquista da vida ( era rapaz,
Tinha por mim a esperança...), e na memória

Vejo-me ainda, coração ao alto
Como um pendão real, ir ao assalto
Com a plena certeza da vitória!

ll

E, porque com o mar tinha aprendido
O modo de lutar, rude e constante,
Ante a vida me achei ora caído,
Ora dominador e arrogante.

Agora, em agonias de vencido;
Logo a erguer-me, altivo e triunfante,
À minha luta dei maior sentido:
Fui mais alto, e mais fundo, a cada instante!

Lição eterna que do mar nos vem,
Entendia-a depois, como ninguém,
Ao ver que me era inútil a batalha...

Onda que sobe e desce, a vida corre.
Um sonho, mal que nasce logo morre,
E nada muda o que o destino talha!

III

Mordi o pó, quebrada a minha lança,
E meu pendão real feito em pedaços!
Herói falhado, abandonou-me a esperança
Que em tempos idos me estendera os braços...

Meus olhos tão alegres em criança,
Tinham só amarguras e cansaços
Em vez do sonho que me fora herança
De avós remotos – Césares ou Tassos...

Qual mísero mendigo de longada
Batendo às portas, sem que deem nada
À mão que leva em súplica, estendida,

Olhei as minhas pobres mãos morenas,
E vi que nelas me ficara, apenas,
Um jeito de pedir esmola à vida...

IV

Com muros de renúncia edifiquei
Um castelo de sombra e soledade...
E nele emparedado, me tornei
Castelão do desgosto e da saudade...

Dos restos de mim próprio me fiz rei,
– Rei triste sem orgulho e sem vaidade;
E foi o esquecimento a minha lei,
E foi a solidão minha vontade.

Castelo sem janelas e sem portas,
Por ele entrava o vento a horas mortas,
Para me consolar, piedosamente;

Depois, com dó de mim, ia-se embora
Correr o mundo pela noite fora,
Gritando versos meus a toda a gente!...

V

Mas, certo dia, as tuas mãos, nas minhas,
Num milagre sem par, vieram pôr
A ternura suavíssima que tinhas
Guardada pra me dar, ó meu Amor!

Não quis saber quem eras, se provinhas
De algum reino d'aquém ou d'além dor,
Pois mal te vi adivinhei que vinhas
Na graça e com a bênção do Senhor.

Desde que tu vieste, e que te tenho
Junto de mim, o meu castelo estranho
Até deixou de ser triste e sombrio...

E o meu amigo vento, assobiando
Por esse mundo, agora anda cantando
Que eu já vivo outra vez, que já me rio!

VI

Da minha alma varri o desalento,
E já o seu poder é mais que humano!
– Asa que torna ao céu, em movimento,
Nau que afronta de novo o oceano!

A vida, agora, um redobrado alento
Me anima e leva a conquistá-la, ufano,
Elmo a brilhar ao sol, bandeira ao vento,
Como um antigo imperador romano!

Já no meu peito o orgulho se faz chama!
Sou algarvio, descendo da moirama,
Tenho o perfil trigueiro, a fronte nobre...

E tenho ainda um grande Amor! – o teu,
Esta riqueza que o Senhor me deu
Para que nunca mais eu fosse pobre!

VII

Eis-me tentando a íngreme escalada
Que o meu anseio de mais além procura!
Meus sonhos, pelo azul em revoada
São dispersões de mim buscando altura!

Sinto a alma liberta, arrebatada,
E flui da minha boca a voz mais pura
Num canto que desperta a madrugada,
E que rasga o pavor da noite escura!

Para além do real, sinto-me o verso
Que faltava ao poema do universo,
O acento final, o último grito...

Espírito sem forma e sem idade,
Sopro divino – sou Eternidade!
Clarão de Estrela – atinjo o Infinito!


João Braz,
"Esta riqueza que o Senhor me deu", 1953

 


Inês Dourado, Branco e Sol, Alvor (Algarve, sul de Portugal).
Aguarela sobre papel Fabriano de 300g/140lb, 34,7 x 55 cm.
 
[Inês Dourado é uma premiada pintora portuguesa contemporânea. Dourado usa acrílico, óleo, aguarela, caneta gel, têmpera para criar paisagens urbanas figurativas, em papel e tela.
Inês Dourado nasceu em 1958, em Portugal. É licenciada em História da Arte e mestre em História da Arte Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Dourado expôs suas obras em Portugal, Espanha e Argentina, e suas obras estão em coleções particulares na Alemanha, Espanha, Suíça, França, Brasil, China, Austrália e EUA.
(daqui)]
 

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

"Retrato de mulher" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Winslow Homer (American painter and illustrator, 1836 - 1910), Reverie, 1872



Retrato de mulher


Algo de cereal e de campestre
Algo de simples em sua claridade
Algo sorri em sua austeridade 


Sophia de Mello Breyner Andresen
,
em “O Nome das Coisas”, Assírio & Alvim.
 
 
 
"O Nome das Coisas" de Sophia de Mello Breyner Andresen
Edição/reimpressão: 09-2015 
 
 
Sinopse

«O Nome das Coisas» foi publicado pela primeira vez em 1977, pela Moraes Editores. A edição que agora se apresenta mantém a antiga ortografia e obedece à fixação de texto levada a cabo por Carlos Mendes de Sousa e Maria Andresen Sousa Tavares. «O Nome das Coisas», diz-nos Fernando Cabral Martins no prefácio que preparou para esta edição, «[…] parece procurar uma geografia portuguesa e europeia, mas que logo se torna aérea, um espaço misturado de ideias, transmutado em alguma coisa de mais transparente. Desenha uma realidade que serve a uma habitação religiosa do mundo. Num primeiro momento, parece suspender a representação, construindo um mundo à parte. Logo, no entanto, a pregnância da história cria como que pequenas fissuras, e a presença de certas coisas exteriores passageiras e concretas impõe a opacidade e a impureza.» (daqui)
 

domingo, 13 de agosto de 2023

"Nada tão silencioso como o tempo" - Poema de Fiama Hasse Pais Brandão



Eva Gonzalès (French Impressionist painter, 1849 –1883), Le petit lever, 1875
 


Nada tão silencioso como o tempo


Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até nas íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve. 

Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.

Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.

Mas nós sentimos dentro do coração que somos
filhos diletos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida. 
 
 

 Eva Gonzalès, L'Indolence, 1871–72


"O segredo para ser infeliz é ter tempo livre para se preocupar se se é feliz ou não."

George Bernard Shaw
, em "Misalliance", 1910.
(Nobel de Literatura em 1925)
 
 

sábado, 12 de agosto de 2023

"Do amoroso esquecimento" - Poema de Mário Quintana


Alfred Stevens (Belgian painter, 1823–1906), Looking out to sea, ca. 1890 
 
 
 
Do amoroso esquecimento

 
Eu agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?


Mário Quintana
, Espelho mágico.
Porto Alegre: Editora do Globo, 1951.
 
 
Mário Quintana (1906-1994), "Espelho mágico", 1951.
 Coleção de quartetos com comentário de Monteiro Lobato,
Editora Globo
 

Resumo

"Espelho Mágico" é formado por 111 quadras de grande variação métrica, escritas em 1945, conforme indica Mário Quintana. Cada uma delas, distintamente numerada, tem seu próprio título que, além de anunciar, muitas vezes também trata de explicar o significado dos poemas. O tom de humor - marcante na personalidade do poeta - faz-se claro nesta obra, em versos de fina ironia que também dão espaço à preocupação acerca do fazer poético. (daqui)
  

Alfred Stevens (Belgian painter, 1823–1906), La parisienne japonaise, 1872.
Musée d'Art moderne et d'Art contemporain (Liège)



Do estilo


Fere de leve a frase... E esquece... Nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.


Mário Quintana
, Espelho mágico.
Porto Alegre: Editora do Globo, 1951.
 

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

"Mar Português" - Poema de Fernando Pessoa


José Malhoa (Pintor, desenhista e professor português, 1855–1933),
"O sonho do Infante" (Infante D. Henrique), 1905

Real Gabinete Português de Leitura.
 
 

Mar Português

X

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

s.d.

Fernando Pessoa
, in Mensagem.
Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934
(Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972)

 

Gil Eanes
, A dobra do Cabo Bojador em 1434, 
um importante marco dos Descobrimentos Portugueses.
 
 
 
Gil Eanes dobra o cabo Bojador (ver aqui)
 
Nas viagens para descobrir a costa ocidental africana os marinheiros enfrentaram lendas fabulosas e um mar tenebroso. Acreditavam que o Bojador era o fim do mundo. Mas o Infante D. Henrique estava convencido do contrário e Gil Eanes dobrou a barreira do medo, em 1434.

Gil Eanes nasceu em Lagos e habituou-se a ver o mar e a navegar nele. Estava longe de saber que um dia teria ousadia para desafiar medos e ficar na história dos Descobrimentos. Sendo navegador da Casa do Infante, em 1433 recebeu de D. Henrique a capitania de uma barca com o objetivo de dobrar o cabo que marcava o limite conhecido da costa ocidental africana. Partiu, chegou às ilhas Canárias onde fez alguns cativos, e regressou ao reino sem alcançar o Bojador, o grande obstáculo da navegação para sul.
 
Com o conhecimento, os meios e os instrumentos disponíveis na altura, a tarefa não seria assim tão simples: o cabo, rodeado de recifes e envolto quase sempre em nevoeiro, parecia aos olhos dos navegadores, quer cristãos quer muçulmanos, intransponível. O mundo conhecido acabava ali, naquelas águas ferventes habitadas por monstros marinhos, como rezavam as lendas. Muitos marinheiros arriscaram a perigosa viagem e falharam sempre. Diz-nos o historiador Damião Peres, com base numa carta régia do século XV, que ter-se-iam realizado 15 tentativas em 12 anos, nenhuma capaz de vencer o Bojador. Até 1434.

O Infante D. Henrique estava convencido que o mundo não acabava ali e incitou Gil Eanes a fazer-se de novo ao mar . “Daquela viagem – escreve o cronista Gomes Eanes de Zuraramenosprezando todo o perigo, dobrou o cabo a além, onde achou as cousas muito pelo contrário do que ele e os outros até ali presumiam”. O escudeiro do infante dobrou o cabo e navegou algumas milhas além do Bojador, até angra dos Ruivos, comprovando a teoria do terceiro filho do rei de Portugal. Ao invés de monstros encontrou uma terra desolada e deserta e, como prova de que ali tinha chegado, colheu algumas rosas silvestres que trouxe consigo, as rosas de Santa Maria (Echeveria).

Esta boa nova permitiu que os portugueses continuassem a escrever a epopeia dos descobrimentos marítimos. Um ano depois, Gil Eanes e Afonso Gonçalves Baldaia navegaram mais para sul, passaram o trópico de Câncer e chegaram ao que se presumia ser o rio do Ouro. Todos os detalhes das viagens eram devidamente anotados, o que se via dia e noite era informação vital para guiar futuros navegadores nos ventos e correntes dos novos mares. Ainda hoje os registos dos pilotos do século XV são uma referência no mundo. (daqui)
 
 
Nuno Gonçalves (Pintor português, c. 1420 - c. 1490),
 Infante D. Henrique (1394 - 1460), c. 1470 (detalhe).
 

Infante D. Henrique
 
Filho do rei João I e de D. Filipa de Lencastre, o Infante D. Henrique nasceu na cidade do Porto a 4 de março de 1394 e faleceu a 13 de novembro de 1460.

Ficou conhecido por o Navegador, mas foi-o de terra firme. O seu epíteto advém da forma como protegeu e instigou as primeiras viagens expansionistas, ficando para sempre ligado a este glorioso período da História de Portugal, sendo decisiva a sua ação no Norte de África e no Atlântico.

A sua obra já era de então conhecida na Europa, como atesta uma carta escrita pelo sábio italiano Poggio Bracciolini ao Infante, em 1448-1449. O letrado italiano compara os seus feitos aos de Alexandre, o Grande, ou aos de Júlio César, enaltecendo-os ainda mais por serem conquistas de locais desconhecidos de toda a Humanidade.

D. Henrique era um homem muito poderoso, como o atesta o título de Infante, que usava em detrimento de duque. Seguindo a tradição da época, recebeu uma educação exemplar, mas profundamente religiosa. A sua moral enquadra-se dentro do moralismo puritano inglês, que se revela também nos escritos de seu pai e de seus irmãos, preocupados em emitir juízos morais e em dar conselhos. Também ele deixou conselhos escritos e um breve tratado de teologia.

De entre os inúmeros cargos que exerceu foi "protetor" da Universidade de Lisboa, isto é, o procurador da instituição junto do rei, cargo de grande prestígio atribuído pelos reis apenas a figuras de grande importância social. Da sua ação dentro da Universidade destaca-se a renda que concedeu ao curso de Teologia. Fica ainda a dúvida sobre uma provável instituição da cadeira de Matemática ou de Astronomia, atribuição ligada a toda a mitologia criada em torno da sua pessoa.

Na verdade, o seu interesse pela navegação terá permitido patrocinar uma escola de cartografia, trazendo de Maiorca um judeu chamado Jaime, conhecedor da ciência. Contudo, nada aponta ainda para o uso de instrumentos de navegação astronómica e para a invenção da carta plana, instrumentos depois necessários nas navegações atlânticas, nem para a existência de uma grande escola em Sagres. Tudo isto faz parte da auréola que se foi criando à sua volta.

De facto, aquilo que sabemos desta personagem enigmática foi-nos deixado por Gomes Eanes de Zurara, na Crónica da Guiné, onde o Infante é exaltado de forma quase sobrenatural ("príncipe pouco menos que divinal"). O cronista traça o seu retrato psicológico dando grande ênfase às suas qualidades virtuosas e pias, como a castidade e o facto de não beber vinho. Segundo o seu relato, D. Henrique não era avarento, era um trabalhador aplicado, que para dedicar o tempo necessário aos seus projetos suprimia as horas de repouso noturno. O seu feitio obstinado revela-se na teimosia em manter Ceuta, ainda que o preço a pagar tenha sido a liberdade do seu irmão, D. Fernando, depois cognominado popularmente de "Infante Santo".

A D. Henrique se devem feitos como a tomada de Ceuta em parceria com seu pai e irmãos, embora também tenha participado no desastre de Tânger; a armada das Canárias; a guerra que os seus navios faziam aos infiéis, principalmente piratas; o povoamento das "descobertas" ilhas Atlânticas, particularmente notável na Madeira. Foi ele quem mandou vir da Sicília a cana-de-açúcar e os "técnicos" para supervisionarem o seu cultivo e a sua transformação, fazendo da Madeira uma importante região produtora de açúcar.

A sua figura foi guindada à galeria dos heróis nacionais entre finais do século XIX e princípios do século XX, inserindo-se numa corrente nacionalista que desejava "reaportuguesar" Portugal. Aquando do centenário do seu nascimento, a cidade do Porto, liderada pela voz de Joaquim de Vasconcelos, tomou a iniciativa das comemorações de forma a rivalizar com a celebração lisboeta do centenário de Camões. A ideia era equiparar o espírito da cidade à coragem, energia e iniciativa do Príncipe Navegador, erguendo-lhe uma estátua e atribuindo o seu nome a uma rua. Este mesmo espírito nacionalista levou a que muitos artistas o retratassem e o esculpissem, ou que a ele dedicassem obras, como a de Manuel Barradas, segundo o qual o "Infante fora grande por ser a encarnação fanática de uma ideia".

Outro facto que contribuiu para a sua notabilidade foi a divulgação, por Joaquim de Vasconcelos, dos painéis de São Vicente de Fora, atribuídos a Nuno Gonçalves, onde o artista português Columbano identificara uma das personagens como sendo o Infante. O homem do chapeirão aparece também no manuscrito da Crónica da Guiné, de Zurara, conservado na Biblioteca de Paris, o que reforça esta ideia. Assim, o Infante D. Henrique passa a ser uma das personagens de eleição do nacionalismo português, que dominou durante o Estado Novo, representando a coragem, o dinamismo e o espírito empreendedor do povo português. (daqui)

 

  “Eu tenho um sonho de que os meus quatro filhos pequenos um dia viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de pele, mas pelo seu caráter”. (Ver aqui)
 

Martin Luther King (1929 –1968), Nobel da Paz em 1964, in "Eu Tenho um Sonho"
 ("I Have a Dream") - Discurso público no dia 28 de agosto de 1963.