Cimabue (Cenni di Pepo, 1240 -1302), Virgin Enthroned with Angels,
c. 1280, Louvre, Paris
Natal
Fiel das horas mortas
Desta noite comprida,
Pergunto a cada sombra recolhida
Que sol figura o lume
Que da lareira negra me sorri:
O do calor cristão?
O do calor pagão?
Ou a fogueira é só a combustão
Da lenha que acendi?
Presépios, solstícios, divindades...
A versátil natureza
Do homem, senhor de tudo!
Cria mitos,
Destrói mitos,
Nega os milagres que fez
E depois, desesperado,
Procura o mundo sagrado
Nas cinzas da lucidez.
São Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1972
Desta noite comprida,
Pergunto a cada sombra recolhida
Que sol figura o lume
Que da lareira negra me sorri:
O do calor cristão?
O do calor pagão?
Ou a fogueira é só a combustão
Da lenha que acendi?
Presépios, solstícios, divindades...
A versátil natureza
Do homem, senhor de tudo!
Cria mitos,
Destrói mitos,
Nega os milagres que fez
E depois, desesperado,
Procura o mundo sagrado
Nas cinzas da lucidez.
São Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1972
Miguel Torga, in 'Diários'
Cimabue, Virgin and Child with Two Angels, c. 1280.
Último Natal
Menino Jesus, que nasces
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Como ele me desobrigo e desengano:
És divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.
Gaia, 24 de Dezembro de 1990
Menino Jesus, que nasces
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Como ele me desobrigo e desengano:
És divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.
Gaia, 24 de Dezembro de 1990
Miguel Torga, in 'Diários'
O seu 'Diário' (1941-1994), em 16 volumes, mistura poesia, contos, memórias, crítica social e reflexões. No último volume, Miguel Torga (1907-1995) diz:
"Chego
ao fim perplexo, diante do meu próprio enigma. Despeço-me do mundo a
contemplar atónito o triste espetáculo de um pobre Adão paradoxal,
expulso da inocência sem culpa, sem explicação."
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