segunda-feira, 10 de agosto de 2020

"Ser ou não ser, eis a questão" - Poema de William Shakespeare


Hugues Merle, Hamlet and Ophelia, 1873


Ser ou não ser
(tradução de Machado de Assis)

Hamlet, Ato 3 Cena 1

Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe!
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões do orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida coisa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde,
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta ideia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.


William Shakespeare,
em “Poesias Ocidentais”/Obra Completa,
de Machado de Assis, vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
(Publicado originalmente em Poesias Completas: 
Machado de Assis, Rio de Janeiro: Garnier, 1901)



John William Waterhouse, Ophelia, 1894


Ser ou não ser
(Tradução de  Bárbara Heliodora)

 Hamlet, ato III, cena 1

Ser ou não ser, essa é que é a questão:
Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer, dormir,
Nada mais; e dizer que pelo sono
Findam-se as dores, como os mil abalos
Inerentes à carne – é a conclusão
Que devemos buscar. Morrer – dormir;
Dormir, talvez sonhar – eis o problema:
Pois os sonhos que vierem nesse sono
De morte, uma vez livres deste invólucro
Mortal, fazem cismar. Esse é o motivo
Que prolonga a desdita desta vida.
Quem suportara os golpes do destino,
Os erros do opressor, o escárnio alheio,
A ingratidão no amor, a lei tardia,
O orgulho dos que mandam, o desprezo
Que a paciência atura dos indignos,
Quando podia procurar repouso
Na ponta de um punhal? Quem carregara
Suando o fardo da pesada vida
Se o medo do que vem depois da morte –
O país ignorado de onde nunca
Ninguém voltou – não nos turbasse a mente
E nos fizesse arcar co’o mal que temos
Em vez de voar para esse, que ignoramos?
Assim nossa consciência se acovarda,
E o instinto que inspira as decisões
Desmaia no indeciso pensamento,
E as empresas supremas e oportunas
Desviam-se do fio da corrente
E não são mais ação. Silêncio agora!
A bela Ofélia! Ninfa, em tuas preces
Recorda os meus pecados.

 
William Shakespeare
,
em “Por que ler Shakespeare,
 de Bárbara Heliodora, 1923-2015


Benjamin West (1738-1820), Hamlet: Act IV, Scene V (Ophelia Before the King and Queen), 1792,
Cincinnati Art Museum


To be or not to be

Spoken by Hamlet, Act 3 Scene 1


To be, or not to be: that is the question:
Whether ’tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them? To die: to sleep;
No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache and the thousand natural shocks
That flesh is heir to, ’tis a consummation
Devoutly to be wish’d. To die, to sleep;
To sleep: perchance to dream: ay, there’s the rub;
For in that sleep of death what dreams may come
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause: there’s the respect
That makes calamity of so long life;
For who would bear the whips and scorns of time,
The oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,
The pangs of despised love, the law’s delay,
The insolence of office and the spurns
That patient merit of the unworthy takes,
When he himself might his quietus make
With a bare bodkin? who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscover’d country from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?
Thus conscience does make cowards of us all;
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pith and moment
With this regard their currents turn awry,
And lose the name of action.–Soft you now!
The fair Ophelia! Nymph, in thy orisons
Be all my sins remember’d.

William Shakespeare
1564-1616




"Hamlet" é uma tragédia de William Shakespeare, escrita por volta de 1601. A história do príncipe dinamarquês dramatizada na obra de Shakespeare tem raízes no registos lendários do norte da Europa. O poeta deverá ter-se inspirado na versão de François de Belleforest inserida na sua obra Histoires Tragiques (1559), que por sua vez teve a sua fonte no cronista dinamarquês do século XIII, Saxo Grammaticus.

Existia uma peça com o mesmo título quando Shakespeare escreveu o Hamlet, supostamente da autoria de Thomas Kyd, podendo o autor ter-se inspirado nela. A peça de Shakespeare tem alguns paralelos com uma outra obra de Kyd, Spanish Tragedy.

Hamlet dramatiza uma situação de vingança: Hamlet descobre que o seu tio, Claudius, casado com a sua mãe, Gertrude, logo após a morte do seu pai (King Hamlet), foi na realidade o autor dessa morte. A revelação do assassínio é feita a Hamlet pelo fantasma do pai numa altura em que Claudius já usurpou o trono do irmão. A culpa de Claudius é transmitida ao público indiretamente, através de Hamlet, que partilha a verdade com o seu companheiro Horatio.
Atormentado pelo conhecimento dos factos e desconfiado de todos à sua volta, Hamlet acaba por causar a morte da sua amada Ophelia e de seu pai, Polonius. A hostilidade de Hamlet desencadeia uma outra vingança: Laertes, irmão de Ophelia, associa-se a Claudius para vingar a morte do pai e da irmã.

Através de Hamlet, Shakespeare desenvolveu a questão das relações entre a ação e o pensamento. As modulações de linguagem transmitem as hesitações de Hamlet perante uma verdade que ao mesmo tempo o incita a agir e lhe impede a ação. É o carácter de Hamlet que o impossibilita de cumprir a vingança e lhe prolonga um complexo sofrimento.

O adiamento da morte de Claudius e as constantes hesitações de Hamlet refletem a complexidade do seu carácter e a subtileza da análise proporcionada por Shakespeare. Os críticos debruçaram-se mais sobre esta do que sobre qualquer outra personagem das suas peças. Sobretudo a partir do Romantismo multiplicaram-se os estudos em torno da figura de Hamlet. Procuraram-se as razões que levaram Hamlet a hesitar e gerou-se uma controversa irresolúvel.

Para além de conter uma das mais notáveis análises psicológicas de toda a obra de Shakespeare, Hamlet revela ainda o conhecimento que o autor tinha das condições específicas de produção dramática. Do ponto de vista da linguagem, trata-se de uma das mais sugestivas peças de William Shakespeare. (Daqui)




Ophelia é uma das personagens secundárias da peça Hamlet. Na referida peça, a personagem Ophelia morre afogada, num provável suicídio. A bela Ophelia, que amava Hamlet, vê-se privada do seu amor, passa a dar mostras de loucura após a morte do seu pai, Polonius, que fora assassinado por Hamlet. 
Enquanto Ophelia enlouquece, Hamlet apenas finge perder o juízo para conseguir vingar a morte do falecido Rei Hamlet, seu pai; e a sua melancolia forjada atinge tal grau que o leva a divagar sobre o suicídio. 

Ao longo dos tempos o interesse de diversos pintores recaiu sobre Ophelia, mais precisamente sobre a sua loucura e morte nas águas. A predileção pela personagem, em detrimento de outras, é considerável: não há outra personagem de Shakespeare que tenha sido mais retratada na pintura. 
Desde 1740, quando se teve notícia das primeiras ilustrações da peça, ela foi retomada pelas artes plásticas como o arquétipo da donzela indefesa. Derivada do tipo feminino da noiva ou amada morta em plena juventude – tipo caro aos poetas românticos – representava um modelo espiritualizado e espectral de mulher.



Sir John Everett Millais, Ophelia, 1851-1852, óleo sobre tela, 76,2 cm × 111,8 cm, Tate Gallery,
now renamed Tate Britain. His painting influenced the image in Kenneth Branagh's film Hamlet.

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