quarta-feira, 26 de abril de 2023

"Pássaro Azul" - Poema de Fernanda de Castro

 
Ker-Xavier Roussel (French painter associated with Les Nabis, 1867–1944), Women in a Landscape 
in the Île de France, c. 1932-1935,  Musée départemental Maurice Denis "The Priory"
 
 

Pássaro Azul

 
(Ai, o Pássaro Azul da minha pena,
da minha pena, pena, pena…)

Eu tinha um Pássaro Azul,
Azul como o azul do arco-íris.
Não vivia numa floresta,
não morava numa gaiola.
Não era um pássaro de penas e de sangue.
Também não era um pássaro pintado.
Nem escrito. Nem pensado.
Era um pássaro sentido.
Sentido como os cegos vêem as cores,
como os surdos ouvem os sons.
Era demasiado pequeno para os dedos
mas podia encher uma alma.
O Pássaro Azul cantava,
mas a sua música
era uma grande alegria sem risos,
uma grande luz sem noite.
Em quase todas as casas havia silêncio
e o Pássaro Azul cantava.
Porque não havia em todas as casas
uma flor, uma estrela, um pássaro a cantar?
Não abri a porta da gaiola
porque não havia gaiola,
mas com mãos trémulas de esperança
fui buscar o Pássaro Azul
ao fundo da alma,
e abri as mãos
para que houvesse em todas as casas
uma flor, uma estrela, um pássaro a cantar.
Murcharam, porém, todas as flores,
apagaram-se todas as estrelas,
e o Pássaro Azul,
azul como o azul do arco-íris,
ficou frio e cinzento,
um Pássaro Cinzento
como um pássaro de lua.
Então as mãos,
aquelas mãos trémulas de esperança,
tomaram a forma de tépidas conchas,
de pequenos ninhos de calor,
e o verde,
o verde indeciso das marés,
cobriu de esperança as suas penas.
Era agora um Pássaro Verde,
verde e triste.
Então lágrimas lentas o envolveram,
pesada chuva de alma,
e o pássaro ficou branco.
Era agora um Pássaro Branco,
silencioso e triste.
Como um vento furioso,
a Ira sacudiu as raízes da alma,
da alma onde outrora
morava o Pássaro Azul,
mas o Pássaro Branco
era agora vermelho,
um Pássaro Vermelho e assustado,
pesado de solidão.
Então o desespero murchou-lhe as asas,
e ficou roxo como um lírio magoado,
um lírio de paixão,
negro como um céu sem astros,
um Pássaro Negro
tocado de morte.
E de nada serviram as mãos
que se fizeram conchas para o abrigar,
de nada serviu a Esperança,
de nada serviram as lágrimas,
de nada serviu o vendaval da Ira,
nem o Desespero, nem a Dor.
Ferido de silêncio e de morte,
o Pássaro Azul
fechou para sempre as asas
e nunca mais foi azul.

Não, na Ilha do Tesoiro
e do Pássaro Azul
não estão as minhas asas,
não estão nenhumas asas,
ficaram só as penas…

As penas e um tesoiro
que escondi, não sei onde,
quando parti
para a minha viagem sem partida
e sem regresso.

Oh! A minha viagem,
esses longos caminhos da Aventura
que imaginei, imóvel,
no quarto, a horas mortas.
Era tudo miragem,
silêncio, noite escura:
um mar de ondas paradas,
um chão de pedras soltas,
de plantas calcinadas…
Constelações de nuvens,
jardins de campas rasas,
florestas de silêncio,
sem frutos e sem asas.
Então vieste com teu passo lento,
com tuas mãos de flor
e teu sorriso breve,
então vieste, branca e alada,
pura e alada,
numa noite de tédio e nostalgia.
Não perguntaste,
não disseste nada,
mas eras a Poesia,
mas eras tu, Poesia,
meu tesoiro perdido,
meu tesoiro encontrado,
reencontrado.

A Ilha do Tesoiro,
a minha Ilha…

Porque eu tinha uma Ilha,
num continente sem limites
que nenhum mar banhava.
Era a Ilha da Seta,
da metade ascendente
do meu signo de Fogo, o Sagitário,
que não era de terra nem de lava
mas dum estranho calcário,
imponderável, fluido,
inconsistente.
Era a Ilha do mar inexistente,
do céu imaginário,
que julguei povoar de Sonho, de Ilusão,
e afinal povoei
de bolas de sabão.
É a Ilha da grande Solidão…
 

Fernanda de Castro

in «A Ilha da Grande Solidão», 1962



Ker-Xavier Roussel, Les Saisons de la vie (1892-1895), Paris, musée d'Orsay.


"Temos uma vida, uma só. Mas muitos julgam que há sempre muito tempo e, por isso, tantas vezes, decidimos adiar o importante para desperdiçar tempo com o que pouco vale."

José Luís Nunes Martins
, in Filosofias, 79 Reflexões
 
 

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