quinta-feira, 29 de junho de 2017

"Fala do homem nascido" - Poema de António Gedeão





Fala do homem nascido 


Venho da terra assombrada,
do ventre de minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no ato de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.


Teatro do Mundo, 1958


terça-feira, 27 de junho de 2017

"Autobiografia" - Poema de António Gedeão


Sophie Gengembre Anderson (1823-1903), A portrait of a fairy, 1869



Autobiografia


Enquanto comia
num gesto tranquilo,
comia e ouvia
falar-se daquilo.

Dormia e ouvia
solicitamente,
como se presente
presente estaria.

E enquanto comia,
comia e ouvia,
a frágil menina
que no fundo habita,
que chora e que grita
saía de mim.

Saía de mim
correndo e chorando
num gesto revolto,
cabelinho solto,
roupa esvoaçando.

Ia como louca,
chorava e corria,
enquanto eu metia
comida na boca.

Fugia-lhe a estrada
debaixo dos pés,
a estrada pisada
que o luzeiro doira,
serpentina loira
que vai ter ao mar.

Corria a menina
de braços erguidos,
seus brancos vestidos
pareciam luar.

Por dentro ia a noite,
por fora ia o dia.
A vida estuava,
a maré subia.

Caiu a menina
na praia amarela,
logo um modelo de algas
se apoderaram dela.

Se apoderou dela
carinhosamente,
que as algas são gestos
mas não são de gente.

Caiu e ficou-se
deitada de bruços,
desfeita em soluços
sem forma nem lei.

Ó minha aguazinha
faz com que eu não sinta,
faz com que eu não minta,
faz com que eu não odeie!

Aguazinha querida,
compromisso antigo,
dissolve me a vida,
leva-me contigo.

Leva-me contigo
no berço das algas;
que o sal com que salgas
seja o meu vestido.

Ficou-se a menina
desfeita em soluços,
seu corpo, de bruços,
com o mar a cobri-lo,
enquanto eu, sentado,
sentado comia,
comia e ouvia,
falar-se daquilo.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

"Nome para uma casa" - Poema de Fernando Namora


Olof Arborelius (Swedish, 1842–1915), Summer pasture


Nome para uma casa


Ossos enxutos de repente as mãos 
sobre o repousado peito entrelaçadas 
como quem adormeceu 
à sombra de uma quieta 
e morosa árvore de copa alargada. 
Dos olhos direi que abertos 
para dentro me parecem 
não os verei mais de agitação ansiosa 
e húmido afago brandos no seu ferver 
de amor avarento agora tão acalmados também 
tão de longe observando incrédulos e astuciosos 
a escura gente de roda com ladainhas de 
abjuradas mágoas. 

Julgo ouvir a chuva no tépido pinhal 
mas pode ser engano 
ainda há pouco o vento limpara o céu anoitecido 
por entre o sussurro do lamuriado tédio 
alguém se aproxima em bicos dos pés 
por entre hortências ou dálias 
de ambas minha mãe gostava 

as ratazanas heréticas perseguem-se no sótão 
como no tempo de não sei quando 
os estalidos de madeira seca 
no tecto antigo que os bichos mastigam aplicadamente 
enquanto as velas agónicas se revezam 
uma a uma dançando no sereno rosto que dorme 
sem precisar de dormir tão perto o rosto e tão ausente 
tão da vida agreste aliviado 
as pessoas vão repartindo ais estórias lembranças 
vão repartindo haveres e contos largos 
enquanto no barco do tempo o morto se afasta 
solene e majestático mesmo que o medo 
o persiga até ao limite das águas. 

Mais tarde o rito fecha-se nas velas consumidas 
já o morto irá por terras afastadas 
a sacola de viandante aos ombros 
recomeçando solitário a viagem inacabada. 

À casa que teve darei um nome 
das hortências ou das dálias não sei como chamar-lhe 
de ambas minha mãe gostava.


Fernando Namora, in 'Nome Para Uma Casa'


Olof Arborelius (Swedish, 1842–1915), Krackelyr


"Todos imos embarcados na mesma nau, que é a vida, e todos navegamos com o mesmo vento, que é o tempo." 

Sermões



Olof Arborelius (Swedish, 1842–1915)


"Não há poder maior no mundo que o do tempo: tudo sujeita, tudo muda, tudo acaba."

Sermões

sábado, 24 de junho de 2017

"A flor fugaz" - Poema de José Eduardo Degrazia


Ivan Kap, Flowers


A flor fugaz


Porque se despe na tarde
e convida ao sortilégio
de sua carnação madura,
pétala que apura o tempo

inventando a investidura
de planta formosa e pura,
sendo lírio ou sendo rosa,
ofertada sem mais nada

do que a vida retira
o sumo, a seiva, na selva
de um desejo realizado

em sendo frágil e fugaz,
feito o amor que foi e dura
o esplendor de seu momento. 



Ivan Kap, The Shy Man


"A vida se encolhe ou se expande em proporção à própria coragem."

(Anaïs Nin)

quinta-feira, 22 de junho de 2017

"Minha aldeia" - Poema de António Gedeão


Hans Andersen Brendekilde (Danish, 1857–1942), Reading the Newspaper, 1912 



Minha aldeia


Minha aldeia é todo o mundo.
Todo o mundo me pertence.
Aqui me encontro e confundo
com gente de todo o mundo
que a todo o mundo pertence.

Bate o sol na minha aldeia
com várias inclinações.
Ângulo novo, nova ideia;
outros graus, outras razões.
Que os homens da minha aldeia
são centenas de milhões.

Os homens da minha aldeia
divergem por natureza.
O mesmo sonho os separa,
a mesma fria certeza
os afasta e desampara,
rumorejante seara
onde se odeia em beleza.

Os homens da minha aldeia
formigam raivosamente
com os pés colados ao chão.
Nessa prisão permanente
cada qual é seu irmão.
Valências de fora e dentro
ligam tudo ao mesmo centro
numa inquebrável cadeia.
Longas raízes que emergem,
todos os homens convergem
no centro da minha aldeia.


Teatro do Mundo, 1958


segunda-feira, 19 de junho de 2017

"A Minha Dor" - Poema de Teixeira de Pascoaes



A Minha Dor


Tua morte feriu-me no mais fundo, 
Remoto da minh'alma que eu julgava 
Já fora desta vida e deste mundo! 

E vejo agora quanto me enganava, 
Imaginando possuir em mim 
Alma que fosse livre e não escrava! 

Meu espirito é treva e dor sem fim. 
Todo eu sou dor e morte. Sou franqueza. 
Sou o enviado da Sombra. Ao mundo vim 

Pregar a noite, a lágrima, a incerteza, 
A luz que, para sempre, anoiteceu... 
Esta envolvente, essencial tristeza, 

Tristeza original donde nasceu 
O sol caindo em lágrimas de luz, 
Choro de oiro inundando terra e céu! 

Sou o enviado da Sombra. Em negra cruz, 
Meu ilusório ser crucificado 
Lembra um morto fantasma de Jesus... 

E aos pés da minha cruz, no chão magoado, 
A tua Ausência é a Virgem Dolorosa, 
Com tenebroso olhar no meu pregado. 

Ah! quanto a minha vida religiosa, 
Depois que te perdeste no sol-posto, 
Se fez incerta, frágil e enganosa! 

Em meu ser desenhou-se um novo rosto. 
Sou outro agora; e vejo com pavor 
Minha máscara interna de desgosto. 

Vejo sombras à luz da minha dor... 
Sombras talvez de eternas Criaturas 
Que vivem na alegria do Senhor... 

E quem sabe se os Mortos, nas Alturas, 
Vivem na paz de Deus, em sítios ermos, 
Entre flores, sorrisos e venturas?... 

E quem sabe se as dores que sofremos 
E nosso corpo e alma, não são mais 
Que as suas vagas sombras irreais?... 

Ah, nós somos ainda o que perdemos... 


Teixeira de Pascoaes, in 'Elegias'


sábado, 17 de junho de 2017

"O Deus Dará" - Poema de Reynaldo Valinho Alvarez


Émile Eisman Semenowsky, Genre Scene. 1893



O Deus Dará


ao deus-dará 
vou como vou 

tudo que sou 
foi ou será 

não sei se o tempo 
trará ou não 
de supetão 
um contratempo 

quando galopa 
age sem jeito 
torna imperfeito 
tudo que topa 

o que está morto 
morto ficou 
quem o enterrou 
lhe deu um porto 

mas na memória 
de cada tarde 
ainda que tarde 
se conte a história 

cada domingo 
tem sua tarde 
que sem alarde 
cai como um pingo 

mas há uma só 
p'ra cada um 
e não nenhum 
que a atire ao pó 

há uma apenas 
que me recorda 
em dose gorda 
coisas amenas 

que a tarde fique 
como um menino 
atento ao sino 
e a se repique 


Que a tarde guarde sempre o som de um sino 
Ecoando alegrias de menino. 


in 'Galope do Tempo'


quinta-feira, 15 de junho de 2017

"Relâmpago" - Poema de Fernando Pinto do Amaral


Franz von Lenbach, Self-Portrait with his wife and daughters, 1903



Relâmpago


Rompe-se a escuridão quando ao olhar 
para uma face o mundo se ilumina 
com uma claridade repentina 
capaz de, só por si, fazer brilhar 

a substância tão irregular 
de tudo o que se acende na retina 
e através da luz se dissemina 
por entre imagens vãs, até formar 

um fluido movimento, uma paisagem 
a que estes olhos quase não reagem 
salvo se nesse instante o rosto for 

transfigurado pela fantasia. 
E às vezes é só isso que anuncia 
aquilo a que chamamos o amor. 


Fernando Pinto do Amaral, in 'Às Cegas' 


segunda-feira, 12 de junho de 2017

"Dá-me a festa mágica" - Poema de Pablo Neruda



 
Dá-me a festa mágica


DEUS - e de onde é que tiras para acender o céu
este maravilhoso entardecer de cobre?
Por ele soube encontrar de novo a alegria,
e a má visão eu soube torná-la mais nobre.

Nas chamas coloridas de amarelo e verde
iluminou-se a lâmpada de um outro sol
que fez rachar azuis as planícies do Oeste
e verteu nas montanhas suas fontes e rios.

Deus, dá-me a festa mágica na minha vida,
dá-me os teus fogos para iluminar a terra,
deixa em meu coração tua lâmpada acendida
para que eu seja o óleo de tua luz suprema.

E eu irei pelos campos na noite estrelada
com os braços abertos e a face desnuda,
cantando árias ingénuas com as mesmas palavras
com que na noite falam os campos e a lua.


Tradução de José Eduardo Degrazia



Antonio Vivald, 'The four seasons - Winter', Julia Fischer


“Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar.”



domingo, 11 de junho de 2017

“Eros e Psique” - Poema de Fernando Pessoa


William-Adolphe Bouguereau (1825-1905), 'The Abduction of Psyche', c.1895


Eros e Psique


Conta a lena que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
Do além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino –
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
 



François Gérard (French painter, 1770-1837), 'Cupid and Psyche', 1798,
also known as 'Psyche Receiving Cupid's First Kiss'. 


"A única anormalidade é a incapacidade de amar."



Jacques-Louis David, 'Cupid and Psyche', 1817


Eros e Psique


William-Adolphe Bouguereau, 'Cupido' (Love on the look out), 1890
 
 
Eros, o deus grego do amor e do desejo, conhecido na mitologia romana como Cupido, é filho de Afrodite e de um dos prováveis deuses: Ares, ou Hermes, ou Zeus. Sendo o mais jovem dos deuses, Eros é geralmente representado como uma criança alada, com arco e flecha, pronto a disparar sobre o coração de deuses e de mortais, suscitando-lhes o desejo e o amor. As flechas eram de dois tipos: as douradas, de penas de pomba, que suscitavam o amor, e as flechas de chumbo, com penas de coruja, que causavam a indiferença. Frequentemente com os olhos vendados para simbolizar a cegueira do amor, Eros tornava-se perigoso para os demais, pois disparava setas em todas as direções, chegando mesmo a atingir a própria mãe, que o castigava retirando-lhe as asas e o arco. 
Uma das lendas mais conhecidas do deus do Amor é a aventura amorosa com Psique, nome que em grego significa alma. 


 Jacques-Louis David, 'Psyché Abandonné', 1795, huile sur toile,
 collection particulière


Psique era uma princesa de uma beleza tão exultante que fazia ciúmes à própria Afrodite. Esta deusa deu instruções ao filho, Eros, para punir a audácia da princesa, fazendo com que esta se apaixonasse pelo homem mais feio do mundo, e Eros obedeceu. O pai da jovem, verificando que Psique era a única das suas três filhas que ainda não tinha casado, resolveu consultar o oráculo. Este revelou-lhe que deveria preparar Psique como para uma cerimónia nupcial e, em seguida, abandoná-la numa montanha junto de um rochedo, onde um monstro, seu futuro marido, a iria buscar. Assim se passou e, enquanto aguardava resignada a sua triste sorte, Psique foi recolhida pelos braços de Zéfiro, que a levou para um lindo palácio. Psique estava quase a adormecer, quando um ser misterioso apareceu na escuridão do seu quarto e lhe disse que era o marido a quem ela estava destinada. Era o belo Eros que desempenhava o papel de marido, tentando desta forma executar o castigo que Afrodite pedira, mas, ao ver Psique, apaixonou-se imediatamente por ela. Antes de desaparecer, pouco antes do amanhecer, Eros obrigou Psique a jurar que nunca tentaria ver o seu rosto. 

Com o passar do tempo, Psique apaixonou-se pelo ser misterioso até que um dia, ao visitar as irmãs, invejosas da sua felicidade, foi instigada a ver o rosto do seu marido. Então, curiosa, Psique resolveu seguir o conselho das irmãs. Assim, enquanto o marido estava a dormir silenciosamente, Psique acendeu uma vela e, em vez do monstro, encontrou o belíssimo Eros. Aproximando-se para o ver melhor, deixou cair uma gota de cera no ombro do deus. Eros acordou e, furioso, reprimiu-a pela sua curiosidade e pela quebra da promessa que lhe tinha feito e retirou-se. Ao mesmo tempo, desapareceu o palácio e Psique encontrou-se, de novo, na montanha, onde, desgostosa, tentou suicidar-se, atirando-se a um rio, mas as águas levaram-na de volta às margens. A partir de então, vagueou pelo mundo à procura do seu amor, e, perseguida pela ira de Afrodite, foi sujeita a muitos perigos que conseguiu vencer devido a uma misteriosa proteção. Finalmente, Eros, impressionado pelo arrependimento de Psique e pela fidelidade do seu amor, implorou a Zeus que deixasse Psique juntar-se a ele. Zeus concedeu a imortalidade a Psique, Afrodite esqueceu os seus ciúmes e o casamento foi celebrado, no Olimpo, com grandes festejos. 


Jacques-Louis David, 'Cupid and Psyche in the nuptial bower', oil, 1792-93


Nos vasos gregos antigos, Psique é representada com corpo de pássaro ecabeça humana ou como uma borboleta. Uma obra de arte que popularizou o mito de Eros e Psique é a obra escultórica de Antonio Canova (1757-1822), na qual "Psique é reanimada pelo beijo de Eros", e que se encontra no Louvre, em Paris (França). (daqui)


Antonio Canova (1757-1822), 'Psique é reanimada pelo beijo de Eros', versão do Louvre.


"O amor nunca morre de morte natural. Ele morre porque nós não sabemos como renovar a sua fonte. Morre de cegueira e dos erros e das traições. Morre de doença e das feridas; morre de exaustão, das devastações, da falta de brilho." 

quinta-feira, 8 de junho de 2017

"Os Pássaros de Londres" - Poema de Mário Cesariny


Os Pássaros de Londres


Os pássaros de Londres 
cantam todo o inverno 
como se o frio fosse 
o maior aconchego 
nos parques arrancados 
ao trânsito automóvel 
nas ruas da neve negra 
sob um céu sempre duro 

os pássaros de Londres 
falam de esplendor 
com que se ergue o estio 
e a lua se derrama 
por praças tão sem cor 
que parecem de pano 
em jardins germinando 
sob mantos de gelo 
como se gelo fora 
o linho mais bordado 
ou em casas como aquela 
onde Rimbaud comeu 
e dormiu e estendeu 
a vida desesperada 
estreita faixa amarela 
espécie de paralela 
entre o tudo e o nada 

os pássaros de Londres 
quando termina o dia 
e o sol consegue um pouco 
abraçar a cidade 
à luz razante e forte 
que dura dois minutos 
nas árvores que surgem 
subitamente imensas 
no ouro verde e negro 
que é sua densidade 
ou nos muros sem fim 
dos bairros deserdados 
onde não sabes não 
se vida rogo amor 
algum dia erguerão 
do pavimento cínzeo 
algum claro limite 

os pássaros de Londres 
cumprem o seu dever 
de cidadãos britânicos 
que nunca nunca viram 
os céus mediterrânicos 


in "Poemas de Londres" 


Maria Helena Vieira da Silva, Ville forte, 1960


"O futuro tortura-nos e o passado encandeia-nos. É por aí que se nos escapa o presente. 



quarta-feira, 7 de junho de 2017

"Canção Póstuma" - Poema de Cecília Meireles


Albert Chevallier Tayler (1862-1925), Not Lost but Gone Before, 1886



Canção Póstuma 


Fiz uma canção para dar-te; 
porém tu já estavas morrendo. 
A Morte é um poderoso vento. 
E é um suspiro tão tímido, a Arte... 

É um suspiro tímido e breve 
como o da respiração diária. 
Choro de pomba. E a Morte é uma águia 
cujo grito ninguém descreve. 

Vim cantar-te a canção do mundo, 
mas estás de ouvidos fechados 
para os meus lábios inexatos, 
— atento a um canto mais profundo. 

E estou como alguém que chegasse 
ao centro do mar, comparando 
aquele universo de pranto 
com a lágrima da sua face. 

E agora fecho grandes portas 
sobre a canção que chegou tarde. 
E sofro sem saber de que Arte 
se ocupam as pessoas mortas. 

Por isso é tão desesperada 
a pequena, humana cantiga. 
Talvez dure mais do que a vida. 
Mas à Morte não diz mais nada. 


in 'Retrato Natural'

terça-feira, 6 de junho de 2017

"Infante" - Poema de Luís de Montalvor


Franz von Lenbach (1836-1904), Retrato de Adolf Friedrich von Schack, 1875



Infante


Dá-me o sol a minha fronte. Doloridos 
e chagados meus pés descalços vão fugindo... 
- Memórias dos meus doidos passos incontidos! 
- Ó meu rumor do mundo em pétalas abrindo! 

Ó corças que correis pela tarde desferindo 
o balido ligeiro que alonga os ouvidos... 
- Tarde de écloga e mel silvestre reluzindo... 
- Minhas vinhas de vinhos de oiro não bebidos... 

Desfolham-se ilusões e vão-se sem apegos... 
Murchou a flor dos meus desejos com que pude 
a vida transformar em ócios e sossegos... 

Que lucrei, eu, Senhor! com horas execráveis 
dum sonho que perdeu meu corpo de virtude? 
- o pródigo que fui dos erros inefáveis! 


in 'Antologia Poética'


segunda-feira, 5 de junho de 2017

"Testamento do Homem sensato" - Poema de Carlos Pena Filho




Testamento do Homem sensato


Quando eu morrer, não faças disparates 
nem fiques a pensar: «Ele era assim...» 
mas senta-te num banco de jardim, 
calmamente comendo chocolates. 

Aceita o que te deixo, o quase nada 
destas palavras que te digo aqui: 
foi mais que longa a vida que eu vivi, 
para ser em lembranças prolongada. 

Porém, se, um dia, só, na tarde em queda, 
surgir uma lembrança desgarrada, 
ave que nasce e em voo se arremeda, 

deixa-a pousar em teu silêncio, leve 
como se apenas fosse imaginada, 
com uma luz, mais que distante, breve. 


in 'Livro Geral'


domingo, 4 de junho de 2017

"Matura Idade" - Poema de Lara de Lemos


Adélaïde Labille-Guiard (1749-1803), Self-Portrait with Two Pupils, 1785 



Matura Idade


Já não receio 
meu avesso de medos. 

Distingo as coisas 
em sua proposta exata 
e sei — cada ser 
possui justa medida. 

Já não almejo 
o que me foi negado. 

Prossigo a caminhada 
colhendo o que 
me coube, consoante 
o chão lavrado. 


in 'Adaga Lavrada'


sábado, 3 de junho de 2017

"Depois" - Poema de Telmo Padilha


Autorretrato de Marie-Gabrielle Capet, 1783



Depois


O que perdeste 
voltará com as aves. 

Não será tão deserto 
teu deserto. 

Mas acostuma-te ao silêncio 
que virá depois. 

Folhas falarão pelas folhas. 

Aves falarão pelas aves. 



(1930-1997)
in 'Poesia Encontrada'



sexta-feira, 2 de junho de 2017

"Com uma criança nos braços" - Poema de Sidónio Muralha


Mary CassattWoman in a red bodice and her child, c.1896, 


Com uma criança nos braços


Vem, através de tudo vem,
com lentos, lentos mas implacáveis passos
aquela mulher que tem
uma criança nos braços.

Vem, através das páginas da história
que já não conseguimos apagar
- quem pudesse fechar a memória
e deitar a chave ao mar.

Vem, através de tudo avança.
E há pessoas que ficam ofendidas
porque aquela mulher a aquela criança
deveriam ser proibidas.

Deveriam ser mas para sê-lo
os pássaros não teriam asas
e seria preciso toneladas de gelo
para apagar biliões de brasas.

E ela vem. Como se tudo desenhasse
em lentos, lentos mas implacáveis passos
- como se de Hiroxima voltasse
com uma criança nos braços.


in Poemas, Porto, Editorial Inova Limitada, 1971


Émile MunierPortrait of a mother and daughter, 1885


"Se fosse possível descobrir o primeiro e verdadeiro germe de todos os afetos elevados e de todas as ações honestas e generosas de que nos orgulhamos, encontrá-lo-íamos quase sempre no coração da nossa mãe." -  Edmundo De Amicis, La Vita Militare, La Madre