domingo, 23 de abril de 2023

"Morreste-me" - Texto de José Luís Peixoto


Lovis Corinth (German painter, sculptor, university teacher, graphic artist, drawer and lithographer, 
1858–1925), Vater Franz Heinrich, The Artist's Father in his Sickbed, 1888, oil on canvas, 61 × 70 cm.,
Städelsches Kunstinstitut und Städtische Galerie, Frankfurt.
 
 
Pai
 
 
«(…) A minha mãe, mãe verdadeira de todos nós, olhava-nos e sorria assim e sorria por isso. Felizes. Distantes da chuva grossa deste Inverno negro, distantes do teu corpo gelado. Lívido na luz trémula das velas, arranjadinho, penteado com água, vestido com o fato que usaste no casamento da minha irmã: o teu corpo gelado. E a Capela de São Pedro cheia de gente a abraçar-me, cheia de gente a dizer-me coitadinho e os meus pêsames e sinto muito, cheia de gente a procurar-me e a querer agarrar-me e prender-me e dizer coitadinho e os meus pêsames e sinto muito. Pai. Perder-te. E revivi o silêncio insepulto dos teus lábios mortos. E as sombras de nós, como se apenas esperassem estes pensamentos para se perderem, misturaram-se no preto. O pó das horas sem gente a vivê-las cobriu os móveis e o espaço fechado entre eles. As paredes voltaram a separar o Inverno noturno, permanente da casa e o ciclo alternado dos dias e do mundo, alheio a nós, para lá de nós. Comigo, a casa estava mais vazia. O frio entrava e, dentro de mim, solidificava. As várias sombras da sombra de mim, imóveis, passeavam-se de corpo para corpo, porque todos eles, todos meus, eram igualmente negros e frios. E abri a janela. Muito longe do luto do meu sentir, do meu ser, ser mesmo, o sol-pôr a estender-se na aurora breve solene da nossa casa fechada, pai. E pensei não poderiam os homens morrer como morrem os dias? Assim, com pássaros a cantar sem sobressaltos e a claridade líquida vítrea em tudo e o fresco suave fresco, a brisa leve a tremer as folhas pequenas das árvores, o mundo inerte ou a mover-se calmo e o silêncio a crescer natural, natural, o silêncio esperado, finalmente justo, finalmente digno. Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei o teu rosto que encontro. Contra nós, cresce a manhã, o dia, cresce uma luz fina. Olho-te nos olhos. Sim, quero que saibas, não te posso esconder, ainda há uma luz fina sobre tudo isto. Tudo se resume a esta luz, fina a recordar-me todo o silêncio desse silêncio que calaste. Pai».

 
 
"Morreste-me" de José Luís Peixoto
Quetzal Editores
 

SINOPSE 
 
"Morreste-me", texto que deu a conhecer o jovem escritor José Luís Peixoto, é uma obra intensa, avassaladora e comovente: é o relato da morte do pai mas, sobretudo, o relato do luto, e ao mesmo tempo uma homenagem, uma memória redentora.
Toda o livro é um diálogo com o pai e a sua ausência, apelando tanto aos motivos da recordação como da necessidade de sobreviver à perda.
Foi durante esse doloroso luto, mergulhado em sofrimento mas, também, transportado por uma melancolia salvadora, que José Luís Peixoto escreveu um livro que se tornou referência para leitores em todo o mundo que, partilhando ou não a sua experiência, se reconhecem numa obra intensa, poderosa, cheia de ternura e compaixão. Raramente a literatura portuguesa produziu um livro tão partilhado.  (daqui)
 
 
Lovis Corinth, Self-portrait with Skeleton, 1896, oil on canvas, 66 x 86 cm.,
Städtische Galerie im Lenbachhaus


Lovis Corinth ou Franz Heinrich Louis Corinth, (Tapiau, Prússia Oriental, 21 de julho de 1858 — Zandvoort, Países Baixos, 17 de julho de 1925) foi um pintor alemão que, ao lado de Max Liebermann, Lesser Ury e Max Slevogt, foi um dos mais importantes representantes do impressionismo em seu país.
Em 1876 iniciou seus estudos na Escola de Belas Artes de Königsberg e, em 1880, em Munique com os professores Defregger e Löfftz. Passa dois anos na França onde frequenta a Academia Julian sob orientação de Bouguereau e Robert Fleury (1884 a 1886).
Volta à Alemanha, vivendo entre Berlim e Munique. A partir de 1901 fixa-se na capital. Corinth e os conceituados mestres Max Liebermann e Max Slevogt tornaram-se os principais expoentes do impressionismo alemão. Participaram também, com outros vanguardistas, do movimento denominado Secessão de Berlim, que haveria de mudar a conceção da arte germânica.
Do impressionismo, Corinth iria evoluir para a corrente expressionista, época em que foi professor da pintora brasileira Anita Malfatti.
Para os nazistas a arte de Corinth era qualificada como decadente. Está sepultado no Südwestkirchhof Stahnsdorf. (daqui)

 
Lovis Corinth, The Artist and His Family, 1909, oil on canvas,
Niedersächsisches Landesmuseum, Hanover

 
Lovis Corinth, Tyrolean Landscape with a Bridge, 1913, oil on canvas, 95.5 x 120.5 cm.,
Österreichische Galerie Belvedere, Vienna
 

Lovis Corinth, Walchensee Panorama, View from the Pulpit, 1924, oil on canvas, 100 x 200 cm.,
Wallraf–Richartz Museum, Cologne
 

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