sábado, 11 de março de 2023

"Momento num café" - Poema de Ruy Cinatti


Marie Bracquemond (French Impressionist artist, 1840-1916), On the terrace at Sèvres, 1880
 


Momento num café


As mãos lindas que vi deixam-me absorto:
compridos dedos, polegares de espátula,
um dedilhar de flores em jardins ociosos,
só comparável a conversa amena
de duas mulheres simples debruçadas
sobre o tampo liso de uma mesa.

A riqueza da vida reside nisto:
um leve toque no ombro do próximo…
uma cortina de chuva vedando a verdade
olhos indiferentes, indiscretos…
e um ar de encanto, um fácil soluço
ouvido longe, como que em segredo.


9/11/76

Ruy Cinatti
, "56 poemas",
Relógio d´agua, 1981 
 
 

Ruy Cinatti
 

Ruy Cinatti (Londres, 8 de Março de 1915 — Lisboa, 12 de Outubro de 1986)  veio ainda criança para Portugal. Formou-se no Instituto Superior de Agronomia, na especialidade de Fitogeografia, área em que publicou vários trabalhos científicos. Em Oxford, estudou Etnologia e Antropologia Social. Viajou pelo Mundo, tendo vivido alguns anos em Timor, como secretário de gabinete do governador de Timor, entre 1946 e 1948, e como chefe dos serviços de Agricultura do governo de Timor, dedicando a este território vários estudos, na área da fitogeografia e da antropologia social, alguns dos quais publicados pela Junta de Investigação do Ultramar, de que foi investigador. 
 
Em 1940, co-dirigiu, com Tomás Kim e José Blanc de Portugal, na primeira série, e com Jorge de Sena, José Blanc de Portugal e José-Augusto França, na segunda série, a publicação Cadernos de Poesia, que, sob o emblema "Poesia é só uma", apresentava como objetivo "arquivar a atividade da poesia atual sem dependência de escolas ou grupos literários, estéticas ou doutrinas, fórmulas ou programas", subscrevendo, no início da segunda série, uma conceção de poesia como "um compromisso firmado entre um ser humano e o seu tempo, entre uma personalidade e uma sua consciência sensível do mundo, que mutuamente se definem" e uma definição de poeta como "homem destinado a nele se definir a humanidade. Um ser capaz de ter todo o passado íntegro no presente e capaz de transformar o presente integralmente em futuro", através de uma "atitude de lucidez, compreensão e independência". É nas edições Cadernos de Poesia que publica as suas primeiras obras poéticas: Nós Não Somos deste Mundo, em 1941 e, no ano seguinte, Anoitecendo a Vida Recomeça
 
Entre 1942 e 1943, fundou a revista Aventura, contando como redatores Eduardo Freitas da Costa, José Blanc de Portugal, Jorge de Sena e Manuel Braamcamp Sobral, e apresentando como coordenadas da publicação uma orientação espiritual católica, o acolhimento nas suas páginas de "todas as expressões de beleza, todas as formas do trabalho do homem", enquanto expressões de um "Deus - motivo de toda a criação, origem de toda a justiça", seja sob a forma de contribuições de ordem literária, artística, filosófica, religiosa ou científica; e a união dos seus membros num "processo de integração espiritual", numa "cidadela fundamentada na AMIZADE".
 
 A partir de O Livro do Nómada Meu Amigo, de 1958, a presença dos territórios por onde viajou e, sobretudo, de Timor assumir-se-á como "objeto em que se concretiza a aproximação do poeta consigo mesmo e com a vida humana dos outros" (SENA, Jorge de - "Nota de Abertura" a Paisagens Timorenses com Vultos, 1974). 
Numa viagem que vai do sensível ao metafísico, a poesia parte então do deslumbramento diante da paisagem, para, do seu "manuseamento subjetivo" ("Justificação" do autor a Uma Sequência Timorense, 1970), ir ao encontro total do indivíduo consigo, com o outro e com Deus, numa "experiência pouco menos que mística" (ibi), para voltar como "homem - perene político", ao mundo da circunstância existencial e das exigências éticas, manifestando a indignação e a dor ante a destruição ecológica, a desagregação caótica das sociedades ultramarinas, o devir anárquico do Portugal pós-25 de abril. 
 
Mercê do seu trajeto profissional e de uma personalidade que recusou integrar qualquer tipo de "grupelhos" ideológicos ou literários, a poesia de Ruy Cinatti possui uma voz própria, sem comparação com qualquer outra experiência poética contemporânea, nascida de uma liberdade métrica e lexical total, que consegue integrar na obra poética materiais tradicionalmente não poéticos; eivada de uma particular relação a espaços e populações, cuja fragilidade parece condená-los a uma exterminação contra a qual o poeta tinha consciência de não poder lutar, mas que motiva composições de revolta e de grande intensidade emocional, como as de Timor-Amor ou de Paisagens Timorenses com Vultos; originalidade reforçada por uma "associação entre a alma e a natureza, que mutuamente se correspondem e interpenetram" (cf. AMARAL, Fernando Pinto do - prefácio a Obra Poética, 1992, p. 20), e que impõe a leitura, na sua poesia de outras viagens, as da peregrinação interior do homem "que a si próprio impõe o conhecimento do ser para poder salvar-se, como homem e como alma" ("Comentário Disponível" do autor, Obra Poética, p. 156).

Ruy Cinatti foi distinguido com o Prémio Antero de Quental, pela obra O Livro do meu Amigo Nómada (1958), e com o Prémio Nacional de Poesia, por Sete Septetos (1967). (Daqui)
 

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