quarta-feira, 29 de agosto de 2018

"Carta da árvore triste (a minha mulher)" - Poema de Al Berto


Auguste Toulmouche (1829-1890), The Letter, 1863


Carta da árvore triste 
(a minha mulher)


quando te levantares e abrires as janelas
a luz espalhar-se-á por toda a casa
cobrirá suavemente os objetos e o mobiliário
devolvendo-lhes os seus pesos formas e volumes
acordá-los-á para as quotidianas utilizações
e as petúnias em plástico na jarra da sala agitar-se-ão
à tua passagem em direção à cozinha
a cidade entrará repentinamente pela casa adentro
um grito nas traseiras sacode-te para o interior baço da manhã
buzinas sirenes
o telefone do vizinho atravessando as paredes
gritos de crianças derrapagens estridentes
outro telefone
uma porta que se fecha com estrondo
passas o olhar pelo jornal de ontem em cima da mesa
lês: um papagaio valioso com 32 anos
capaz de falar em 3 idiomas
foi morto por um jovem drácula de nome punk
Carlinhos Monóxido
o papagaio foi encontrado morto e de olhos saídos das órbitas
suspeita-se que...
o telefone parou de tocar
atiras o jornal para o caixote do lixo
reparas então que tudo o que permanecera na penumbra do sono
surge subitamente nítido e coberto de luz
como se tivesses encontrado uma fotografia esquecida
no fundo dalguma gaveta forrada a papel-manteiga
o dia instalar-se-á igual aos outros milhares de dias
com a banal crueldade dos acontecimentos
ouves rádio enquanto o café aquece
deixas queimar um pouco as torradas
passas os dedos pelos cabelos atados numa fitinha de chita
ajeitas o roupão para cobrires o peito desarrumado
depois
com a chávena de café na mão mexendo o açúcar
arrastando os chinelos de borracha virás até aqui
onde encontrarás esta carta

serão talvez nove horas
a rádio cospe anúncios de sabonetes e detergentes
o irritante pi do sinal horário
suspiras ao pegar no envelope
e apenas o teu suspiro te parecerá deslocado
de resto há muito que os teus dias são o decalque uns dos outros

escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco tremeluzia pelas cortina do quarto
como um presságio
nos objetos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelam-me a pouco e pouco a desolação em que tenho vivido

é-me desconhecida a vida fora dos sonhos e dos espelhos
tu brincavas com o sangue
a noite cola-se-me aos gestos
enquanto balbucio com dificuldade esta carta
onde gostaria de deixar explicadas coisas
não consigo
o silêncio é o único cúmplice das palavras que mentem
eu sei
comemos a lucidez do asfalto
mudámos de morada sempre que foi preciso recomeçar
vivíamos como nómadas sem nunca nos habituarmos à cidade
mas nada disto chegou para nos entendermos
o tempo transformou-se num relógio de argila
tudo esqueci dessas derivas
e pelo corpo de nossos desencontros diluíram-se os sonhos
a verdade é que nunca teria conseguido escrever-te
sob o peso da luz do dia
a excessiva claridade amputar-me-ia todo o desejo
cegar-me-ia tentaria cicatrizar as feridas reabertas pela noite
sou frágil planta noturna e triste
o sol ter-me-ia sido fatal
conduzir-me-ia ao entorpecimento da memória
e eu quero lembrar-me do teu rosto enquanto puder
o pior é que me falta tempo
sinto a manhã cada segundo mais próxima
ameaçadora e cruel
a luz arrastar-me-á para uma espécie de inércia inexplicável
o silêncio será definitivo
o sangue adormece nas veias e o desejo de permanecer
arremessar-me-ia para o esquecimento sem regresso
poderia até projectar um eventual regresso antes de partir
tenho a certeza de que parto para sempre
não haverá regresso nenhum
creio que se tornaria mais fácil escrever-te de longe
na deambulação por algum país cujo nome ainda não me ocorre
num país com sabor a tamarindos rodeados de mar
onde flores mirrassem ao entardecer e devagar
a paixão nascesse durante o sono
um país um pouco maior que este quarto
fingiria escrever-te para te enviar a minha nova morada
poderia assim queimar os dias no desejo de receber noticias
inventaria mesmo desculpas plausíveis
greves dos correios inexistentes terríveis epidemias
catástrofes
e na espera duma carta acabaria por me embebedar
beber muito e esperar
esperar
digo tudo isto mas já não te amo

não te amo
olho em redor pela última vez demoradamente
sinto-me como uma ilha cuja base se desprendeu do fundo do mar
naufraga algures com todo o seu peso diáfano de praias
uma sensação de limos frios desce às mãos
nunca fizeste caso da minha loucura
nunca vieste visitar-me quando estive internado nunca
o enfermeiro azul-sabonete chegava às cinco em ponto
injetava-me e sorria
atava-me debaixo de fortíssimas lâmpadas e sorria
esperei continuamente a tua visita
nunca vieste
ficava estendido inerte a gritar para dentro do corpo
as unhas abrindo sulcos nos lençóis sujos de mijo
e sabia que lá fora as avenidas esvaziavam-se
enquanto a morte se passeava no rosto despreocupado duma mulher
a carne rasgava-se-me ao simples contacto com os dedos
a dor invadia-me os órgãos do corpo que eu nunca vi
esperava-te
por cima da cama voava um corpo translúcido filiforme
passava rente ao peito agredia-me
quando eu tentava gritar afastava-me embatia
contra as paredes fazia frio e tu não vinhas
era inverno dentro e fora de mim
já não me lembrava de nenhum número de telefone
nenhum nome amigo
as pernas e as mãos eram de geleia fendiam-se
ao contacto de línguas de vidro invisível
nem sequer telefonaste
tentava caminhar e tudo o que conseguia era bater
com a cabeça no lavatório tentava lembrar-me do meu nome
e só um rápido movimento de barbatanas sujas me aflorou a boca
esperei que viesses ao entardecer
abrisses os braços para mim
esperava que surgisses como um osso de luz reconhecível
mesmo durante a noite esperei
que me prendesses de novo para que não se enchesse o quarto
de peixes de enxofre devoradores de paredes
e tu nunca vieste
mais nada me poderia acontecer
teu rosto chegava-me à memória como mancha de fumo
longínqua nódoa de água e sangue
nos pulsos
uma mancha e tu não chegaste

desculpa
o que te queria dizer talvez não fosse isto
a solidão turva-se-me de lágrimas
e nas pálpebras tremem visões do meu delírio
olho as fotografias de antigos desertos
corpos coerentes que fomos
bocas de papel amarelecido
onde a sede nunca encontrou a sua água
e às vezes ainda tenho sede de ti
mas na vertigem da viagem o coração galopa desordenadamente
no écran da memória acende-se a imagem da mulher que amei
quase nítida vejo-te sentada
à porta da rua bordando um pano de linho branco
só esta imagem transportarei comigo
embora nunca tenha conseguido saber o que bordavas
uma colcha? uma toalha? um sudário?
também nunca to perguntei
tinha tempo de sobra para o descobrir
vivíamos longe da cidade espreitavas a nesga de mar
como uma risca de azul cerúleo ao fim da rua

agora tens as traseiras enlameadas dos prédios para olhar o lixo
cães magros ganindo fogem
às vassouradas de porteiras húmidas de gordura e rolos na cabeça
tens carros estacionados
e todas as merdas que atiram fora pelas janelas
furtivamente durante a noite ou de madrugada
de tempos a tempos o som quase limpo da flauta do amola-tesouras
pergunto-me se a memória não será um espaço arquitetado
para abrigar os mais terríveis remorsos e o futuro

a noite corrói
balbucio algarismos nomeio peixes e flores de todos os mares
de todos os continentes os ventos os naufrágios por vir
o estrume humano a seiva viva das plantas os astros
uma a uma as aves
as cidades onde me perco e me reencontro
a esperança e a dúvida
o medo das antárticas cidades do sonho
ah como me recordo ainda de ti!
a noite é uma teia de sirenes que te acordam
e me esfrangalham os nervos
derrapas na insónia engoles comprimidos coloridos
para escapares ilesa à inquietante desolação do sexo
amávamo-nos
e para que não nos devorasse o silêncio
tartamudeava nomes de barcos: Delfim dos Trópicos Lírio dos Mares Ave do Tirreno
Virgem das Maresias Furacão de Delfos Limo de Zanzibar Quilha das Índias

não
não estou a enlouquecer
amávamo-nos mesmo quando bordavas e te ferias com a agulha
o sangue alastrava pelo pano
apressadamente bordavas algumas flores para o esconderes
compreendo hoje como era doloroso o nosso amor
onde terás esquecido o pano bordado?
tudo se perdeu
e na confusão do pouco tempo que me resta duvido
que nos tenhamos amado alguma vez

os dias tornaram-se vertiginosos quando mudámos para a cidade
assim que andavas de metro punhas-te a delirar com viagens
contavas-me aventuras de transiberiano
afinal sou eu que parto
e não irei do Campo Pequeno aos Anjos
por onde andará a paragem do meu transiberiano?
quem sabe se numa praia em que leões cansados de selva
vêm espreguiçar-se no crepúsculo do areal
quem sabe se o sonho ou a morte me conduzirá a algum porto
onde possa embarcar para não sei que outro porto

víamo-mos cada vez menos até que nos perdemos definitivamente
foi quando me assolaram as primeira visões
as nossas noites eram sempre mais longínquas uma da outra
a tua vida encheu-se afazeres mesquinhos
televisão cabeleireiros tricots intermináveis
conversas idiotas ao telefone concursos de rádio
furtivas saídas ao cinema do bairro e à leitaria da esquina
como se eu ligasse alguma coisa ao que fazias
eu já andava atravessando as noites
onde uma navalha oculta talhava um sexo branco no vento
abria nas pedras fulvas da praia um lugar para esconder
o corpo exausto
a febre esmagava-me
recolhia aos quartos de pensão
com as mãos e o peito cheios de pássaros de haxixe e de vinho
tinha medo
medo que certos hálitos fortes me fizessem estremecer
apesar de tudo avançava fascinado
trémulo noite dentro avançava sempre para me afastar
de ti e de mim o mais que pudesse

experimentei breves paixões tristes carícias
cantei com as lágrimas molhando as palavras sussurradas
no escuro do quarto cantava
a cidade de olhos entumecidos a fome entorpecia os gestos
atirando o corpo para o mais terrível abandono
internaram-me e tu nunca vieste visitar-me
não tenho vontade de voltar a falar sobre isto
vou partir sem saudades e sem dinheiro
vou partir sem levar um só objeto que me lembre teu corpo
levo apenas uma espécie de fogo no fundo de mim
uma ânsia que não sei explicar
lembro-me de quando enlaçava os braços em tuas pernas
uma nuvem de aves vinha pousar nos ossos
tua boca deixava na minha um travo de asas estelares
o sexo húmido perfumado
não não julgues que estou de novo a enlouquecer
para lá de meus olhos fechados com força o mundo acorda
cheio de ecos e de venenos
moves-te nesse mundo que eu recuso
aqui donde te escrevo apenas uma parte de mim ainda não partiu
era isto que te queria dizer
poderás começar a preparar a espera
pouco me importa que continues a polir móveis
e a mudares a água das jarras
ou a encerares o soalho dos corredores
podes varrer os quartos
varrer a cozinha vagarosamente
eu nunca mais entrarei em casa com os sapatos enlameados
e tu
gritando coisas que eu já não podia compreender
encontrarás provavelmente um ou uma amante que te ajude
a suportar o vazio e o tédio desta casa
e um dia acabarás por trocar novamente esse amor
pela limpeza maníaca dos móveis
pela máquina de lavar e o seu funcionamento
os eletrodomésticos sempre foram mais importantes do que eu
mas não terás que te preocupar mais com as tuas pedradas
nem com as bebedeiras nem com a música em altos berros
talvez consigas arranjar boas razões
para de quando em quando insultares o frigorífico
ou então mete-o de caras na cama
poderás partir um prato do serviço com violência
ou atirares com os cinzeiros à parede
estou-me nas tintas sempre me estive borrifando
para as tuas fúrias eletrodomésticas
e agora sozinha nada disto terá sentido
resta-te o tricot o infindável tricot da chatice e do silêncio
os dias quase sem ninguém
arrastar-se-ão contigo colada às vidraças olhando
olhando a chuva ensopar os papéis que se estampam
contra o asfalto imundo do estacionamento das traseiras
e o vento arrastará na primavera o cio
dos animais fechados nos quintais
então lembrar-te-ás de mim
os dias incendiar-se-ão no susto da interminável espera
mas hoje ao acordares
sentirás que te povoo ainda o corpo e a memória

não te deixo o número de telefone de meu amigo
não quero que com ele alguma vez venhas a falar
e tentes saber onde estou
vou partir sem rumo
por isso será inútil perguntar em que direção fui
por outro lado penso que o meu amigo
não estaria disposto a dividir segredos contigo
achas que deveria explicar esta amizade?
não posso não tenho coragem
ou talvez seja unicamente por pudor

a manhã começou a furar a noite
chega-me pelas frinchas das persianas
cheira a cimento molhado e a bolor
parto dentro de breves instantes
apenas levo a roupa que trago vestida e algum dinheiro
muito pouco
daquele que normalmente se destina às despesas da casa
espero que encontres neste ato um pretexto para me odiares
não levo recordações
a não ser daquelas que por mero acaso mencionei nesta carta
quase nada
poderás deitar fora a minha roupa
e todos os meus objetos pessoais
para onde vou não preciso deles
as fotografias queimei-as ontem à noite enquanto saíste
se telefonarem do emprego diz
que fui ver se ainda existem Índias por descobrir
ou que morri ou que me transformei
diz o que te der mais jeito
pensei deixar-te duas cartas para meteres no correio
mas no último instante eu mesmo as ponho no marco da esquina

quando te levantares e abrires as janelas
a luz espalhar-se-á por toda a casa
sem mim a casa amanhecerá doutra maneira
a ausência que já sou estando ainda aqui e a culpa
impregnar-se-ão em tudo quanto existiu entre nós
tornar-se-á insuportável continuares a viver sozinha
eu estarei longe
nas costas dalguma Etiópia
onde quantidades de lumes se avistam
longe
no cimo lúcido de meu próprio corpo contemplando
o fulgurante sangue dos astros
muito longe
no segredo desse lugar único
em que a escuridão da noite parece eterna claridade


O Medo
In Três Cartas da Memória das Índias
Assírio & Alvim, 2000


Auguste Toulmouche (1829-1890), Young woman in an interior, 1881


"Em todas as separações tem mais amargo quinhão de dores o que fica, que o que vai partir."



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