quarta-feira, 12 de agosto de 2020

"Se todo o ser ao vento abandonamos" e "Aqui" - Poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen


Peder Mørk Mønsted, View from the Valley of the Temples in Sicily
with Agrigento in the background, 1885


Se todo o ser ao vento abandonamos



Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus, em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma beberá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos. 



Peder Mørk Mønsted, A mother and child by a chapel, Kitzbühel, 1917


Aqui



Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem,
No interior das coisas canto nua.

Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos,
Aqui sou eu em tudo quanto amei.

Não por aquilo que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos a tos que vivi,

Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.
(1947, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed. 1974)
 

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