sábado, 19 de agosto de 2023

"A Vida é líquida" - Poema de Hilda Hilst


Eugène Laermans (Belgian painter, 1864-1940), L'Ivrogne, 1898 (Social realism),
Bruxelles, musées royaux des Beaux-Arts de Belgique.
 


A Vida é líquida

I

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A Vida é líquida.

II

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.

III

Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida.

IV

E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

V

Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.


Hilda Hilst
, in
"Alcoólicas"
 "Alcoólicas" é uma série de poemas, lançada em reunião com "Do Desejo""Amavisse",  
"Sobre a tua grande face" e "Da noite" no livro "Do Desejo", em 1992. (daqui)


Eugène Laermans, The Blind Woman, 1898, Royal Museum of Fine Arts Antwerp.

 
 
Eugène Laermans, La Promenade, 1907, Bruxelles, Musée Charlier.
 

Realismo social
 
Realismo social é o termo usado para designar trabalhos produzidos por pintores, gravadores, fotógrafos, escritores e cineastas que visam chamar a atenção para as reais condições sociopolíticas da classe trabalhadora como meio de criticar as estruturas de poder por trás dessas condições. Embora as características do movimento variem de nação para nação, quase sempre utiliza uma forma de realismo descritivo ou crítico. Tendo suas raízes no realismo europeu, o realismo social visa revelar as tensões entre uma força opressora hegemónica e suas vítimas.

O termo é às vezes usado de forma mais restrita para um movimento artístico que floresceu entre as duas Guerras Mundiais como reação às dificuldades e problemas sofridos pelas pessoas comuns após a Quinta-Feira Negra. Para tornar sua arte mais acessível a um público mais amplo, os artistas recorreram a retratos realistas de trabalhadores anónimos e também de celebridades como símbolos heroicos de força em face à adversidade. O objetivo dos artistas ao fazer isso era político, pois desejavam expor as condições de deterioração das classes pobres e trabalhadoras e responsabilizar os sistemas governamentais e sociais existentes. O realismo social não deve ser confundido com o realismo socialista, a forma de arte oficial soviética que foi institucionalizada por Josef Stalin em 1934 e mais tarde adotada por partidos comunistas aliados em todo o mundo. Também é diferente do realismo, pois não apenas apresenta as condições dos pobres, mas o faz transmitindo as tensões entre duas forças opostas, como entre os fazendeiros e seu senhor feudal. No entanto, às vezes os termos realismo social e realismo socialista são usados alternadamente. (daqui)
 
 
Eugène Laermans, Les Émigrants, 1896, Musée royal des Beaux-Arts d'Anvers. (Social realism)

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