terça-feira, 7 de março de 2023

"Desobriga" - Poema de António Nobre


Felice Casorati (Italian painter, sculptor, and printmaker, 1883–1963),  
Ritratto di Renato Gualino [Retrato de Renato Gualino], 1923-1924,
 Istituto Matteucci, Viareggio.
 

 
Desobriga

 
Os meus pecados, Anjo! Os meus pecados!
Contar-tos para quê, se não têm fim?
Sou santo ao pé dos outros desgraçados,
Mas tu és mais que santa ao pé de mim!
 
A ti acendo sírios perfumados,
Faço novenas, queimo-te alecrim,
Quando sofro, me vejo com cuidados…
Nas tuas rezas, lembra-te de mim!

Que eu seja puro d'alma e pensamento!
E que, em dia do grande Julgamento,
Minhas culpas não sejam de maior:

Pois tenho (que o Céu aponta e marca)
Um processo a correr nessa comarca,
Cujo delegado é Nosso Senhor…
 
 Hamburgo, 1891.

António Nobre (1867-1900), in "Só", 1892
 
 

Felice Casorati (Italian painter, sculptor, and printmaker, 1883–1963), Ritratto 
del Maestro Alfredo Casella (Italian composer, pianist and conductor, 1883–1947).
  
 

Para a memória de António Nobre

Quando a hora do ultimatum abriu em Portugal, para não mais se fecharem, as portas do templo de Jano, o deus bifronte revelou-se na literatura nas duas maneiras correspondentes à dupla direção do seu olhar. Junqueiro — o de «Pátria» e «Finis Patriae» — foi a face que olha para o Futuro, e se exalta. António Nobre foi a face que olha para o Passado, e se entristece.

De António Nobre partem todas as palavras com sentido lusitano que de então para cá têm sido pronunciadas. Têm subido a um sentido mais alto e divino do que ele balbuciou. Mas ele foi o primeiro a pôr em europeu este sentimento português das almas e das coisas, que tem pena de que umas não sejam corpos, para lhes poder fazer festas, e de que outras não sejam gente, para poder falar com elas. O ingénuo panteísmo da Raça, que tem carinhos de espontânea frase para com as árvores e as pedras, desabrochou nele melancolicamente. Ele vem no Outono e pelo crepúsculo. Pobre de quem o compreende e ama!

O sublime nele é humilde, o orgulho ingénuo, e há um sabor de infância triste no mais adulto horror do seu tédio e das suas desesperanças. Não o encontramos senão entre o desfolhar das rosas e nos jardins desertos. Os seus braços esqueceram a alegria do gesto, e o seu sorriso é o rumor de uma festa longínqua, em que nada de nós toma parte, salvo a imaginação.

Dos seus versos não se tira, felizmente, ensinamento nenhum. Roça rente a muros noturnos a desgraça das suas emoções. Esconde-se de alheios olhos o próprio esplendor do seu desespero. Às vezes, entre o princípio e o fim de um seu verso, intercala-se um cansaço, um encolher de ombros, uma angústia ao mundo. O exército dos seus sentimentos perdeu as bandeiras numa batalha que nunca ousou travar.

As suas ternuras amuadas por si próprio; as suas pequenas corridas de criança, mal-ousada, até aos portões da quinta, para retroceder, esperando que ninguém houvesse visto; as suas meditações no limiar; ...e as águas correntes no nosso ouvido; a longa convalescença febril ainda por todos os sentidos; e as tardes, os tanques da quinta, os caminhos onde o vento já não ergue a poeira, o regresso de romarias, as férias que se desmancham, tábua a tábua, e o guardar nas gavetas secretas das cartas que nunca se mandaram... A que sonhos de que Musa exilada pertenceu aquela vida de Poeta?

Quando ele nasceu, nascemos todos nós. A tristeza que cada um de nós traz consigo, mesmo no sentido da sua alegria é ele ainda, e a vida dele, nunca perfeitamente real nem com certeza vivida, é, afinal, a súmula da vida que vivemos — órfãos de pai e de mãe, perdidos de Deus, no meio da floresta, e chorando, chorando inutilmente, sem outra consolação do que essa, infantil, de sabermos que é inutilmente que choramos.


Fernando Pessoa, 1915
Textos de Crítica e de Intervenção. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980. - 115.
1ª publ. in “A Galera”, nº 5-6. Coimbra: Fev. 1915.
 

Sem comentários: