segunda-feira, 15 de abril de 2024

"Cantiga de Abril" - Poema de Jorge de Sena


 
Ilustração de Francisco de Sousa (Frank o Mudo), Revolução I
 
 
 
Cantiga de Abril
 
Às Forças Armadas e ao povo de Portugal
«Não hei de morrer sem saber qual a cor da liberdade.»
J. de S
.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
a conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.

Qual cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essa paz do cemitério
toda prisão e censura,
e o poder feito galdério,
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por política demente.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim altiva e nua
com força que não recua,
a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
 
26/28-4-1974

Jorge de Sena
(1919 —1978),
Quarenta Anos de Servidão
(1979, póstumo) 

Ilustração de Francisco de Sousa (Frank o Mudo), Soldado de Abril
 
 
"Quando, alguma vez, a liberdade irrompe numa alma humana, os deuses deixam de poder seja o que for contra esse homem." 
 
"Quand une fois la liberté a explosé dans une âme d'homme, les Dieux ne peuvent plus rien contre cet homme-là."

Jean-Paul Sartre (1905–1980), Théâtre: Les Mouches - página 86 - Gallimard, 1947
 

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