domingo, 9 de agosto de 2020

"Mahler" (A Canção de Deus e Morte) - Poema de José Emílio-Nelson


Hugues Merle (French, 1823-1881), L'Abandonnée, 1872


Mahler


(A Canção de Deus e Morte)


No jardim das almas
A fala caída.
Como se fosse a canção de
Deus e Morte.
A canção do cadáver
Sombrosa e rente.
Uivo. Brechas.
Ululante.
Compassadamente
O coração solto
Rasgado contra o céu maciço.
E de abismo ou de crateras
Um ardil. Incessante
Profundidade e permanência interminável
Na terra ímpia.
O relâmpago rasteja Deus.
Abre-se a solidão
Nos ombros do Inferno.

Quem vislumbra pérfido
No alçapão da sombra?
E o ricochete da luz?
Que castigo inexpiável?
Haverá uma música da fatalidade?
E quem lhe deve obedecer?
Sou miserável e perturbante.
Dou-me à paisagem destituída.
À árvore devastadora. À borboleta esmagada.
(O restolho enovelando.
Um bestiário precipitando-se.
Sacudindo-me.
Que aurora imprevista
Impulsivamente no mundo?)
Cantava a impaciência
Melancólica.
A dor radiante.
A vastidão.


José Emílio-Nelson,
in A Palidez do Pensamento


José Emílio-Nelson nasceu em 1948 em Espinho. Obras: Polifonia (1979), Polifemo e Outros Poemas (1983), Extrema Paixão (1984), Nu Inclinado (1985), Queda do Homem (1989), Vida Quotidiana e Arte Menor (1990), A Palidez do Pensamento (1990), Claro Escuro ou a Nefasta Aurora (1992), Sodoma Sacrílega e Poesia Vária (1991), Mosaico (1996), A Alegria do Mal - Obra Poética 1979-2004 (Quasi, 2004).


Nota crítica sobre a poesia de José Emílio-Nelson, por Luís Adriano Carlos

José Emílio-Nelson, editor dos seus próprios livros, é um daqueles poetas que a crítica insiste em não reconhecer como uma das vozes mais originais da poesia portuguesa das últimas duas décadas.
Situando as suas referências numa genealogia heteróclita e maldita que passa principalmente por Sade, Lautréamont, Rimbaud, Nietzsche, Jarry, Ângelo de Lima, Artaud e Bataille, associa com ostensivo sentido derrisório uma altivez aristocrática da expressão a um hieratismo litúrgico em que o simbolismo sacral da linguagem é atravessado por intensos odores de profanação escatológica. Poesia que cinicamente recusa a ética da virtude e dos bons sentimentos, encontra na reinvenção de uma inconfundível estética do vício e da crueldade o melhor caminho para separar a estética da moral e exercer sem contemplações uma crítica ética da natureza infra-humana ou demasiado humana que a Moderna poesia virtuosa e benquista acaba por camuflar sob o manto da beleza, do bom gosto, da razão ou mesmo do prestígio cultural. Dionisíaca e satânica, dissolvendo as imagens da tentação em cenários que evocam o mundo-cão boschiano e enfatizando a violência transgressora do erotismo, liberta das palavras as suas pulsões mais negras com vista a uma teatralização da escrita plena de descrições que perfuram perversamente os objectos nomeados. Tudo isto implica uma desarmante consciência da escrita como gozo sensual e libidinoso, apesar de contida e despojada, ou como voluptuosa deglutição de fragmentos citacionais, oriundos de toda uma rede de textos literários e artísticos, que actuam reativamente no metabolismo do discurso para proporem um pacto de leitura assente no mais excessivo dos desconfortos críticos. (Daqui)


Gustav Mahler - Symphony No. 3 (Lucerne Festival Orcherstra, Claudio Abbado)

Claudio Abbado, maestro italiano


Gustav Mahler, compositor e maestro austríaco nasceu em 1860, na Boémia, na Áustria, e morreu em 1911, em Viena. Foi um dos compositores mais marcantes da música do século XX, acabando por exercer uma enorme influência em Arnold Schoenberg, Dimitri Shostakovich e Benjamin Britten.

O seu talento musical revelou-se muito cedo. Com apenas quatro anos, fascinado pela música militar e pela música popular, começou a compor pequenas peças de piano e, aos quinze anos, ingressou no Conservatório de Viena. Os anos seguintes foram marcados pela sua ascensão como maestro e, aos trinta e sete anos, foi nomeado diretor da Ópera de Viena.

Influenciada pela escola de Richard Wagner e de Franz Liszt, a expressão musical de Mahler não era mais do que uma visão pessoal do mundo. A própria tensão, o estilo retórico, as orquestrações vivas e o uso irónico da música popular encontram-se bem presentes em várias sinfonias -- de fortes contrastes, mas unidas pela sua personalidade inequívoca.

O programa da orquestração da Symphony N.º 1 in D Major (1888) é uma autobiografia da sua juventude; o prazer da vida foi perturbado pela obsessão da morte na macabra Funeral March in the Manner of Callot. Os cinco andamentos da Symphony N.º 2 (1894) abrem, também, com a obsessão da morte. A Symphony N.º 3 in D Major (1896) representa, em seis andamentos, a visão dionisíaca de uma enorme sequência de pessoas, que se movem da natureza inanimada para a consciência de Deus.

Os elementos religiosos, presentes nos seus trabalhos, são extremamente significativos, uma vez que a sua infância e juventude foram marcadas pelas tensões raciais (ele era judeu) e pelos conflitos entre os seus pais.

Depois de dirigir espetáculos no Metropolitan Opera e de ser maestro da Philharmonic Society of New York, regressou definitivamente a Viena, onde morreu em 1911. Embora a sua música fosse ignorada durante os cinquenta anos que se seguiram à sua morte, Mahler passou a ser olhado como um dos precursores das técnicas de composição do século XX, sendo celebrizado pelas dez sinfonias que compôs. (Daqui)


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