sexta-feira, 14 de abril de 2023

"A Primeira Palavra" - Poema de Hugo Santos



Élisabeth Louise Vigée Le Brun also known as Madame Le Brun (French portrait 
painter, 1755–1842), Self-Portrait with Her Daughter, Julie Le Brun, 1789,
 
 
Élisabeth Louise Vigée Le Brun, Self-Portrait with Her Daughter, Julie, 1786. 
 
 

A Primeira Palavra


Hoje, pela primeira vez, disse: "Mãe".
Podia ter dito qualquer outra palavra pequenina
como "rio, flor, casa, ave, luz, cor", sei lá.
Mas não, disse: "Mãe".

Fechei os olhos e repeti "Mãe", uma, duas, muitas vezes.
E fiquei a saber, já depois de me ouvir ante o espelho da sala,
que a palavra "Mãe", dita e ouvida assim,
como se tivesse caído do colo de uma estrela,
podia ser também "rio, céu, flor, casa, ave, luz e cor".

Dizia "Mãe" e era como se um rio corresse sob os meus pés.
Proferia-a de novo e sabia que ela era azul como o céu.
Era um nome com muitas portas e janelas,
tantas ou mais do que aquelas que tem a minha casa.
Se a dissesse mais alto, ela voava
como um dos pássaros do quintal.

Se me debruçasse sobre ela e a aconchegasse nos braços,
cheirava-me a flores.
Estava tão cheio de luzes coloridas que, mais tarde,
quando reparei nos olhos da minha Mãe, lá estavam
todas as cores do arco-íris.

Pronto, já sei. Quando voltar a dizer "Mãe",
as luzes acendem-se e a música começa a tocar.

Talvez Bach, talvez Beethoven,
talvez Chopin nas mãos mágicas
de um famoso pianista.

Vocês já pensaram no que,
quando for grande,
vou fazer com a palavra
"Mãe"?


Hugo Santos
(1939-2018)
do livro: "Eu, a Casa, os Bichos e Outras Coisas"
 (Nova Vega Editora, 2008).


 
"Eu, a Casa, os Bichos e Outras Coisas" de Hugo Santos.
Raquel Pinheiro – Ilustração
Livro recomendado pelo Plano Nacional de Leitura
(5º e 6º Ano de escolaridade)

 
Resumo

Borboletas que dançam valsas e põem ovos de sol, bichinhos-de-conta que são berlindes e parecem caixinhas de música, muitos livros que são abat-jours da alma, cavalos de pau voando sobre as nuvens, pintassilgos que são anjos equilibristas e vírgulas no vento, formigas trabalhadoras que são pontos finais da terra, pombos-correio sobrevoando o céu de bicicleta, um melro viúvo, uma gata solitária à espera de um “miau”, uma Mãe com peixinhos de prata nas meninas dos olhos – tudo isto cabe nesta grande casa de muitos nomes, que habita o coração de cada um de nós.
Um belíssimo texto poético de Hugo Santos, maravilhosamente ilustrado por Raquel Pinheiro.
(Daqui)
 
 
Hugo Santos (daqui)
        
Hugo Santos (1939-2018) nasceu em Campo Maior e toda a sua obra nos fala da vasta e silenciosa beleza do Alentejo raiano. Poeta, romancista e contista, tem mais de quarenta livros publicados e foi distinguido com múltiplos prémios literários dos quais são de destacar, na poesia, Corpo Atlântico, Prémio Antero de Quental, Decálogos do Bom Amor, Prémio Cesário Verde, e na prosa, os romances A Mulher de Neruda e As Mulheres que Amaram Juan Tenório que lhe valeram, respetivamente, o Grande Prémio de Albufeira e o Prémio Miguel Torga.
O muito contacto que teve com crianças (exerceu as funções de professor) e a imensa ternura que sempre lhes devotou, levou-o também a escrever um belíssimo livro para elas, já incluído no Plano Nacional de Leitura, intitulado Eu, a Casa, os Bichos e Outras Coisas (Vega, 2008). (Daqui)
 

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