domingo, 17 de janeiro de 2016

"Coisas, Pequenas Coisas" - Poema de Fernando Namora


Victor Gilbert (Artiste peintre français, -, Le carreau des halles, 1880
 
 

Coisas, Pequenas Coisas


Fazer das coisas fracas um poema. 

Uma árvore está quieta, 
murcha, desprezada. 
Mas se o poeta a levanta pelos cabelos 
e lhe sopra os dedos, 
ela volta a empertigar-se, renovada. 
E tu, que não sabias o segredo, 
perdes a vaidade. 
Fora de ti há o mundo 
e nele há tudo 
que em ti não cabe. 

Homem, até o barro tem poesia! 
Olha as coisas com humildade. 


Fernando Namora, in "Mar de Sargaços (1940)"

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

"Escrito de Memória" - Poema de Pedro Tamen


Will Barnet (1911-2012), Woman and the sea, 1972


Escrito de Memória


Formado em direito e solidão,
às escuras te busco enquanto a chuva brilha.
É verdade que olhas, é verdade que dizes.
Que todos temos medo e água pura.

A que deuses te devo, se te devo,
que espanto é este, se há razão para ele?
Como te busco, então, se estás aqui,
ou, se não estás, porque te quero tida?
Quais os olhos e qual a noite?
Aquela
em que estiveste por me dizeres o nome.


Pedro Tamen, in “Tábua das Matérias” 


Will BarnetReclining Woman, 1981 


"Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem." 

Miguel Esteves Cardoso, Último Volume
 
 

domingo, 10 de janeiro de 2016

"Ode a Lídia" - Poema de Jayro José Xavier


Pintura de Andre Kohn



Ode a Lídia


Esta súbita chuva que desaba 
pela pele morena 
de teu rosto 
por teu riso por teus ombros 
pelos teus longos 
cabelos 
cai na terra 
— ouve bem — 

com o peso, o 
doce peso de milénios 

Pois verdade é que outra 
é a água 
mas a mesma 
(escorrendo pela 
gloriosa nudez 
de teu corpo) 
mesmo o cheiro húmido 
da terra, mesmo 
nas árvores 
o áspero, esperado canto 
de verão 

Tudo, nada mudou 

Bebe pois desta água 
bebe 
bebe com todo o teu corpo 
até que toda te farte 
bebe 
até que te embriague 
a milenar 
experiência 
do planeta 

Bebe e 
(sábia) 
colhe nas mãos o momento 
que esvoaça 
— este breve momento em que 
como duas crianças 
somos 
e amamos 


Jayro José Xavier, in 'Enquanto Vivemos' 


"Solilóquio" - Poema de Francisco de Pina e Melo


Anton Melbye, Seascape with sailing ship in rough sea, 1844


Solilóquio


Já que o sol pouco a pouco se desmaia
E meu mal cada vez mais se desvela,
Enquanto a pena, a ânsia, a mágoa vela,
Quero aqui estar sozinho nesta praia.

Que bravo o mar se vê! Como se ensaia
Na fúria e contra os ares se rebela!
Como se enrola! Como se encapela!
Parece quer sair da sua raia.

Mas também que inflexível, que constante
Aquela penha está à força dura
De tanto assalto e horror perseverante!

Ó empolado mar, penha segura,
Sois a imagem mais própria e semelhante
De meu fado e da minha desventura. 


Francisco de Pina e Melo, in 'Rimas' 


Anton Melbye, Ships at sea, 1867


"O navio é uma ilha habitada por homens e os seus fantasmas."

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

"Cuidar dos pais" - Texto de Valter Hugo Mãe


Pintura de Gina Marrinhas



Cuidar dos pais


A minha mãe é a minha filha. Preciso de lhe dizer que chega de bolo de chocolate, chega de café ou de andar à pressa. Vai engordar, vai ficar elétrica, vai começar a doer-lhe a perna esquerda.
Cuido dos seus mimos. Gosto de lhe oferecer uma carteira nova e presto muita atenção aos lenços bonitos que ela deita ao pescoço e lhe dão um ar floral, vivo, uma espécie de elemento líquido que lhe refresca a idade. Escolho apenas cores claras, vivas. Zango-me com as moças das lojas que discursam acerca do adequado para a idade. Recuso essas convenções que enlutam os mais velhos. A minha mãe, que é a minha filha, fica bem de branco, vermelho, gosto de a ver de amarelo torrado, um azul de céu ou verde. Algumas lojas conhecem-me. Mostram-me as novidades. Encontro pessoas que sentem uma alegria bonita em me ajudar. Aniversários ou Natal, a Primavera ou só um fim-de-semana fora, servem para que me lembre de trazer um presente. Pais e filhos são perfeitos para presentes. Eu daria todos os melhores presentes à minha mãe.
Rabujo igual aos que amam. Quando amamos, temos urgência em proteger, por isso somos mais do que sinaleiros, apontando, assobiando, mais do que árbitros, fiscalizando para que tudo seja certo, seguro. E rabujamos porque as pessoas amadas erram, têm caprichos, gostam de si com desconfiança, como creio que é normal gostarmos todos de nós mesmos. Aos pais e aos filhos tendemos a amar incondicionalmente mas com medo. Um amigo dizia que entendeu o pânico depois de nascer o seu primeiro filho. Temia pelo azedo do leite, pelas correntes de ar, pelo carreiro das formigas, temia muito que houvesse um órgão interno, discreto, que disfuncionasse e fizesse o seu filho apagar. Quem ama pensa em todos os perigos e desconta o tempo com martelo pesado. Os que amam sem esta fatura não amam ainda. Passeiam nos afetos. É outra coisa.
Ficar para tio parece obrigar-nos a uma inversão destes papéis a dada altura. Quase ouço as minhas irmãs dizerem: não casaste, agora tomas conta da mãe e mais destas coisas. Se a luz está paga, a água, refilar porque está tudo caro, há uma porta que fecha mal, estiveram uns homens esquisitos à porta, a senhora da mercearia não deu o troco certo, o cão ladra mais do que devia, era preciso irmos à aldeia ver assuntos e as pessoas. Quem não casa deixa de ter irmãos. Só tem patrões. Viramos uma central de atendimento ao público. Porque nos ligam para saber se está tudo bem, que é o mesmo que perguntar acerca da nossa competência e responsabilizar-nos mais ainda. Como se o amor tivesse agentes. Cupidos que, ao invés de flechas, usam telefones. E, depois, espantam-se: ah, eu pensei que isso já tinha passado, pensei que estava arranjado, naquele dia achei que a doutora já anunciara a cura, eu até fiz uma sopa, no mês passado até fomos de carro ao Porto, jantámos em modo fino e tudo.
Quem ama pensa em todos os perigos e desconta o tempo com martelo pesado. Os que amam sem esta factura não amam ainda.
Quando passamos a ser pais das nossas mães, tornamo-nos exigentes e cansamo-nos por tudo. Ao contrário de quem é pai de filhas, nós corremos absolutamente contra o tempo, o corpo, os preconceitos, as cores adequadas para a idade. Somos centrais telefónicas aflitas.
Queremos sempre que chegue a Primavera, o Verão, que haja sol e aqueçam os dias, para descermos à marginal a ver as pessoas que também se arrastam por cães pequenos. Só gostamos de quem tem cães pequenos. Odiamos bicharocos grotescos tratados como seres delicados. O nosso Crisóstomo, que é lingrinhas, corre sempre perigo com cães musculados que as pessoas insistem em garantir que não fazem mal a uma mosca. Deitam-nos as patas ao peito e atiram-nos ao chão, as filhas que são mães podem cair e partir os ossos da bacia. Porque temos bacias dentro do corpo. Somos todos estranhos. Passeamos estranhos com os cães na marginal e o que nos aproveita mesmo é o sol. A minha mãe adora sol. Melhora de tudo. Com os seus lenços como coisas líquidas e cristalinas ao pescoço, ela fica lindíssima. E isso compensa. Recompensa.
Comemos o sol. Somos, sem grande segredo, seres que comem o sol. Por isso, entre as angústias, sorrimos.

Valter Hugo Mãe, Crónica

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

"Calmaria" - Poema de Miguel Torga


Will Barnet, Idle hands,1935



Calmaria


Nada! 
Horas e horas neste ponto morto 
Onde caiu agora a minha vida... 
Nem um desejo, ao menos! 
Só instintos pequenos: 
Apetite de cama e de comida! 

Nem sequer ler um livro 
Ou conversar comigo, discutir... 
Nada! 
Neutro, morno, a dormir 
Com a carne acordada. 


Miguel Torgain 'Diário (1939)'



quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

"Quem não Trabuca, não Manduca" - Poema de António Serrão de Castro


Ferdinand Hodler (1853-1918),  Der Schuhmacher, 1878



Quem não Trabuca, não Manduca


Olhai que quem quer comer 
trabalha, lida, e trabuca; 
que quem trabuca manduca 
mil vezes ouvi dizer; 
mas ociosos viver 
e vir comer pão alheio 
é um caso muito feio; 
coma quem sua e trabalha, 
beba quem na eira malha, 
ao sol e calma, o centeio. 



segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

"Quotidiano (Reflexão)" - Poema de Nuno Júdice


Aram Mekjian, Still Life with Window
 
 

Quotidiano (Reflexão)


Por exemplo, as coisas que faltam neste lugar: 
uma enxada para que as mãos não toquem na terra, 
um ninho de pardais no canto da relha, 
para que um ruído de asas se possa abrigar, 
um pedaço de verde no monte que ainda vejo, 
por detrás dos prédios que invadem tudo. 

Mas se estas coisas estivessem aqui, 
também faria falta um copo de água para ver, 
através do vidro, um horizonte desfocado; 
e ainda os restos de madeira com que, 
no inverno, é costume atiçar o fogo 
e a imaginação que ele consome. 

Como se tudo estivesse no lugar, 
pronto para ser usado na data prevista, 
sento-me à janela, e fixo a única coisa 
que não se move: 
o gato, hipnotizado por um olhar 
que só ele pressente. 


in "Meditação sobre Ruínas"


"Segunda-feira é mais difícil porque é sempre a tentativa do começo de vida nova. Façamos cada domingo de noite um reveillon modesto, pois se meia noite de domingo não é começo de Ano Novo é começo de semana nova, o que significa fazer planos e fabricar sonhos." - Clarice Lispector


domingo, 3 de janeiro de 2016

"Fala de Mãe e Filho" - Poema de Mia Couto


Tender Moments, Giclee by Garmash



Fala de Mãe e Filho

 
«Meu filho:
onde vais
que tens do rio o caminhar?»

Não espreites a estrada, mãe,
que eu nasci
onde o tempo se despenhou.

«Meu filho:
onde te posso lembrar
se apenas te dei nome para te embalar?»

Mãe, minha mãe:
não te pese saudade
que eu voltarei sempre
como quem chega do mar.

«Meu filho:
onde te posso nascer
se meu ventre seco
nunca ninguém gerou?»

Mãe, nascerás sempre
na pedra em que te escuto:
a tua ausência, meu luto,
teu corpo para sempre insepulto. 


Mia Couto, in 'Tradutor de Chuvas'



Michael and Inessa Garmash 



"Quem ama a vida é amado por ela." 
 

sábado, 2 de janeiro de 2016

"O Mar" - Poema de Ângelo de Lima


Anton MelbyeSea at night, 1865


 O Mar


Semelhante a algum monstro, quando dorme
O mar... Era sombrio, vasto, enorme...
Arfando demorado,
Imenso sob os Céus!

Tal imenso e sombrio o mar seria
E assim, em vagas tristes arfaria
No tempo em que o espírito de Deus
Sobre ele era levado!


Ângelo de Lima
Do livro: "Líricas Portuguesas", seleção, prefácio e notas de Cabral do Nascimento, Portugália Editora, 1945, Portugal


sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

"Gargalhada" - Poema de Cecília Meireles

 
Giacomo Balla, Pessimism and Optimism, 1923
 

Gargalhada


Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármore baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
- e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas. Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trémulas...

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje esta música heróica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim. 


Cecília Meireles
In Viagem, 1939