sábado, 4 de março de 2023

 "Não quero amar mais ninguém" - Poema de Maria Firmina dos Reis


Auguste-Émile Pinchart (French painter, 1842-1920), Autumn fantasy, 1874


Não quero amar mais ninguém

 
Quereis que eu cante na lira
Os meus amores? Pois bem;
Os meus amores são sonhos,
Eu nunca amei a ninguém.

Temi que, amando na terra,
De amor me viesse algum mal.
Criei no céu meus amores,
Amei ao meu ideal.

Oh! nem sabeis quanto é belo
Um ideal de mulher!
É belo como arcanjos,
Aos pés do Supremo Ser.

É grato, belo, é deleite,
Encanta, enleia, seduz,
Como nas trevas da noite
Se brilha ao longe uma luz.

Fala... sua voz é saltério;
São gratos hinos a Deus;
São acentos misteriosos;
Que sobem puros aos céus.

Se nos sorri, — seu sorriso,
São ternos votos de amor;
São como gota de orvalho
De leve beijando a flor.

P’ra que amores na terra,
Se amo ao meu ideal?
Amores que cavam prantos,
Amores que fazem mal!...

E teço-lhe grinalda de poesia,
Singela, e odorosa;
E dos anjos escuto a melodia
A voz harmoniosa.

E um doce ambiente se respira,
E mais doce langor;
Expande-se meu peito — a alma suspira
Ofegante de amor.

E a música celeste recomeça
Ao som de nosso amor:
Mistério! A lua é pura... a flor começa
A vestir-se de odor.

É tudo belo... toda a relva é flor,
Todo o ar poesia!
O prazer é do céu... aí o amor
É hino de harmonia.

Que importa que sejam sonhos
Os meus amores? Pois bem,
Eu quero amores sonhando,
Não quero amar mais ninguém.


Maria Firmina dos Reis, in "Cantos à beira-mar",
São Luís do Maranhão, 1871
 
 
Auguste-Émile Pinchart, The water carrier
 

“Se você ama, sofre. Se não ama, adoece.”
 

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