domingo, 2 de agosto de 2020

"Cartas a Ophélia Queiroz" - Fernando Pessoa


Carolina Zambrano Enriquez, Fernando Pessoa y Heterónimos



Carta a Ophélia Queiroz  - 1 Mar. 1920


Ophelinha:

Para me mostrar o seu desprezo, ou, pelo menos, a sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da série de «razões» tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-mo. Assim, entendo da mesma maneira, mas dói-me mais.

Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação — creio eu — de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.

Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as coisas, nem trata os outros como réus que é preciso «entalar».

Porque não é franca para comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal — nem a si, nem a ninguém —, a quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lha venham acrescentar criando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe afeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.

Reconheço que tudo isto é cómico, e que a parte mais cómica disto tudo sou eu.

Eu-próprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra coisa que não fosse no sofrimento que tem prazer em causar-me sem que eu, a não ser por amá-la, o tenha merecido, e creio bem que amá-la não é razão bastante para o merecer. Enfim...

Aí fica o «documento escrito» que me pede. Reconhece a minha assinatura o tabelião Eugénio Silva.

1.3.1920

Fernando Pessoa

Cartas de Amor. Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa: Ática, 1978 (3ª ed. 1994) - 1.


Ophélia Queiroz


Ophélia Queiroz
nasceu em Lisboa, na Rua das Trinas, no dia 14 de junho de 1900.

Filha de pais algarvios, de Lagos, é a mais nova de oito irmãos. Concluiu o primeiro grau da instrução, embora desejasse ser professora de matemática, mas procurou estar sempre atualizada estudando Francês e Inglês.

Gostava de ler, de ir ao teatro e de conviver. Passava muitas horas em casa do sobrinho, o poeta Carlos Queirós, a conviver com grandes artistas como Carlos Botelho, Vitorino Nemésio, Almada Negreiros, Olavo d'Eça Leal, Teixeira de Pascoaes, José Régio e outros.

Ophélia foi a namorada de Fernando Pessoa durante duas fases: de 1 de maio a 29 de novembro de 1920 e de 11 de setembro de 1929 a 11 de janeiro de 1930, embora o contacto entre os dois se mantenha cordial, mas esporádico, até à morte do Poeta.

A primeira fase, marcada por uma paixão sincera, termina com uma carta em que Pessoa afirma que o seu destino pertence a outra lei.

O reencontro, motivado por uma fotografia do Poeta a beber no Abel Pereira da Fonseca, oferecida a Carlos Queirós, inicia-se quando esta mostra vontade de possuir uma igual e ele lhe envia uma com a dedicatória: "Fernando Pessoa em flagrante delitro". Nesta segunda fase, nota-se uma enorme confusão de sentimentos e perturbação psíquica.

A partir de 1936 até 1955, Ophélia Queiroz trabalhou no SNI (Secretariado Nacional da Informação). Nesse ano, na Tobis, conhece Augusto Soares, um homem de Teatro, com quem casa em 1938. (Daqui)


Fernando Pessoa em 1914 


Carta a Ophélia Queiroz - 29 Nov. 1920

Ophelinha:

Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa — o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?

Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem.

O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou.

Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?

Na sua carta é injusta para comigo, mas compreendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com mágoa, mas, a maioria da gente — homens ou mulheres — escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio óptimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.

Quanto a mim...

O amor passou. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca — nunca, creia — nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequenina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua índole amorável. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe atribuo, fossem uma ilusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lhas atribuísse.

Não sei o que quer que lhe devolva — cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados; como alguma coisa de comovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na infelicidade e na desilusão.

Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.

Que isto de «outras afeições» e de «outros caminhos» é consigo, Ophelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.

Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.

 29-11-1920

Fernando Pessoa

Cartas de Amor. Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa: Ática, 1978 (3ª ed. 1994) - 36.


 
Fernando Pessoa em 1928


Cartas a Ophélia


Ler a correspondência alheia é, alerta-nos a autoridade, atividade criminosa. Que o leitor amigo aceite, portanto, o saboroso convite a um ilícito voyeurismo: trata-se de desvendar as cartas amorosas de um dos maiores poetas do século passado, o português Fernando Pessoa. Se todo homem é um universo de percepções, sonhos e experiências, a alma multiforme de Pessoa cindiu-se numa miríade de galáxias, desveladas pela esquizofrenia literária da heteronímia. O poeta são poetas, e é esse parnaso pessoal, composto por filósofos panteístas, médicos aristocráticos, engenheiros futuristas, escrivães misantropos, que constitui um dos maiores desafios ao entendimento desse pequeno funcionário português, desse cultor da astrologia e do ocultismo, do homem metódico dado ao vício do álcool, da carne que se fez verbo, coerente com a troca de sinal da mensagem do evangelho que representou seu projeto de existência.

Nas cartas, endereçadas por Fernando Pessoa a sua amada Ophélia, é impossível não reconhecer os ecos de outra célebre epistolografia literária, aquela trocada por Franz Kafka e sua noiva, Felice Bauer; ambos, Kafka e Pessoa, foram burocratas medíocres, que consumiram a vida no processo monomaníaco de encontrar o sumo da existência, transmutada na obra (talvez não fosse de todo incorreto afirmar que, para Pessoa e Kafka, parodiando os versos do primeiro, escrever é preciso, viver não é preciso), ambos vivendo paixões fadadas ao fracasso, repletas de extremado apego e de obsessões neuróticas.

Como apontará o romancista italiano Antonio Tabucchi, estudioso dos labirintos de Pessoa, na notável introdução ao volume, devemos enfrentar as desventuras epistolares do poeta português com olho armado, e uma saudável dose de perspicaz ceticismo. Quem era tantos (ou um outro, na formulação famosa de outro poeta, Rimbaud, que no exercício de sua clarividência percebeu uma das fraturas mais fundamentais da modernidade) não pode mesmo se expressar com a naturalidade inocente de um colegial apaixonado, ou ainda: é justamente a expressão, pouco apaixonada, por vezes quase infantil, do amor de Pessoa, que nos deve fazer desconfiar que, sob a camada de gelo fino da paixão sem erotismo, reverbera um oceano de complexidade gigantesca, quase insondável. “Fausto em gabardina”, dirá Tabucchi, ao traduzir a odisseia moral do poeta e de sua Ophelia, e é mesmo isso.

Assombrado pela obsessão dos relógios, dos documentos, da confirmação de seu amor, Pessoa (Qual deles? Todos? Quem?) parece, angustiosamente, ao narrar seus pequenos acidentes domésticos, seus contratempos diários, suas indisposições físicas, perseguir um sentido de normalização, uma via de tranquilização através do Outro, a plena realização de si por intermédio do ordálio amoroso. E não é de surpreender que, tendo tornado a si mesmo personagem, e metamorfoseado sua vida em construção literária, a própria compreensão do amor, seja, para Pessoa, a de uma página artística.

Se a vida desimporta – no sentido mais pedestre que se possa atribuir a uma palavra tão eivada de sentido quanto “vida” – e se no lance de dados só a obra seja o próprio sentido das coisas, o amor só interessa, ele mesmo, como objeto poético. Daí que o amor de Pessoa seja tão casto, tão inocente, tão platonizante, tão despido de sexualidade e de carne: aqui, todo gozo se localiza no campo da palavra e da ideia: “O amor é que é essencial/ O sexo é só um acidente”, segundo a ascética formulação expressa nos versos do ortónimo.

A leitura da correspondência alheia não é atividade inocente. Muito menos se o signatário das cartas intitular-se Fernando Pessoa. (Daqui)



 
Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz. Correspondência Amorosa Completa



Correspondência Amorosa Completa
1919-1935


Este volume reúne toda a correspondência amorosa trocada entre Fernando Pessoa e sua única namorada, Ofélia Queiroz, de 1919 a 1935, com 156 cartas inéditas. Foi uma história de amor discreta, que poderia ter permanecido totalmente esquecida se Fernando e Ofélia não tivessem guardado por toda a vida as quase 350 cartas, cartões-postais, bilhetes e telegramas trocados entre eles.

Ofélia tem 19 anos e Fernando, 31, quando o namoro começa. Ela é uma moça inteligente e viva, apaixonada pelo poeta, de quem espera uma proposta de casamento. A jovem lisboeta o afoga em cartas, e chega a assinar - Ofélia ´Pessoa´ (quem me dera). Mas também sabe se prestar ao jogo dos heterónimos de Pessoa - A. A. Crosse e Álvaro de Campos são presenças recorrentes nas cartas, e Campos até mesmo assina uma das cartas de Pessoa. A forma epistolar é fundamental nessa relação, com ruptura em 1920 e curta retomada em 1929.

Para os admiradores de Fernando Pessoa, a leitura deste livro, no qual todas as imagens dos escritos na sua letra são reproduzidos pela primeira vez, faz reviver cada etapa deste episódio marcante de sua biografia, que humaniza o poeta. (Daqui)


"Fernando Pessoa em flagrante delitro": dedicatória na fotografia
 que ofereceu a Ophélia Queiroz em 1929.
 

Um dia, um conhecido disse a Fernando Pessoa (1888-1935): 
"O senhor bebe como uma esponja!"

O autor de O Livro do Desassossego terá respondido: 
"Como uma esponja, não. Como uma loja de esponjas, e com armazém anexo."

Sentado à mesa do Martinho da Arcada ou de outros cafés da Baixa lisboeta, Pessoa fumava cerca de 80 cigarros por dia e bebia - vinho, sim; whisky, em ocasiões especiais; absinto, por influência do amigo Mário de Sá-Carneiro; mas, sobretudo, bagaço e aguardente. Até trazia sempre consigo, na pasta de cabedal, uma garrafinha preta com essa bebida. Mas sem perder a compostura.

Mesmo na fotografia que enviou à namorada Ofélia, "apanhado em flagrante delitro", como ele próprio escreveu, no depósito da casa Abel Pereira da Fonseca, ali está, impecável, de copo na mão e chapéu na cabeça. (Daqui)


Fernando Pessoa na Baixa de Lisboa


“Se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para a Rua dos Douradores.” 

Fernando Pessoa – Livro do Desassossego


"Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma mas para não ter que desabotoar o casaco.

Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se na minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não incarna a substância de milhares de vozes, a fome de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha no destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reacção contra mim desce-me da inteligência… Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, sinto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que esquecido estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui eu assim!…"

 Fragmento do "Livro do Desassossego", a obra-prima em prosa escrita por Fernando Pessoa, através do seu semi-heterónimo Bernardo Soares. Segundo assim o definiu Fernando Pessoa, Bernardo Soares era ajudante de guarda-livros e vivia e trabalhava na Rua dos Douradores, em Lisboa.

Fonte:
Livro do Desassossego. Vol.II. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1990. - 33,34. 



Estátua de Fernando Pessoa da autoria de Lagoa Henriques, no café A Brasileira, no Chiado, Lisboa.


Em 29 de Novembro de 1935, Fernando Pessoa foi internado com o diagnóstico de cólica hepática. A sua última frase, escrita em inglês, dizia: "I know not what tomorrow will bring".

Morreu no dia 30, com 47 anos, deixando grande parte da sua obra ainda inédita.

Fernando Pessoa é considerado universalmente um dos maiores poetas de sempre. 


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