sexta-feira, 14 de agosto de 2015

"Aos homens constipados" - Poema de António Lobo Antunes


Lotte Laserstein (1898-1993), Evening Over Potsdam (Abend Uber Potsdam), 1930



Aos homens constipados

 
Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão, 
Zaragatoas, vinho com mel, 
Três aspirinas, creme na pele 
Grito de medo, chamo a mulher. 
Ai Lurdes que vou morrer. 
Mede-me a febre, olha-me a goela, 
Cala os miúdos, fecha a janela, 
Não quero canja, nem a salada, 
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada. 
Se tu sonhasses como me sinto, 
Já vejo a morte nunca te minto, 
Já vejo o inferno, chamas, diabos, 
Anjos estranhos, cornos e rabos, 
Vejo demónios nas suas danças 
Tigres sem listras, bodes sem tranças 
Choros de coruja, risos de grilo 
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo 
Não é o pingo de uma torneira, 
Põe-me a Santinha à cabeceira, 
Compõe-me a colcha, 
Fala ao prior, 
Pousa o Jesus no cobertor. 
Chama o Doutor, passa a chamada, 
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada. 
Faz-me tisana e pão de ló, 
Não te levantes que fico só, 
Aqui sozinho a apodrecer, 
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer. 


Sátira aos HOMENS quando estão com gripe


Autorretrato de Lotte Laserstein, 1928


"A única e autêntica liberdade do ser humano é a do espírito, de um espírito não contaminado por crenças irracionais e por superstições talvez poéticas em algum caso, mas que deformam a percepção da realidade e deveriam ofender a razão mais elementar." - José Saramago

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