domingo, 20 de agosto de 2023

"As Minhas Horas" - Poema de Teixeira de Pascoaes


João Cristino da Silva (Pintor português da época romântica, 1829 - 1877), Cinco Artistas em Sintra, 1855. 
Óleo sobre tela, 87 X 129 cm. Museu do Chiado, Lisboa, Portugal

[Neste quadro realizado propositadamente para a Exposição Universal de 1855, podem-se ver os artistas Francisco Augusto Metrass atrás de Tomás da Anunciação (a figura central, sentado com a perna esquerda avançada usando uma capa clara e chapéu), o escultor Vítor Bastos tendo ao seu lado Cristino a desenhar e José Rodrigues sentado.] (daqui)
 
 
As Minhas Horas

I
Horas de dúvida cruel e de tortura,
Que se abraçam a mim, geladas, a tremer...
E levam no seu peito, impressa a tinta escura,
A efígie dolorosa e humana do meu ser.
Horas em que o Passado, o ermo, o solitário,
Nos visita e nos fala em voz de cinza e poeira...
Ei-lo surgindo, além, mais alvo que um sudário,
E, como Hamlet, traz, nas mãos, uma caveira.
Horas em que nos pesa a velha e doida herança,
O remorso velhinho em luta contra nós.
E somos pequenina e lívida criança,
Entre espectros hostis de trágicos avós!
Momentos de saudade eterna, quando tudo
Volve para o meu rosto um vago rosto ausente...
Quando, em alma despida e coração desnudo,
Eu ando ao vento frio e choro intimamente.
E logo me disperso em formas espectrais.
Sou aparência vã da Dor que me consome.
Sou alguém que a si mesmo exclama: nunca mais!
E, súbito, se vê fantástico e sem nome.
Dias mortos de Inverno os céus escurecendo...
Erma terra ao luar, cadáver insepulto.
Negra noite molhada e lúgubre, gemendo,
Que em nosso coração parece tomar vulto.
Horas de indiferença e inerte calmaria,
Isentas de prazer, de angústias, fome e sede,
Em que sou, de mim próprio, a máscara vazia,
Meu retrato pintado a sombra, na parede.
Horas falsas de cor em pardos tons de mágoa,
Em que de tudo, tudo, assim nos desprendemos,
Como a água a deixar em névoa a própria água...
E a dor de não sofrer, a dor maior, sofremos!
Horas em que abandono as regiões divinas...
Triste, desencantado, exposto às tempestades,
Sob a treva a chover dum céu, todo em ruínas,
Onde pairam — que horror! — defuntas Divindades!
Sou a lástima eterna! A humana voz sangrando,
Sem um eco de amor que, ao longe, a repercuta!
Voz, num deserto imenso e negro, suplicando!
Sempiterna oração que nenhum Deus escuta!

Momentos de aventura, ímpetos sobre-humanos...
Ó viagens no mar! Ó praias do Nascente!
E gostavam de olhar meus olhos lusitanos
Água e céu, água e céu, indefinidamente!
Desejei afrontar os grandes temporais!
Num relâmpago ver o teu perfil, ó Morte!
Ver as ondas bailar em loucas saturnais,
Ter por único amparo a frágil mão da Sorte!
Horas em que sonhei, nas ruínas, meditar;
Nesses templos de pedra e sombra, à luz da Lua,
Onde algum velho Deus, pobre fantasma a errar,
Pára, junto de nós, e é fria estátua nua...
E sonhei vaguear, saudoso e solitário,
Sob um luar nascido em montes da Judeia...
Ver, em sombra espectral, o drama do Calvário
E a representação fantástica da Ceia!
Ver Marta, Salomé, nas trevas da Paixão!
E, aos pés da cruz, tombado, o corpo de Maria.
Ver, à nublosa luz de íntima invocação,
O que viu Madalena, à clara luz do dia...
Ser nómada! Viver errante! Que aventura
Nesses desertos da Ásia! Eu vejo, dentro em mim,
Planícies de aridez extensas de brancura;
Ermos que a Sede alonga em areais sem fim!
E desejei perder-me entre as florestas virgens!
Ser homem primitivo, em luta contra as feras!
E cercado, a tremer, de pálidas vertigens,
Meus olhos sepultar na boca das crateras!
O negro e doido encanto, em nós, a rir, a rir!
Dir-se-á que nos deslumbra ardente labareda!
Que prazer não seria, ó meus irmãos, sentir
Num abismo sem fundo uma perpétua queda!
Momentos de delírio e de desvairamento,
De grandes sensações que se apagavam logo!
Momentos em que fui mais louco do que o vento.
Fazendo, à minha vida, o que ele faz ao fogo.
O trágico destino! Horror! Fatalidade!
Almas que andam, de dia e noite, embriagadas.
Sensíveis para além da Sensibilidade
E vivas para além das coisas animadas!
Ai de nós! Ai de nós! Vede que estranha sorte!
Cair, cair, cair, sem descansar jamais...
E esse espaço que vai do nascimento à morte
É a hora em que o profundo Abismo contemplais!

II 
 Horas em que eu medito, absorto e comovido,
Na branca solidão da noite misteriosa,
Sob a Lua a emanar etéreo mármor fluido,
Que é um sepulcro evolado em sombra luminosa.
Momentos em que anima os pobres versos meus
A luz espiritual, que, em névoas, resplandece,
Quando, de joelhos, rezo e a tarde me entristece
E o meu ansioso olhar quase descobre Deus.
Momentos em que vivo o sonho, oculto e mudo,
Sonhado em cada cousa humilde, que se esconde;
Quando vejo crescer, crescer, diante de tudo,
Essa interrogação a que ninguém responde!
Momentos em que sou o incompreendido, o eleito,
Sentindo-me afogar na torva escuridade...
E toco a Imperfeição, a fim de ser perfeito,
Porque entender a treva é ser a claridade.
E posso contemplar o Abismo; ver-lhe o fundo!
E trémulo de medo, ébrio de horror e encanto,
Oferto a Deus, à Dor e aos astros o meu canto,
Ao percorrer sozinho a noite deste mundo.
E vou cantando o amor e a terra abençoada,
Quando a Esperança inflora os arvoredos nus,
E o sorriso dum Anjo, além, é madrugada,
E todo o espaço vibra em comoções de luz!
E sou nuvem de sonho, ao vento que perpassa.
A divina Pureza, a Infância original,
A essência da Alegria, o espírito da Graça
E a presença da Dor, sombria, já carnal...
Horas em que me exalto e elevo intimamente.
Nos meus olhos, um astro acorda: uma oração,
Uma lágrima pura, à luz do sol, tremente,
Uma gota de orvalho, em brasa, na amplidão...
Horas em que me enleva o marulhar das fontes.
A dor da água aflora, em mimos de verdura.
Manhãs de Abril, doirando os pobrezinhos montes,
Esboçam o perfil sagrado da Ternura.
Horas em que meu ser, subindo além da Vida,
Mostra a sua figura, ao longe, esplendorosa;
Aqui, na terra obscura, é feia e dolorosa,
E lá, cristal aceso e pérola incendida!
Horas em que a Verdade às almas se revela...
Horas de Eternidade e graça repentina,
Quando ouço murmurar a mais longínqua estrela
E o silêncio em que desce, ao mundo, a voz divina.
Horas em que uma fonte, humilde, que chorava,
Deu formas de harmonia ao meu primeiro canto...
Dos meus lábios nascido, em pleno céu, pairava,
Caótico de sombra e de noturno espanto!
Horas em que, sofrendo, a Divindade imploro;
E sinto, no meu peito, o coração aflito!
E há Serafins bailando, ao som da Lira de ouro
Que a gente vê brilhar, à noite, no Infinito...
Horas vivas de luz, de amor e de esperança
Que infloram, ao passar, as bordas dos caminhos...
E fico extasiado a ouvir, como em criança,
A alegria do sol cantar nos passarinhos!
Horas de oiro em que sou igreja alumiada.
Íntima aleluia etérea me deslumbra...
Surge, d'além da serra, a Deusa da alvorada,
E o seu perfil, lá fora, alveja na penumbra.
Horas que são irmãs da Hora derradeira.
Em que a terra nos abre o seio todo em flor.
E alcançamos, enfim, presença verdadeira
E somos nós, enfim, diante do Senhor.


Teixeira de Pascoaes
(
1877 - 1952), Terra Proibida, 1899
 Tipografia França Amado, Coimbra, 1900 (1.ª ed.).


 
 
“É preciso que o nosso espírito chegue a um princípio, em que o nosso coração acredite.” 
  
Teixeira de Pascoaes, in Senhora da Noite / Verbo Escuro
Editor: Assírio & Alvim
 
 
 

“Em nós, a existência é um mar; a vida uma gota de água.” 

Teixeira de Pascoaes, in Senhora da Noite / Verbo Escuro
Editor: Assírio & Alvim
 

Sem comentários: