quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

"Ode ao Vinho" - Poema de Pablo Neruda



Lubin Baugin
(c. 1610–1663), Le Dessert de gaufrettes (vers 1630-1635)
Musée du Louvre, Paris



Ode ao Vinho 

 
Vinho da cor do dia,
vinho da cor da noite,
vinho com pés de púrpura
ou sangue de topázio,
vinho,
rutilante filho
da terra,
vinho, liso
como uma espada de ouro,
suave
como um antigo veludo,
vinho encaracolado
e suspenso,
amoroso,
marinho,
jamais coubeste numa taça,
numa canção, num homem,
num coro, tens o sentido gregário,
ou pelo menos, comum.
Às vezes
alimentas-te de recordações
mortais,
na tua onda
vamos de tumba em tumba,
canteiro de gelado sepulcro,
e choramos
transitórias lágrimas,
mas
o teu formoso
traje de Primavera
é diferente,
o coração sobe aos ramos,
o vento move o dia,
nada fica
dentro da tua imóvel alma.
O vinho
move a Primavera,
cresce como uma planta de alegria,
os muros desmoronam-se,
os penhascos,
fecham-se os abismos,
nasce o canto.
Ó tu, jarro de vinho no deserto
com a doce amada minha,
disse o velho poeta.
Que o cântaro de vinho
ao peso do amor afogue o seu beijo.

Meu amor, subitamente
a tua nádega
é curva plena
da taça,
o teu peito o cacho,
a luz do álcool a tua cabeleira,
as uvas os teus mamilos,
o teu umbigo o selo puro
estampado no teu ventre de ânfora,
e o teu amor a cascata
de vinho perene,
a claridade que inunda os meus sentidos,
o esplendor terrestre da vida.

Mas tu, vinho da vida, não és
somente amor,
escaldante beijo
ou coração queimado,
és também
amizade dos seres, transparência,
coro de disciplina,
abundância de flores.
Amo, quando se fala
à mesa, da luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou taça de topázio
ou colher de púrpura
que o Outono trabalhou
até encher de vinho as vasilhas
e que o músculo homem aprenda,
no cerimonial do seu negócio,
a recordar a terra e os seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.


Pablo Neruda
(Tradução de Luis Pignatelli)
in Odes Elementares, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1977
 

Lubin Baugin, Still-life with Chessboard (The Five Senses), 1630

Lubin Baugin (Pithiviers, c. 1612 - Paris, 1663) foi um pintor barroco francês do século XVII.
Devido ao seu estilo semelhante ao de Guido Reni, os seus contemporâneos deram-lhe o cognome de "o pequeno Guido". A ele se deve, em parte, o surgimento da natureza-morta em França, na primeira metade do século XVII.

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