quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

"Ode ao Inverno" - Poema de Pablo Neruda



Edvard Munch
 (Norwegian painter, 1863–1944), Building Workers in the Snow, 1920.
Óleo sobre tela, 71 x 100 cm, Munch Museum, Oslo, Noruega



Ode ao Inverno 


Inverno, algo entre nós
existe,
colinas sob a chuva,
galopes
no vento,
janelas
onde se amontoaram as tuas vestes,
a tua camisa de ferro,
as tuas calças molhadas,
o teu cinturão de couro transparente. 

Inverno,
para alguns
és neblina
sobre as represas,
clamorosa clâmide,
rosa branca,
corola de neve,
mas para mim, Inverno,
és
um cavalo,
sobe-te do focinho a névoa,
gotas de chuva caem-te
da cauda,
rajadas elétricas
são as tuas crinas,
galopas
desenfreadamente
salpicando de lama
o viandante,
olhamos
e já passaste,
não te vemos a cara,
não sabemos
se são de água de mar
ou de cordilheira
os teus olhos, passaste
como a cabeleira
de um relâmpago,
não ficou ilesa uma árvore sequer,
as folhas
amontoaram-se
no solo,
os ninhos
ficaram esgarçados
no cimo das copas,
enquanto tu galopavas
na luz moribunda do planeta. 

És frio, inverno,
e os teus cachos
de neve negra e água
no telhado
perfuram
as casas
como agulhas,
ferem como facas oxidadas.
Nada te detém. 

Começam
os ataques de tosse, saem as crianças
com os sapatos encharcados,
nas camas a febre
é como
a vela dum navio
incendiada,
a cidade dos pobres
navegando para a morte,
a mina
escorregadia,
a batalha do vento.

Desde então,
inverno, passei a conhecer
a tua esburacada roupa
e o silvo
da tua buzina entre as araucárias
quando clamas
e choras,
cavaca na chuva louca,
desatado trovão
ou coração de neve.

O homem
na areia agigantou-se,
cobriu-se de tormenta,
o sal e o sol vestiram
de seda salpicada
o corpo da nova nadadora. 

Mas
quando chega o inverno
o homem
transforma-se num pequeno novelo
que caminha
com funerário guarda-chuva,
cobre-se
com asas impermeáveis,
torna-se húmido
e mole
como uma papa, refugia-se
nas igrejas,
ou lê notícias necrológicas. 

Entretanto,
em cima,
entre os carvalhos,
na cabeça das nevadas,
no litoral,
tu reinas
com a tua espada,
com o teu gelado violino,
com as plumas que esvoaçam
do teu peito indomável. 

Qualquer dia
encontrar-nos-emos,
quando
a grandeza
da tua formosura
não se abater
sobre o homem,
quando
deixares de perfurar
o teto
do meu irmão,
quando
puder amparar a mais alta
brancura do teu espaço
sem ser mordido,
passarei saudando
a tua majestade desatada. 

Descobrirei a cabeça
sob a mesma chuva
da minha infância
porque confiarei
nas tuas águas:
elas lavam o mundo,
arrastam os papéis,
trituram a pequena
imundice dos dias,
lavam
o rosto da terra,
as tuas mãos lavam,
e descem até ao fundo
lá onde
a primavera
dorme. 

Tu fá-la estremecer, feres
as suas pernas transparentes,
desperta-la, molha-la,
começa a trabalhar,
varre as folhas mortas,
reúne a sua fragrante
mercadoria,
sobe as escadas
das árvores
e de repente vemo-la
no cimo
com o seu novo vestido
e os seus antigos olhos verdes.
 

Pablo Neruda,
in "Odes Elementares", 1954.
Tradução de José Bento
 
 
Edvard Munch, From Saxegårdsgate, c. 1882, oil on canvas, 
Lillehammer Art Museum, Lillehammer 


"Que fogo poderia se igualar a um raio de sol num dia de inverno?"
 
"What fire could ever equal the sunshine of a winter's day [...]"

Henry David Thoreau
, Excursions - Página 115 - Ticknor and Fields, 1863
 

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