terça-feira, 1 de dezembro de 2020

"Teoria da incomunicação" - Poema de José Blanc de Portugal


Dora Carrington (English painter and decorative artist, 1893–1932),
Spanish Boy, the Accordion Player, c. 1924

 

Teoria da incomunicação


Incomunicável me levaram de menino
De casa em casa na casa de meus pais
De terra em terra às casas do Destino
Onde entrando não saímos mais.
Incomunicável a letra dos jornais
Notícias que não me falavam
Do que eu tinha de dizer a esses tais
Que tão cedo de mim me apartavam.
Incomunicável sem culpa formada
Mas já réu de ignotas faltas
A vida era-me adiada
Num hospital onde não dão altas.
Incomunicável à proposta de espera
Nunca a pude igualar a sorte
Esta é agora, e os logos a passar
Eram-me o primeiro ver da morte.
Incomunicável o mudar instante
Incomunicável a transformação
Incomunicável perto e distante
Incomunicável vida e coração
Incomunicável o chorar ou rir
Porque comunicar, eu o sabia,
Não é o mesmo que reproduzir.

II

Incomunicável a esperança que em mim puseram
Os que me quiseram como eu não sou nem era.
Incomunicável o meu querer que eles pudessem
Ver o que quisessem no que eu ia, sendo.
Incomunicável o eu querer agradecer
A única coisa que eu sei fazer:
A injustiça por excesso que posso devolver
Descontadas as custas do processo
Mesmo sem o querer.
Incomunicável o meu amor por tudo
Como podem sequer pensar que ele existe?
Eis-me, cristal impuro e mudo,
Incomunicável, inutilmente triste.

III

Incomunicável... Como? E se o não fosse:
Para quê falar comigo ou com alguém
Se a resposta é sempre a demonstrar
Que me falta toda e qualquer razão
Seja o que pretendo mal ou bem?
Fale de fogo, água, terra ou mar,
Todos me dizem que o meu sim é não,
Todos me falam em pedir sem dar,
Todos propõem sem nada aceitar,
Todos pretendem a si igualar
O que por ser alheio a quem nos escuta
Nem sequer se pode misturar...?
Porquê falar?
Para quê esta aparente luta
Em que o desafio é sempre do vencido
E a vitória do protetor
Que julga bem merecido
Tudo que lhe diz seu interlocutor
E nunca sente como própria dor
O que por si não pode ser sentido
E dele faz o justo vencedor
Que nem sequer tenta pesar
Quanto mais comprar o oferecido...?
Para quê falar?
Para quê, ainda, confessar a este papel
O que não é entendido por ninguém?
Para quê, se todo o mal ou bem
É de um só,
De alguém que nada de amável
Tem para ceder do que sentiu
E nem sequer pediu por estar no mundo e vê-lo,
Mas
                sempre
                                                  inadiavelmente
                                                                                                  incomunicável.


José Blanc de Portugal,       
in: Colóquio/Letras. Poesia, n.º 9, Set. 1972, p. 55-57. 
 
 
José Blanc de Portugal (daqui)


José Blanc de Portugal
, poeta e crítico musical, licenciado em Ciências Geológicas pela Universidade de Lisboa, cursou também História da Música e Psicologia. Desempenhou a função de meteorologista do Serviço Meteorológico Nacional, cujos centros dirigiu em Lisboa, Ilha do Sal, Santa Maria dos Açores, Ponta Delgada, Luanda e Moçambique.
Além de obras sobre a sua profissão, publicou trabalhos de crítica musical e traduções de diversos autores: Truman Capote, Gilbert Keith Chesterton, Carlo Coccioli, T. S. Eliot, Cristopher Fry, Jung, Pitágoras, Shakespeare, Fernando Pessoa.
Colaborou em algumas das mais representativas publicações poéticas dos anos 50, nomeadamente, Aventura, Graal, A Serpente, Litoral e Tempo Presente.
Co-dirigiu, em 1940, com Tomás Kim e Ruy Cinatti, Cadernos de Poesia, publicação eclética que, subordinada ao lema "Poesia é só uma", apresentava como objetivo "arquivar a atividade da poesia atual sem dependência de escolas ou grupos literários, estéticas ou doutrinas, fórmulas ou programas; e em cuja segunda série (Lisboa, 1951) subscreve, ao lado de Jorge de Sena, Rui Cinatti e José-Augusto França, uma conceção de poesia que "com todos os seus ingredientes, recursos, apelos aos sentidos, resulta de um compromisso firmado entre um ser humano e o seu tempo, entre uma personalidade e uma sua consciência sensível do mundo, que mutuamente se definem" e de poeta como "homem destinado a nele se definir a humanidade. Um ser capaz de ter todo o passado íntegro no presente e capaz de transformar o presente integralmente em futuro", através de uma "atitude de lucidez, compreensão e independência."
Comendador da Ordem do Infante D. Henrique e distinguido com a medalha Oskar Nobiling da Sociedade Brasileira de Língua e Literatura. (Daqui)


 
 
 
Texto de Eduardo Lourenço

«De todas as palavras que eu disse, nenhuma me surpreendeu tanto. O excesso de espanto tornou-a opaca. Muitos pensaram que eu tinha escolhido as parábolas para me conformar com as vestes do tempo. Escolhi-as para ir sem sombra à praia desnuda da verdade que é filha do tempo mas não tem tempo. Cada verdade é um estilhaçar da eternidade do tempo. Quando me cheguei a ver vivo no meio do mundo, recolhi no meu coração toda a luz do homem. Do meu eterno presente corria para a alvorada dos tempos e também ao encontro dos que ainda não existem numa luz unida, sem começo nem fim. A minha luz, a luz de Deus em mim, eu como luz de Deus, era uma só coisa. Por isso eu existia antes que Abraão existisse. Abraão não tinha ainda descoberto ainda que ele era a luz de Deus. Abraão é da linhagem humana um homem que vem depois de outro, o homem de uma viagem que prossegue sem conduzir o viajante ao lugar onde ele sempre esteve sem o saber. Eu soube que estava antes de Abraão e Jacob, porque só eu soube que um homem não pertence à linhagem humana mas está diretamente ligado à fonte infinita. Também podia ter dito que estava antes do céu e das constelações porque em mim o seu ser se converte em vida e verdade.

A Natureza teve de esperar a minha chegada para ser Natureza. Ela não o é senão num momento em que nos tornámos homens. E isto não aconteceu num certo dia, mas sempre e nunca, porque ninguém sabe ainda o quer isso significa – ser um homem – e por consequência ninguém sabe ainda o que é a Natureza. Da Natureza só podemos ter uma visão negativa. É tudo o que somos quando nos vemos a nós mesmos como seres que não são naturais. Mas quem se atreve a conceber-se fora da Natureza? O que nos é absolutamente natural é contemplarmo-nos como irmãos da lua, do sol, da água, dos rios, das folhas, dos pássaros ou dos tigres, irmãos de leite da natureza que se distraiu um momento e que inventou olhos para se ver viver. […] Eu disse uma vez que nenhum esplendor humano pode igualar o do lírio dos campos. Mas é porque os olhava no espelho de Deus, nos meus próprios olhos. Quem, se não formos nós, pode subtrair a beleza do mundo ao seu apodrecer futuro? Como eu existia antes de Abraão e Jacob, também existia antes dos pássaros, do céu e dos lírios dos campos. Mas nunca teria podido ser quem sou se não houvesse pássaros e lírios dos campos. Eles esperavam-me, eu esperava-os. Juntos tornámo-nos, eu, um homem que associa a sua felicidade à beleza do mundo, dos pássaros e dos lírios dos campos, eles, figuras à espera de um só olhar que os acorde do sono da terra ao qual estão destinados. Ao qual tudo está destinado se eu não morrer por eles para os salvar do nada onde já estavam antes que Deus desenhasse com eles o firmamento do meu coração». 
 
In Público, 20/3/2000, cit. por Maria Manuela Cruzeiro/Maria Manuela Baptista
Tempos de Eduardo Lourenço - Fotobiografia, 2003 Porto, Campo das Letras, pág. 131 
 

Eduardo Lourenço, ensaísta português, nasceu a 23 de maio de 1923, em S. Pedro de Rio Seco, Almeida, e morreu a 1 de dezembro de 2020. Formado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, onde foi professor entre 1947 e 1953, lecionou depois em várias universidades, como a da Baía, no Brasil, e nas Universidades de Hamburgo, Heidelberg, Montpellier, Grenoble e Nice. Fixando residência em Vence, lecionou, até à sua jubilação, na Universidade de Nice.

Tendo marcado durante cinquenta anos, com especial ressonância no pós-25 de abril, o pensamento português, a voz de Eduardo Lourenço exerce um profundo e consensual fascínio sobre a intelectualidade portuguesa, surpreendendo pela "capacidade de ser portador de um olhar sempre diferente e inquietante sobre os problemas de que se ocupa", espantando pela "pluralidade de interesses, a imensidão de uma cultura que não se entrincheira em redutos de erudição, o jogo ilimitado das referências" (cf. COELHO, Eduardo Prado - "Eduardo Lourenço: Um Rio Luminoso", in A Mecânica dos Fluídos, Lisboa, INCM, 1984, p. 280).

Próximo da geração neorrealista, à qual nunca deixaria de dedicar um sério trabalho de reflexão, voltado quer para a especificidade da sua poética (Sentido e Forma da Poesia Neorrealista, Lisboa, 1968), quer para o estudo dos sobreviventes dessa geração (cf. por exemplo, os vários estudos sobre Vergílio Ferreira, coligidos em O Canto do Signo, Lisboa, Presença, 1994), quer ainda pelas análises de conjunto sobre o fenómeno da afirmação na literatura contemporânea dessa geração que batizou como "geração da utopia" (cf. ibi., ensaios como "A Ficção dos Anos 40"), pelo seu espírito de isenção e de abertura, tornou-se, após a publicação, em 1949, de Heterodoxia I, uma figura incómoda face às duas forças ideológicas em que se dividia o país: o catolicismo conivente com o regime salazarista e o marxismo, ao defender uma noção de heterodoxia que equivale à aceitação da pluralidade de "ortodoxias".

No início dos anos cinquenta, o nome de Eduardo Lourenço surge associado ao projeto Árvore, em cujo número inaugural publicou o ensaio "Esfinge ou a Poesia", onde apresenta uma conceção de poesia como Esfinge diante da qual o poeta procura "danadamente uma autêntica face de homem, uma existência em busca de uma essência", definindo-a como "a resolução que damos à história, aos encontros, às promessas de cada vez que consentimos descer das palavras às dificuldades dos atos. Ou subimos dos atos à corola mágica das palavras com que os arrancamos à certa desolação do tempo e da morte." ("Esfinge ou a Poesia").

Esta função gnósica atribuída à palavra poética determinará a defesa, nos vários estudos críticos e literários publicados ao logo da década de 60, alguns deles na revista O Tempo e o Modo, de que a crítica só faz sentido "esposando simultaneamente a vida e a morte que na sucessão das obras se configura e lendo uma na luz da outra, sem pretender jamais que está em seu poder outra coisa que dizer com atraso, mas o mais claramente que lhe é possível, o discurso inexpresso da Obra". (O Tempo e o Modo, Maio-Junho de 1966, ensaio coligido in O Canto do Signo, Lisboa, Presença, 1994, p. 46).

Este respeito pelo carácter trágico da crítica, conjugado com uma invulgar erudição, capaz de colocar em diálogo tradições literárias e culturais diversas, com a capacidade de, sem trair a textualidade, perseguir a errância (ibi., p. 68) do texto, da sua produção até ao imaginário, individual e coletivo, que simultaneamente reflete e constrói, elevou-o, desde a publicação, em 1957, do ensaio O Desespero Humanista de Miguel Torga até ao recente O Canto do Signo. Existência e Literatura, como orador e como escritor, a um dos expoentes máximos do ensaísmo literário e cultural contemporâneo, estatuto unanimemente reconhecido, por exemplo, na atribuição de vários prémios nacionais e internacionais (Prémio PEN Clube, 1983; Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon, 1988; Prémio Camões e Prémio D. Dinis, 1996; Prémio Virgílio Ferreira, pela Universidade de Évora, 2000; condecoração francesa da Legião de Honra, 2002; Prémio Extremadura a la Creación, 2006; Prémio Extremadura para a Criação, 2006).

Em complementaridade com o trabalho de crítica literária, o ensaísmo de Eduardo Lourenço revela uma particular preocupação na análise das autognoses coletivas que a cultura literária e artística espelham, reflexão que, desde O Labirinto da Saudade até Poesia e Metafísica, examinando "as imagens que de nós mesmos temos forjado", culminaria com uma interrogação sobre o destino português, não só no modo como ele é percecionado nas obras e no nome de alguns dos seus vultos mais representativos (Camões, Antero e, sobretudo, Pessoa), mas, de forma mais abrangente, em volumes como Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade (1999), sobre o modo como esse destino é miticamente sobredeterminado. Considerando, do exterior (português fora de Portugal), o destino português, Eduardo Lourenço consegue, neste último volume, fazer concorrer todo o seu saber (histórico, filosófico, literário), para formular, no fim de século, sem qualquer intuito doutrinário, uma imagem imparcial do ser português, na sua singularidade e universalidade, espelho, onde, observando-se, pode conhecer-se e aceitar-se "tal como foi e é, apenas um povo entre os povos. Que deu a volta ao mundo para tomar a medida da sua maravilhosa imperfeição." (Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa, Gradiva, 1999, p. 83). (Daqui)
 
 
MORTE

"Estamos a falar de uns sujeitos que vão morrer. E que sabem que vão morrer, como os gladiadores do circo romano. O melhor é encarar isso da maneira mais filosófica possível. Quer dizer, sabendo que o que quer que pensemos sobre aquilo que nos espera, nada podemos. Está fora do nosso alcance. Não somos os sujeitos de nós próprios. Nascemos embarcados, como dizia Pascal. Depois, somos desembarcados."

Eduardo Lourenço, Público, 2014 (daqui)
(São Pedro de Rio Seco, Almeida, 23 de maio de 1923 - Lisboa, 1 de dezembro de 2020)
 
 

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