Silenciosas sombras tudo extinguem.
Como as vagas de um mar longínquo e frio,
são de inúteis palavras estes versos,
pois o calado tempo esmaga tudo.
Moro num rio inútil que caminha
entre margens de musgo e subalternas
pontes e águas que refletem
estrelas, luminárias, desencanto.
Os peixes não obstante já não dormem.
São inúteis os sonhos e as amarras
que nos prendem ao cais.
E o sangue que nos leva
em artérias elétricas de desejo.
Já somos todos poetas — e a poesia é inútil —
antepassados simples de um futuro
remoto onde seremos sinais na rocha, apenas.
Germinará o trevo entre os alexandrinos
e nenhum pássaro compreenderá o sentido
das páginas dispersas sobre a areia.
Estas palavras nuas se transformarão
em pó, em lodo, em traças e raízes.
Porque a lua é branca e a noite
é simples anúncio da aurora;
e porque o mar é o mar apenas
e a fonte não canta nem chora;
e porque o sal se decompõe
e são de água e carvão as rosas,
e a luz é simples vibração
que excita células nervosas;
e porque o som fere os ouvidos
e o vento canta na harpa eólia;
e porque a terra gera os áspides
entre a papoula e magnólia;
e porque o trem já vai partir
e o corvo nos diz never more;
e porque devemos sorrir
antes que o crepúsculo descore;
e porque ontem já não existe
e o que há de vir não mais virá,
e porque estamos num balé
sobre o estopim da Bomba H:
não marcharemos contra o muro
das lamentações, prantear
a frustração de tudo o que
sonhamos ousar, sem ousar.
Títeres mudados em gnomos,
enfrentemos o Apocalipse
como pilotos da tormenta
entre o terremoto e o eclipse.
Vamos dançar sobre o convés
enquanto o barco não aderna;
vamos saudar o sol que morre
e a noite que vem fria e eterna.
Vamos zombar deste universo
em nossos olhos refletido;
quando os fecharmos, será como
se nunca houvesse existido.
Vamos crepitar entre as chamas
nosso último arrebatamento;
porque amanhã seremos só
um pouco de cinza no vento.
[Domingos Carvalho da Silva (Pedroso, Portugal, 1915 - São Paulo, São Paulo, 2003). Cursa Direito na Universidade de São Paulo entre 1933 e 1937. É presidente, em 1936, da Academia de Letras da Faculdade de Direito, e fundador da revista Arcádia. Publica seu primeiro livro de poesia, Bem-Amada Ifigênia, em 1943, ano em que também colabora na página literária do Correio Paulistano. Em 1947 funda a Revista Brasileira de Poesia, com Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992), entre outros. No ano seguinte, organiza o I Congresso Paulista de Poesia. Em 1954, é membro da Comissão Organizadora do Primeiro Congresso Internacional de Escritores. Colabora em vários periódicos paulistas e é redator no Diário de S. Paulo. Na década de 1960 participa de vários congressos e comissões de literatura; em 1966, torna-se professor na Universidade Nacional de Brasília. Um dos fundadores do Clube de Poesia de Brasília, torna-se seu presidente em 1974. Em 1977 recebe o prémio Jabuti de Poesia, pelo livro Vida Prática (1976). Sua obra poética inclui os livros Praia Oculta (1949), À Margem do Tempo (1979), Múltipla Escolha (1980) e Liberdade Embora Tarde (1984). Sua poesia filia-se à terceira geração do Modernismo; no entanto, para o crítico Adolfo Casais Monteiro, "Domingos Carvalho da Silva é [...] um poeta que, pela diversidade das formas reveladas ao longo da sua já extensa produção, pela larga escala de interesses que a sua poesia revela, não pode ser situada num grupo delimitado; as suas tendências impõem-nos reconhecer, pelo contrário, representar ele melhor o homem de hoje do que qualquer 'escola' ". (daqui)]
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