A cidade
[A meu predileto amigo o Sr. Dr. Betoldi]
A cidade ali está com seus enganos,
Seu cortejo de vícios e traições,
Seus vastos templos, seus bazares amplos,
Seus ricos paços, seus bordéis salões.
A cidade ali está: sobre seus tetos
Paira dos arsenais o fumo espesso,
Rolam nas ruas da vaidade os coches
E ri-se o crime à sombra do progresso.
A cidade ali está: sob os alpendres
Dorme o mendigo ao sol do meio-dia,
Chora a viúva em úmido tugúrio,
Canta na catedral a hipocrisia.
A cidade ali está: com ela o erro,
A perfídia, a mentira, a desventura...
Como é suave o aroma das florestas!
Como é doce das serras a frescura!
A cidade ali está: cada passante
Que se envolve das turbas no bulício
Tem a maldade sobre a fronte escrita,
Tem na língua o veneno e na alma o vício.
Não, não é na cidade que se formam
Os fortes corações, as crenças grandes,
Como também nos charcos das planícies
Não é que gera-se o condor dos Andes!
Não, não é na cidade que as virtudes,
As vocações eleitas resplandecem,
Flores de ar livre, à sombra das muralhas
Pendem cedo a cabeça e amarelecem.
Quanta cena infernal sob essas telhas!
Quanto infantil vagido de agonia!
Quanto adultério! Quanto escuro incesto!
Quanta infâmia escondida à luz do dia!
Quanta atroz injustiça e quantos prantos!
Quanto drama fatal! Quantos pesares!
Quanta fronte celeste profanada!
Quanta virgem vendida aos lupanares!
Quanto talento desbotado e morto!
Quanto gênio atirado a quem mais der!
Quanta afeição cortada! Quanta dúvida!
Num carinho de mãe ou de mulher!
Eis a cidade! Ali a guerra, as trevas,
A lama, a podridão, a iniquidade;
Aqui o céu azul, as selvas virgens,
O ar, a luz, a vida, a liberdade!
Ali medonhos, sórdidos alcouces,
Antros de perdição, covis escuros,
Onde ao clarão de baços candeeiros
Passam da noite os lêmures impuros;
E abalroam-se as múmias coroadas,
Corpos de lepra e de infeção cobertos,
Em cujos membros mordem-se raivosos
Os vermes pelas sedas encobertos!
Aqui verdes campinas, altos montes,
Regatos de cristal, matas viçosas,
Borboletas azuis, loiras abelhas,
Hinos de amor, canções melodiosas.
Ali a honra e o mérito esquecidos,
Mortas as crenças, mortos os afetos,
Os lares sem legenda, a musa exposta
Aos dentes vis de perros objetos!
Presa a virtude ao cofre dos banqueiros,
A lei de Deus entregue aos histriões!
Em cada rosto o selo do egoísmo,
Em cada peito um mundo de traições!
Depois o jogo, a embriaguez, o roubo,
A febre nos ladrilhos do prostíbulo,
O hospital, a prisão... Por desenredo
A imagem pavorosa do patíbulo!
Eis a cidade!... Aqui a paz constante,
Serena a consciência, alegre a vida,
Formoso o dia, a noite sem remorsos,
Pródiga a terra, nossa mãe querida!
Salve, florestas virgens! Rudes serras!
Templos da imorredoura liberdade!
Salve! Três vezes salve! Em teus asilos
Sinto-me grande, vejo a divindade!
Fagundes Varella, "Cantos meridionais", 1869.
Sem comentários:
Enviar um comentário