sábado, 1 de abril de 2023

"Poema Explicativo" e Apocalipse" - Poemas de Domingos Carvalho da Silva

 

 John Constable (English Romantic painter, 1776–1837), Stratford Mill, 1820. Oil on canvas.
 


Poema Explicativo 

 
Inúteis são os voos. Inúteis são os pássaros.
Silenciosas sombras tudo extinguem.
Como as vagas de um mar longínquo e frio,
são de inúteis palavras estes versos,
pois o calado tempo esmaga tudo.

Moro num rio inútil que caminha
entre margens de musgo e subalternas
pontes e águas que refletem
estrelas, luminárias, desencanto.

Os peixes não obstante já não dormem.
São inúteis os sonhos e as amarras
que nos prendem ao cais.
E o sangue que nos leva
em artérias elétricas de desejo.

Já somos todos poetas — e a poesia é inútil —
antepassados simples de um futuro
remoto onde seremos sinais na rocha, apenas.

Germinará o trevo entre os alexandrinos
e nenhum pássaro compreenderá o sentido
das páginas dispersas sobre a areia.

Estas palavras nuas se transformarão
em pó, em lodo, em traças e raízes.


in 'Praia Oculta', 1949
 
 
 John Constable (English Romantic painter, 1776–1837), The Hay Wain, 1821. Oil on canvas,
130.2 cm × 185.4 cm,  National Gallery, London


Apocalipse 


Porque a lua é branca e a noite
é simples anúncio da aurora;
e porque o mar é o mar apenas
e a fonte não canta nem chora;

e porque o sal se decompõe
e são de água e carvão as rosas,
e a luz é simples vibração
que excita células nervosas;

e porque o som fere os ouvidos
e o vento canta na harpa eólia;
e porque a terra gera os áspides
entre a papoula e magnólia;

e porque o trem já vai partir
e o corvo nos diz never more;
e porque devemos sorrir
antes que o crepúsculo descore;

e porque ontem já não existe
e o que há de vir não mais virá,
e porque estamos num balé
sobre o estopim da Bomba H:

não marcharemos contra o muro
das lamentações, prantear
a frustração de tudo o que
sonhamos ousar, sem ousar.

Títeres mudados em gnomos,
enfrentemos o Apocalipse
como pilotos da tormenta
entre o terremoto e o eclipse.

Vamos dançar sobre o convés
enquanto o barco não aderna;
vamos saudar o sol que morre
e a noite que vem fria e eterna.

Vamos zombar deste universo
em nossos olhos refletido;
quando os fecharmos, será como
se nunca houvesse existido.

Vamos crepitar entre as chamas
nosso último arrebatamento;
porque amanhã seremos só
um pouco de cinza no vento. 


in 'A Margem do Tempo', 1963 
 

[Domingos Carvalho da Silva (Pedroso, Portugal, 1915 - São Paulo, São Paulo, 2003). Cursa Direito na Universidade de São Paulo entre 1933 e 1937. É presidente, em 1936, da Academia de Letras da Faculdade de Direito, e fundador da revista Arcádia. Publica seu primeiro livro de poesia, Bem-Amada Ifigênia, em 1943, ano em que também colabora na página literária do Correio Paulistano. Em 1947 funda a Revista Brasileira de Poesia, com Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992), entre outros. No ano seguinte, organiza o I Congresso Paulista de Poesia. Em 1954, é membro da Comissão Organizadora do Primeiro Congresso Internacional de Escritores. Colabora em vários periódicos paulistas e é redator no Diário de S. Paulo. Na década de 1960 participa de vários congressos e comissões de literatura; em 1966, torna-se professor na Universidade Nacional de Brasília. Um dos fundadores do Clube de Poesia de Brasília, torna-se seu presidente em 1974. Em 1977 recebe o prémio Jabuti de Poesia, pelo livro Vida Prática (1976). Sua obra poética inclui os livros Praia Oculta (1949), À Margem do Tempo (1979), Múltipla Escolha (1980) e Liberdade Embora Tarde (1984). Sua poesia filia-se à terceira geração do Modernismo; no entanto, para o crítico Adolfo Casais Monteiro, "Domingos Carvalho da Silva é [...] um poeta que, pela diversidade das formas reveladas ao longo da sua já extensa produção, pela larga escala de interesses que a sua poesia revela, não pode ser situada num grupo delimitado; as suas tendências impõem-nos reconhecer, pelo contrário, representar ele melhor o homem de hoje do que qualquer 'escola' ". (daqui)]

 

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