quinta-feira, 30 de março de 2023

"Na Mão de Deus" - Soneto de Antero de Quental



 
Frederic Edwin Church (American landscape painter, 1826–1900), Rainy Season in the Tropics, 1866, 
 
 

Na Mão de Deus 
 
 
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente! 
in "Sonetos completos", 1886. 
 
 
Frederic Edwin Church, c. 1868, photograph by
 Napoleon Sarony (1821-1896)
 
 
Frederic Edwin Church (Hartford, Connecticut, 4 de maio de 1826 — Nova Iorque, 7 de abril de 1900) foi um pintor paisagista norte-americano.
Foi a figura central da Escola do Rio Hudson de pintores e paisagistas norte-americanos. Foi aluno de Thomas Cole em Palenville, Nova York. Tornou-se conhecido, sobretudo, por pintar paisagens colossais, com frequência em localizações exóticas. Sua pintura O Coração dos Andes, atualmente na coleção do Metropolitan Museum of Art, mede 1,67 metros de altura por 3 metros de largura. (daqui)
 
 
 
 
 
 
 
[O vulcão Cotopaxi localiza-se no Equador, e é um dos mais altos vulcões no mundo. O Cotopaxi encontra-se a cerca de 75 km a sul de Quito.
Desde 1738 já ocorreram mais de 50 erupções neste vulcão. Em volta do vulcão encontram-se numerosos vales formados por lahares. A cidade de Latacunga já foi completamente destruída duas vezes em resultado das erupções deste vulcão. As erupções mais violentas ocorreram em 1744, 1768 e em 1877. A última grande erupção ocorreu em 1904, ocorrendo também alguma atividade em 1942.
Iniciou-se uma erupção em 14 de Agosto 2015. ] (daqui)

 
 
 
 


A Bíblia da Humanidade
 
I
 
      Dentro do homem existe um Deus desconhecido: não sei qual, mas existe - dizia Sócrates soletrando com os olhos da razão, à luz serena do céu da Grécia, o problema do destino humano. E Cristo com os olhos da fé lia no horizonte anuviado das visões do profeta esta outra palavra de consolação - dentro do homem está o reino dos céus. Profundo, altíssimo, acordo de dois génios tão distantes pela pátria, pela raça, pela tradição, por todos os abismos que uma fatalidade misteriosa cavou entre os irmãos infelizes, violentamente separados, duma mesma família! Dos dois polos extremos da história antiga, através dos mares insondáveis, através dos tempos tenebrosos, o génio luminoso e humano das raças indicas e o génio sombrio, mas profundo, dos povos semíticos se enviam, como primeiro mas firme penhor da futura unidade, esta saudação fraternal, palavra de vida que o mundo esperava na angústia do seu caos - o homem é um Deus que se ignora
      Grande, soberana consolação de ver essa luz de concórdia raiar do ponto do horizonte aonde menos se esperava, de ver uma vez unidos, conciliados esses dois extremos inimigos, esses dois espíritos rivais cuja luta entristecia o mundo, ecoava como um tremendo dobre funeral no coração retalhado da humanidade antiga! Os combatentes, no maior ardor da peleja, fitam-se, encaram-se com pasmo, e sentem as mãos abrirem-se para deixar cair o ferro fratricida. Estendem os braços... somos irmãos ! 
      Primeiro encontro, santo e puríssimo, dos prometidos da história! Manhã suave dos primeiros sorrisos, dos olhares tímidos mas leais desses noivos formosíssimos, que o tempo aproximava assim para o casamento misterioso das raças! 
      Não há no mundo palácio de rei digno de lhes escutar as primeiras e sublimes confidências! Só um templo, alto como a cúpula do céu, largo como o voo do desejo, puro como a esperança do primeiro e inocente ideal humano!   
       Esse templo tiveram-no. Naquela palavra de dois loucos se encerra tudo. Nenhuma montanha tão alta, aonde a olho nu se aviste Deus, como o voo desta frase, a maior revelação que jamais ouvirá o mundo - dentro do homem está Deus.

Antero de Quental, in 'A Bíblia da Humanidade' (daqui)
 
[Publicado em janeiro de 1895 no jornal “O Século XIX” de Penafiel, o ensaio crítico 'A Bíblia da Humanidade', de Jules Michelet, autor que muito o inspirava então, foi posteriormente publicado em formato de livro.]
 

Retrato de Jules Michelet (1798-1874), c. 1865,
 por Thomas Couture (1815-1879), Museu Carnavalet
 

Jules Michelet
 
Historiador francês, professor na École Normale, na Sorbonne e no Collège de France, foi autor de Histoire de la Révolution Française (1847-1853) e Histoire de France (1833-1867). Nessas obras maiores da historiografia romântica, assim como em L'Oiseau (1856), L'Insecte (1857), L'Amour (1858), La Femme (1859) e La Sorcière (1862), entre outras, Michelet combina a exigência científica do estudo da História com a visão apaixonada dos acontecimentos, marcada pela imaginação poética e pelo estilo vibrante, deixando transparecer as suas convicções democráticas e populistas. 
 
A conceção da libertação progressiva da humanidade ao longo da História, elaborada por Michelet (que começa a ser traduzido e divulgado em Portugal na década de sessenta) a partir de leituras de Vico e Herder, influenciaria de forma determinante a Geração Coimbrã, depois Geração de 70, marcando a poesia das Odes Modernas (1865), de Antero de Quental, e sendo um dos autores citados na "Nota (sobre a missão revolucionária da poesia)" e na "Carta autobiográfica dirigida ao Professor Wilhelm Storck" (1887), onde Antero aponta as suas grandes influências. As teses de Michelet manifestam-se igualmente nas coletâneas de poesia filosófica de Teófilo Braga, Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras (1864), sendo ele um dos autores convocados na "Generalização da história da poesia" apensa à primeira, e nos livros do seu amigo e discípulo Teixeira Bastos, Rumores Vulcânicos (1879) e Vibrações do Século (1882). Também a historiografia de Oliveira Martins denota a marca de Michelet, desde o estudo Os Lusíadas "Ensaio sobre Camões e a sua Obra"(1872; 2ª ed., 1891). (daqui)

Sem comentários: