quarta-feira, 1 de março de 2023

"Iceberg" e "Profissão de febre" - Poemas de Paulo Leminski

 

Harald Sohlberg
(Norwegian Neo-romantic painter, 1869-1935), Vinternatt i Fellene III 
(Winter's Night in the Mountains III), between 1918 and 1924. 

 
 
Iceberg


Uma poesia ártica,
claro, é isso que desejo.
Uma prática pálida,
três versos de gelo.
Uma frase-superfície
onde vida-frase alguma
não seja mais possível.
Frase, não. Nenhuma,
Uma lira nula,
reduzida ao puro mínimo,
um piscar do espírito,
a única coisa única.
Mas falo. E, ao falar, provoco
nuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?).
Sim, inverno, estamos vivos. 
 

Paulo Leminski, in Toda poesia, 
São Paulo: Companhia das Letras, 2013
 
 
 
 Harald Sohlberg, The Old Captain’s House, Winter Afternoon, 1909
 
 
Profissão de febre

 
Quando chove,
eu chovo,
faz sol,
eu faço,
de noite,
anoiteço,
tem deus,
eu rezo,
não tem,
esqueço,
chove de novo,
de novo, chovo,
assobio no vento,
daqui me vejo,
lá vou eu,
gesto no movimento. 


Paulo Leminski
, La vie en close,
in Toda poesia, São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 279.
 
 
Harald Sohlberg, Storgaten Røros (Røros main street), 1904
 
 
A Voz do Silêncio 

 
A pessoa que sou é única, limitada a um nascer e a um morrer, presente a si mesma e que só à sua face é verdadeira, é autêntica, decide em verdade a autenticidade de tudo quanto realizar. Assim a sua solidão, que persiste sempre talvez como pano de fundo em toda a comunicação, em toda a comunhão, não é 'isolamento'. Porque o isolamento implica um corte com os outros; a solidão implica apenas que toda a voz que a exprima não é puramente uma voz da rua, mas uma voz que ressoa no silêncio final, uma voz que fala do mais fundo de si, que está certa entre os homens como em face do homem só. O isolamento corta com os homens: a solidão não corta com o homem. A voz da solidão difere da voz fácil da fraternidade fácil em ser mais profunda e em estar prevenida.

Vergílio Ferreira
, in 'Espaço do Invisivel I'


Harald Sohlberg, Street in Røros in Winter, 1903


"O indeciso e flexível da imaginação é sempre mais fascinante do que a nitidez do real."

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 4 
 


Paulo Leminski - Toda poesia, Páginas: 424
Capa: Elisa von Randow
Companhia das Letras
 
 
Entre haikais e canções, poemas concretos e líricos, "Toda poesia" percorre, pela primeira vez, a trajetória poética completa do autor curitibano e revela por que Paulo Leminski é um dos poetas brasileiros mais lidos das últimas décadas. 
 
Apresentação

Paulo Leminski foi corajoso o bastante para se equilibrar entre duas enormes construções que rivalizavam na década de 1970, quando publicava seus primeiros versos: a poesia concreta, de feição mais erudita e superinformada, e a lírica que florescia entre os jovens de vinte e poucos anos da chamada "geração mimeógrafo".
Ao conciliar a rigidez da construção formal e o mais genuíno coloquialismo, o autor praticou ao longo de sua vida um jogo de gato e rato com leitores e críticos. Se por um lado tinha pleno conhecimento do que se produzira de melhor na poesia - do Ocidente e do Oriente -, por outro parecia comprazer-se em mostrar um "à vontade" que não raro beirava o improviso, dando um nó na cabeça dos mais conservadores. Pura artimanha de um poeta consciente e dotado das melhores ferramentas para escrever versos.
Entre sua estreia na poesia, em 1976, e sua morte, em 1989, a poucos meses de completar 45 anos, Leminski iria ocupar uma zona fronteiriça única na poesia contemporânea brasileira, pela qual transitariam, de forma legítima ou como contrabando, o erudito e o pop, o ultraconcentrado e a matéria mais prosaica. Não à toa, um dos títulos mais felizes de sua bibliografia é Caprichos & relaxos: uma fórmula e um programa poético encapsulados com maestria.
Este volume percorre, pela primeira vez, a trajetória poética completa do autor curitibano, mestre do verso lapidar e da astúcia. Livros hoje clássicos como Distraídos venceremos e La vie en close, além de raridades como Quarenta clics em Curitiba e versos já fora de catálogo estão agora novamente à disposição dos leitores, com inédito apuro editorial.
O haikai, a poesia concreta, o poema-piada oswaldiano, o slogan e a canção - nada parece ter escapado ao "samurai malandro", que demonstra, com beleza e vigor, por que tem sido um dos poetas brasileiros mais lidos e celebrados das últimas décadas. Com apresentação da poeta (e sua companheira por duas décadas) Alice Ruiz S, posfácio do crítico e compositor José Miguel Wisnik, e um apêndice que reúne textos de, entre outros, Caetano Veloso, Haroldo de Campos e Leyla Perrone-Moisés, Toda poesia é uma verdadeira aventura - para a inteligência e a sensibilidade. (Daqui)

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