quarta-feira, 12 de agosto de 2015

"Delicadeza" - Poema de Eduarda Chiote


Armando Alves, Paisagem, óleo s/ tela, 100x100, 2004



Delicadeza


Essa delicadeza, cada vez mais difícil, pela qual se perde 
a vida, como a entendo, 
pratico. 
Essa subtileza de pesadelo branco, como a sinto 
extrema sempre, 
às vezes. 
Ingénua - um animal discreto; sem dono 
e sem direitos. 
Por ela arrisco um aceitar alguém 
que nunca foi 
criança. 
Um ler que me não prende mais a atenção, um ser gentil 
para com uma pessoa ingrata 
- um cultivar uma paixão isenta 
"dos cardos do contacto". 
Um não precisar esclarecer seja o que for, 
pois tudo na vida é afinal 
bem mais sério 
do que parece. 
É por essa gentileza 
que se um grito me chega ao ouvido 
prefiro escutar nele o cheiro de um corpo que se perdeu 
do meu 
e ainda assim dizer 
Deus seja louvado, 
oxalá ele consiga agora ficar 
silencioso qual rasto de leitura sem palavra. 
Sim, é por essa gentileza, mulher poeta ou homem sensível 
- não me distingo nem de um nem do outro -, 
que muito embora as minhas esperanças 
se tenham desfeito há muito 
me permito, e não obstante um total desencanto, 
acreditar, ainda, numa simpatia sem despeito; 
pois e em virtude dessa mesma gentileza, 
não quero saber mais do que me dizem 
ou confiar menos do que o desapontamento 
me permita. 
Estou consciente 
de que as criaturas ou coisas imprestáveis podem ser justas 
e belas, 
e de que chegaremos, meu delírio, 
à mansidão, se o coração enciumado 
se não puser de fora 
- se o coração se tornar generoso e vigilante 
como a espera das folhas 
de que a copa carece 
em pleno inverno. 

Por isso, se te disser que sinto frio, 
que a água da chaleira 
evaporou, 
mas que de vez em quando sempre, 
às vezes, 
o embaraço do vapor em que ela se dissolve 
deixa uma gota mais aflita 
no desamparo em que me acolhes, 
lembra-te da comoção 
que me embarga a voz, quando, após uma longa 
ausência, apareces, para e de cada vez 
que tal acontece, te ires 
definitivamente 
embora. 


Eduarda Chiote, in 'Não me Morras'


Armando Alves (daqui)

Armando José Ruivo Alves GOM (Estremoz, 1935) é um artista plástico português.
Estudou na Escola de Artes Decorativas António Arroio, em Lisboa, e na Escola Superior de Belas-Artes do Porto; aqui conclui o curso de Pintura com vinte valores, o que originou, em 1968, a formação do grupo Os Quatro Vintes, com Ângelo de Sousa, José Rodrigues e Jorge Pinheiro, com o qual se apresenta em exposições no final da década de 1960.
Entre 1963 e 1973 foi professor assistente na ESBAP, onde introduziu o estudo das Artes Gráficas, área a que viria a dedicar-se prolongadamente, tendo estado profissionalmente ligado a três editoras: Editorial Inova (1968); Editorial Limiar (1975); Editorial Oiro do Dia (1980). Dirigiu graficamente obras literárias, produziu cartazes, comemorativos e publicitários, catálogos de exposições e programas de concertos e de atividades desportivas. Em 1983 recebeu o prémio na Mostra de Artes Gráficas Grafiporto 83, no Museu Nacional de Soares dos Reis.


Armando Alves, Objecto, madeira pintada

Tendo começado por uma figuração que pode aproximar-se do universo neo-realista, optou seguidamente por um informalismo matérico desenvolvido na década de 60. Nos anos 70 dedica-se à construção de objectos pintados, de grande depuração formal. A partir dos anos 80 retoma os valores da paisagem que reformula à luz de um abstraccionismo lírico.
Foi agraciado com o Grau de Grande Oficial da Ordem do Mérito; recebeu o Prémio de Artes Casino da Póvoa 2009. (Daqui)

Armando Alves, Sem Título, 2012

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