quarta-feira, 1 de novembro de 2017

"Esta dor que me faz bem" - Poema de Fernanda de Castro


William J. Whittemore (American, 1860-1955), Portrait of a Woman in Pearls.



Esta dor que me faz bem


As coisas falam comigo 
uma linguagem secreta 
que é minha, de mais ninguém. 
Quem sente este cheiro antigo, 
o cheiro da mala preta, 
que era tua, minha mãe? 

Este cheiro de além-vida 
e de indizível tristeza, 
do tempo morto, esquecido... 
Tão desbotada e puída 
aquela fita escocesa 
que enfeitava o teu vestido. 

Fala comigo e conversa, 
na linguagem que eu entendo, 
a tua velha gaveta, 
a vida nela dispersa 
chega à cama onde me estendo 
num perfume de violeta. 

Vejo as tuas jóias falsas 
que usavas todos os dias, 
do princípio ao fim do ano, 
e ainda oiço as tuas valsas, 
minha mãe, e as melodias 
que cantavas ao piano. 

Vejo brancos, decotados, 
os teus sapatos de baile, 
um broche em forma de lira, 
saia aos folhos engomados 
e sobre o vestido um xaile, 
um xaile de Caxemira. 

Quantas voltas deu na vida 
este álbum de retratos, 
de veludo cor de tília? 
Gente outrora conhecida, 
quem lhe deu tantos maus tratos? 
Serão todos da família? 

Ai, vou fechar na gaveta 
a lembrança dolorosa 
dos teus laços de cetim, 
dos teus ramos de violeta, 
do leque de seda rosa 
com varetas de marfim. 

As coisas falam comigo 
numa linguagem secreta, 
que é minha, de mais ninguém. 
Quero esquecer, não consigo. 
Vou guardar na mala preta 
esta dor que me faz bem. 


 in "E Eu, Saudosa, Saudosa"

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