segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

"O Poema" - Casimiro de Brito


Giovanni Domenico Tiepolo (1727–1804), The Procession of the Trojan Horse in Troy, c. 1760, 
 inspired by Virgil's Aeneid, National Gallery
 


O Poema


Poemas, sim, mas de fogo
devorador. Redondos como punhos
diante do perigo. Barcos decididos
na tempestade. Cruéis. Mas de uma
crueldade pura: a do nascimento,
a do sono, a da morte.

Poemas, sim, mas rebeldes.
Inteiros como se de água, e,
como ela, abertos à geometria
de todos os corpos. Inteiros
apesar do barro e da ternura
do seu perfil de astros.

Poemas, sim, mas de sangue.
Que esses poemas brotem do
oculto. Que libertem o seu pus
na praça pública. Altos, vibrantes
como um sismo, um exorcismo
ou a morte de um filho.



Pierre-Narcisse Guérin (1774–1833), Eneias descreve a queda de Troia a Dido,  
rainha de Cartago, 1815.  Museu do Louvre


"Inconstante e sempre mutável é a mulher."

Virgílio
(Públio Virgílio Maro, 70 a.C. 19 a.C.), in Eneida

domingo, 30 de dezembro de 2018

"Vigília" - Poema de Edmundo Bettencourt


Joaquín Sorolla, Louis Comfort Tiffany, 1911, The Hispanic Society of America, New York



Vigília


 No panorama de frio
jazia cristalizado o voo dos gaviões.

Ao seu encontro ia fremente
o respirar da terra quente quase adormecida.

Fluía um riso irónico das dentaduras alvas da neblina
para bocas de ouvidos,
olhos de bocas.

Surgiu então coberto de silêncio
o homem que desde sempre morrera trucidado.

O seu sangue caía enquanto andava.
Das gotas pelo chão se levantaram logo as árvores de fogo
dentro em pouco a floresta incendiária
de todo o frio que o chamava.

E antes que soprasse a ventania
a borboleta colorida foi queimada.

Mas antes que o sol humidamente
repousasse num clarão de olhos fechados,
as cinzas de pirâmides se espalhavam
indo ferir o enorme olho esbugalhado
que de aquém fitava um espaço maior! 


Edmundo Bettencourt
, in 'Poemas Surdos'



sábado, 29 de dezembro de 2018

"Grita" - Poema de Pablo Neruda


Francis Cadell, Portrait of a Lady in Black, c. 1921


Grita 


Amor, quando chegares à minha fonte distante,
cuida para que não me morda tua voz de ilusão:
que minha dor obscura não morra nas tuas asas,
nem se me afogue a voz em tua garganta de ouro.

Quando chegares, Amor
à minha fonte distante,
sê chuva que estiola,
sê baixio que rompe.

Desfaz, Amor, o ritmo
destas águas tranquilas:
sabe ser a dor que estremece e que sofre,
sabe ser a angústia que se grita e retorce.

Não me dês o olvido.
Não me dês a ilusão.
Porque todas as folhas que na terra caíram
me deixaram de ouro aceso o coração.

Quando chegares, Amor
à minha fonte distante,
desvia-me as vertentes,
aperta-me as entranhas.

E uma destas tardes - Amor de mãos cruéis -,
ajoelhado, eu te darei graças. 


Pablo Neruda
, in "Crepusculário"
Tradução de Rui Lage 


quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

"Na idade própria" - Poema de Maria Rosa Colaço


Felix Schlesinger (Germany, 1833-1910), Visiting Grandfather, Date unknown



Na idade própria


Na idade própria foste p'rá escolinha
aprender com letra muito redondinha.
Fizeste tricot, parecias rainha,
não sujaste os bibes, sempre arrumadinha.
Saíste da escola, sempre caladinha,
veio um namorado, mas tão seriazinha,
puseste o véu branco, tão bem casadinha!
De manhã à noite, tão asseadinha,
lavas bem os tachos, esfregas a cozinha,
pões as flores de plástico na tua salinha.
Como Deus mandou, cresce a barriguinha,
passam nove meses nasce-te a filhinha.
Fazes mais tricot, lavas mais roupinha.
Passam-se os anos, já és avozinha,
fazes mais tricot p'rá tua netinha.

Teu rosto, menina, não me sai da ideia,
vejo as tuas mãos a tecer a teia
em que, sem saberes, te vão enredar,
as aranhas anhas, do teu tricotar.
Se quiseres ser gente já não é capaz,
a morte na frente, o tédio p'ra trás.
Mas tens de ser gente, tens de ser capaz,
dois pontos à frente, nenhum para trás!


Maria Rosa Colaço
 
 

Maria Rosa Colaço


Maria Rosa Colaço foi uma escritora portuguesa nascida em 1935, em Torrão, Alcácer do Sal, e falecida a 13 de outubro de 2004.
Fez o curso de enfermagem no Instituto Rockfeller e depois frequentou a Escola do Magistério de Évora. Aos 20 anos tornou-se professora do ensino primário, primeiro em Moçambique (Nampula, Beira e Lourenço Marques) e depois, já em Portugal, em Almada. Defendeu sempre a importância da leitura no desenvolvimento e educação das crianças.
Estreou-se na escrita de obras infantis com Espanta-Pardais e ao longo de mais de quarenta anos lançou regularmente obras de literatura infanto-juvenil.
A Criança e a Vida, lançado nos anos 60, foi considerada a sua obra mais importante, embora seja também de realçar o livro Aventuras de João-Flor e Joana-Amor. A Criança e a Vida foi traduzida para diversas línguas e conheceu mais de 40 edições, a primeira das quais em Moçambique. Tratava-se de uma coletânea de textos escritos por crianças alunas de Maria Rosa Colaço.
Em 1958 escreveu a sua primeira obra para teatro A Outra Margem, que lhe valeu o Prémio Revelação de Teatro.
Dez anos mais tarde, regressou a Portugal, depois de ter feito alguns livros para o Ministério da Educação moçambicano com textos de crianças locais.
Em 1982 Maria Rosa Colaço ganhou o Prémio Soeiro Pereira Gomes, graças à edição do livro Gaivota. Sete anos mais tarde venceu o Prémio Alice Gomes da Associação Portuguesa para a Educação pela Arte pela obra Pássaro Branco.
Paralelamente à carreira de escritora, Maria Rosa Colaço colaborou com vários jornais, tendo escrito crónicas sobre o quotidiano durante vinte anos para o diário de Lisboa A Capital. Para além deste diário, escreveu em jornais como Planície de Moura, Diário do Alentejo, Diário do Sul, Diário de Notícias e Odemirense.
Elaborou ainda diversos textos para catálogos de exposições de artistas plásticos como Albino Moura, Roberto Chichorro e Louro Artur e do fotógrafo Eduardo Gageiro.
Maria Rosa Colaço foi sepultada na sua terra natal, Torrão, onde existe uma rua com o seu nome. (daqui)
 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

"Retrato do artista quando coisa" - Poema de Manoel de Barros


Edouard Louis Dubufe, Portrait of Rosa Bonheur with Bull, 1857



Retrato do artista quando coisa


Retrato do artista quando coisa: borboletas
Já trocam as árvores por mim.
Insetos me desempenham.
Já posso amar as moscas como a mim mesmo.
Os silêncios me praticam.
De tarde um dom de latas velhas se atraca
em meu olho
Mas eu tenho predomínio por lírios.
Plantas desejam a minha boca para crescer
por de cima.
Sou livre para o desfrute das aves.
Dou meiguice aos urubus.
Sapos desejam ser-me.
Quero cristianizar as águas.
Já enxergo o cheiro do sol.


Manoel de Barros
(do livro “Manoel de Barros – Poesia Completa”, Editora Leya)


Quando meus olhos estão sujos da civilização, cresce por dentro deles um desejo de árvores e aves.

Referência: https://citacoes.in/citacoes/115713-manoel-de-barros-quando-meus-olhos-estao-sujos-da-civilizacao-cre
Rosa Bonheur, (French animal painter, 1822-1899), The Lion at Home, 1881


"Quando meus olhos estão sujos da civilização, cresce por dentro deles um desejo de árvores e aves. Tenho gozo de misturar nas minhas fantasias o verdor primal das águas com as vozes civilizadas."

Manoel de Barros,
 Poesia Completa. Editora Leya, 2010 - p. 199.


Rosa Bonheur, Sheep in a Landscape, 1841


“Natureza é uma força que inunda como os desertos.”

Manoel de Barros


Rosa Bonheur, Noonday Rest, 1877


Aprendo com abelhas do que com aeroplanos.
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
É um olhar para o ser menor, para o
insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata – cresce de importância para o meu olho.
Ainda não aprendi por que herdei esse olhar
para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão –
Antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.


Manoel de Barros,
in “Retrato do Artista quando Coisa” (1998)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

"Veio tudo de longe" - Poema de Vítor Matos e Sá


Hessam Abrishami, Essence of Love
 
 

Veio tudo de longe


Veio tudo de longe para ser
uma só coisa, nupcial e magnífica.
Caminho e tenda. O mar. Livros. A indizível
matéria da dor. Ternura
cercada e repartida, pouco
a pouco, à mesa rápida
dos lábios, clandestina voz baixa
das mãos juntas. Sobreviventes
de invernos, dúvidas, denúncias.
E o teu sorriso honrado. A oferta
duplicada e vulcânica
dos seios. Esta noite que nos pôs
à prova. Sobre o vento e o repouso
do vento. E a música ainda cheia
de muitos outros quartos. Sim, a importância
do teu rosto: alvo claro deste mês
desmedido que nós somos.

Veio tudo de longe para ser
uma só coisa, sagrada e partilhável.

O banho comum gradual e abundante
dos sentidos. As faces que só tenho
entre o convívio doce dos teus dedos
sempre em férias. E a chave
do desejo. Ereta dureza doadora
do óleo e da viagem
aos lugares da origem
e do êxtase. Resposta
da terra contra a terra.

E a surpresa ensina e desvenda
as partes mais antigas da alegria
dupla, densa, nadadora, nossa.


Vítor Matos e Sá,
in 'Companhia Violenta'


Vítor Matos e Sá, pseudónimo de Vítor Raul da Costa Matos, nasceu em Maputo, antiga Lourenço Marques, em 1926, e faleceu em Espanha em 1975 vitimado por um acidente de viação. 
 
Licenciou-se e doutorou-se em filosofia pela Universidade Coimbra, vindo a ser diretor do Instituto Filosófico da mesma universidade. Entre 1964 e 1970, faz vários estágios em Inglaterra. 
 
Colaborou, como poeta, na Távola Redonda, na Árvore, nos Cadernos do Meio-Dia, em Eros, etc.
 
Publicou em vida as coletâneas O Horizonte dos Dias (1952), O Silêncio e o Tempo (1956) e O Amor Vigilante (1962. É publicada postumamente Companhia Violenta (1980), que reúne vários inéditos. 
 
A sua produção integra um modelo de poesia nascida de uma preocupação especulativa e filosofante e moldada sobre a experiência existencial.
 
Em 2000, foi publicada pela Campo das Letras Poesia de Vítor Matos e Sá, edição completa da sua obra poética.


François Gérard, Anne Louise Germaine de Staël, 1810
(Paris, 22 de Abril de 1766 — 14 de Julho de 1817)



"A glória é um luto ostentoso da felicidade."

Anne Louise Germaine de Staël
(Madame de Staël)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

"Fim" - Poema de Mário de Sá-Carneiro


Joaquín Sorolla, La última copla, 1904-1905



Fim


Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!


Mário de Sá-Carneiro
,
Paris, 1916


quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

"A Amiga deixada" - Poema de Cecília Meireles


Francis Cadell, Afternoon, 1913


A Amiga deixada


Antiga cantiga
da amiga
deixada.

Musgo da piscina,
de uma água tão fina,
sobre a qual se inclina
a lua exilada.

Antiga
cantiga
da amiga
chamada.

Chegara tão perto!
Mas tinha, decerto,
seu rosto encoberto...
Cantava — mais nada.

Antiga
cantiga
da amiga
chegada.

Pérola caída
na praia da vida:
primeiro, perdida
e depois — quebrada.

Antiga
cantiga
da amiga
calada.

Partiu como vinha,
leve, alta, sozinha,
— giro de andorinha
na mão da alvorada.

Antiga
cantiga
da amiga
deixada.


Cecília Meireles,
in 'Vaga Música'


Francis Cadell, Selfportrait, 1914


"A pintura não é mais que uma ideia de coisas incorporais."


quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

"Ar Livre" - Poema de Edmundo Bettencourt


Alfred Sisley, Snow on the Road Louveciennes, 1874



Ar Livre


Enquanto os elefantes pela floresta galopavam
no fumo do seu peso,
perto, lá andava ela nua a cavalgar o antílope,
com uma asa direita outra caída.
E a amazona seguia...
e deixava a boca no sumo das laranjas.
Os olhos verdes no mar.
O corpo em a nuvem das alturas
- a guardadora
da sempre nova faísca incendiária! 


Edmundo Bettencourt,
in 'Antologia Poética'
 
 

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

"A vulgar que passou" - Poema de Pablo Neruda


Ilya Mashkov, Portrait of a Lady in Blue, 1927

 

A vulgar que passou 


Não eras para os meus sonhos, não eras para a minha vida,
nem para os meus cansaços perfumados de rosas,
nem para a impotência da minha raiva suicida,
não eras a bela e doce, a bela e dolorosa.

Não eras para os meus sonhos, não eras para os meus cantos,
não eras para o prestígio dos meus amargos prantos,
não eras para a minha vida nem para a minha dor,
não eras o fugitivo de todos os meus encantos.
Não merecias nada. Nem o meu áspero desencanto
nem sequer o lume que pressentiu o Amor.

Bem feito, é muito bem feito que tenhas passado em vão
que a minha vida não se tenha submetido ao teu olhar,
que aos antigos prantos se não tenha juntado
a amargura dolente de um estéril chorar.

Tu eras para o imbecil que te quisesse um pouco.
(Oh! meus sonhos doces, oh meus sonhos loucos!)
Tu eras para um imbecil, para um qualquer
que não tivesse nada dos meus sonhos, nada,
mas que te daria o prazer animal
o curto e bruto gozo do espasmo final.

Não eras para os meus sonhos, não eras para a minha vida
nem para os meus quebrantos nem para a minha dor,
não eras para os prantos das minhas duras feridas,
não eras para os meus braços, nem para a minha canção. 


Pablo Neruda, in 'Cadernos de Temuco'
Tradução de Albano Martins


segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

"A Rua dos Cataventos" - Soneto XXXV de Mário Quintana


Winslow Homer, The Woodcutter, 1891


Quando eu morrer e no frescor da lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhuma de vós!

Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão...
Que linda a eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!...

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas...

E um dia há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...

Mário Quintana (1906-1994), In: Poesia completa, Ed. Nova Aguillar, 2005, p. 121.


Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=290933 © Luso-Poemas
Quando eu morrer e no frescor da lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhuma de vós!

Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão...
Que linda a eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!...

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas...

E um dia há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...

Mário Quintana (1906-1994), In: Poesia completa, Ed. Nova Aguillar, 2005, p. 121.


Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=290933 © Luso-Poemas

XXXV


Quando eu morrer e no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua…
Nada mais quero com nenhum de vós!

Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão…
Que lindo a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!…

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas…

E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto…
Mário Quintana (1906-1994), In: Poesia completa, Ed. Nova Aguillar, 2005, p. 121.

Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=290933 © Luso-Poemas


Mário Quintana,
A Rua dos Cataventos, 1940


domingo, 9 de dezembro de 2018

"H" - Poema de António Maria Lisboa


Henry Mosler (American artist, 1841-1920), 'The Quadroon Girl'1878
Cincinnati Art Museum



H

 Sei que dez anos nos separam de pedras
e raízes nos ouvidos

e ver-te, ó menina do quarto vermelho,
era ver a tua bondade, o teu olhar terno
de Borboleta no Infinito

e toda essa sucessão de pontos vermelhos no espaço
em que tu eras uma estrela que caiu
e incendiou a terra

lá longe numa fonte cheia de fogos-fátuos. 
in "Ossóptico e Outros Poemas"


sábado, 8 de dezembro de 2018

"Natal, e não Dezembro" - Poema de David Mourão Ferreira


Sassetta (Stefano di Giovanni), The Journey of the Magi (fragment), 1435



Natal, e não Dezembro

 
Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.


David Mourão-Ferreira,
in 'Cancioneiro de Natal'
 
 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

"Que Deus guarde meu pai" - Poema de Antônio Brasileiro


Thomas Pollock Anshutz, Man on a Boat, 1894



Que Deus guarde meu pai...


Não passar. Ficar para semente.

Não era isto que meu pai queria?
Sentava-se na rede e adormecia
julgando ter domado a dama ausente.

E sonhava talvez. Talvez menino
montando burros bravos, nu, ao vento;
um homem é a sua ação sobre o destino.

Meu pai então fazia um movimento
e a rede, a adormecer, estremecia:
pequenos sustos no tempo, era só isto.

E escancarava os olhos duramente
para mostrar que se ela o procurava
era de cara a cara que a encarava.

Que Deus guarde meu pai. Eternamente.
Poemas Reunidos, 2015
 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

"De Memória" - Poema de Luís Filipe Castro Mendes


Christian Albrecht Jensen, Birgitte Sobotker Hohlenberg, 1826 



De Memória


Nunca te surpreendeu o sorriso estático
das imagens antigas? Alguma coisa aqui
tivemos de perder. Percorro dias e corpos na memória,
mas o que procuro mais é não te ver.

Quem ama quem? As máscaras trocaram-se
e a tua voz ressoa neste palco.
Trouxe versos e música para te dar,
mas o rosto que tivemos já partiu;
fiquei eu só, à beira da memória,
água do mar que não serve para beber.

Porque esta foi a paixão, o grande ato,
a tímida paixão de asas de chumbo.
Eu vi-te muitas vezes frente ao mar,
mas quem de nós para acender a cinza?
– ronda-nos a ave de presa despojada
sobre os malefícios. Aliás, coisas passadas.

Não te surpreendeu? O amor
surpreende – não convém, desarruma.
E nunca se ama ao certo quem se ama.
Procuramos apenas um brilho,
um brilho muito intenso no olhar,
um brilho que não vamos definir
e que algum dia iremos renegar.


Luís Filipe Castro Mendes


terça-feira, 4 de dezembro de 2018

"Protesto" - Poema de Walmir Ayala


(Woman Standing in Front of a Mirror), 1841



Protesto 


Não é no teu corpo que se imola
para a ceia dos meus sentidos
a vítima núbil, a áurea mola
que cinge o amor recente aos idos.

Mas é também no teu corpo que corre
o sangue que o meu sangue socorre.

Não é no teu corpo que se ergue
a guerra fria dos meus nervos,
nem nasceram tuas transparências
para a cegueira dos meus dedos.

Mas é também no teu corpo insano
que perscruto meu desconforto humano.

Não é no teu corpo, nos teus olhos
de fauno, que colho as minhas ditas,
nem o jasmim de tua boca flore
para a visão que me solicita.

Mas é também no teu corpo único
que o amor à forma do Amor reúno.

Não é no teu corpo que concentro
minha sede (esta sede ferina
que morre de seu farto alimento
e vive de quanto se elimina)

Mas é também teu corpo a medida
destas águas sobre a minha ferida.

Não é no teu corpo, mas é tanto
no teu corpo meu último refúgio,
que amoroso e em pânico me insurjo
contra a fonte que és: júbilo e pranto.

Mas é também no teu corpo o tudo
da solidão em que me aclaro e escudo.

Em teu corpo, canal que brande e acalma
minha alma, este pássaro árduo e mudo
na estranha migração da tua alma. 
in 'O Edifício e o Verbo'


Christoffer Wilhelm Eckersberg, Naked Woman 
Putting on her Slippers, 1843



"Pelo exemplo de Beatriz compreende-se
facilmente como o amor feminino dura pouco,
se não for conservado aceso pelo olhar e pelo tacto do homem amado."

Dante Alighieri

Purgatório (Divina Comédia)



segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

"Natal" - Poema de Fernando Pessoa


Natal


Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!


Fernando Pessoa
1ª publ. in Notícias Ilustrado, nº 29. 

Lisboa: 30-12-1928.


domingo, 2 de dezembro de 2018

"Écloga" - Poema de Luís de Montalvor


Winslow Homer, Fresh Air, 1878



Écloga


Meus pensamentos são rebanhos:
estremalhados uns, e tristes
outros pastoreiam seus cuidados.
Sonho vê-los, quando sorriste
daquela margem imaginária
tão só dos sonhos imortais,
à hora em que a flauta débil
suspira os seus fingidos ais.

E é de ouro a hora em que te espero
nesta paisagem que mentiste,
perdidos os rebanhos meus
na errada calma em que sorriste.
— E hoje, morto o sonho, deploro
dos meus cuidados o remédio,
e só o teu sorriso imploro,
ó guardadora do meu tédio!


Luís de Montalvor 


sábado, 1 de dezembro de 2018

"Nas ruas de Lisboa" - Poema de Yvette Centeno


Guilherme Parente, A viagem na minha terra I 



Nas ruas de Lisboa


Veio avisar
Veio com rosto
de sombra:
morrerá um poeta
nas ruas de Lisboa.

Chove muito,
a chuva lavará
o seu cadáver.

Alguém dirá
o seu nome
alguém lhe fechará
os olhos
que ele desejava
abertos
sobre o mar


Y. K. Centeno

Canções do Rio Profundo
Porto, Edições ASA, 2002




Guilherme Parente, A viagem na minha terra II



"Eu vivi tanto
que me parece tão pouco. E hei de morrer
desesperado por não ter vivido."

Jorge de Sena
(1919-1978)
 
 

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

"Em Viagem" - Poema de Guerra Junqueiro


Jean-Baptiste Greuze, Head of Young Woman 
(also known as 'Contemplation'), circa 1780-1789




Em Viagem


Desde aquela dor tamanha
Do momento em que parti
Um só prazer me acompanha,
Filha, o de pensar em ti:

Por sobre a negra paisagem
Do meu ermo coração
O luar branco da tua imagem
Veste um benigno clarão.

A tarde, no azul celeste,
Há uma estrela esmorecida,
Que é o beijo que tu me deste
Na hora da despedida.

Beijo tão longo e dolente,
Tão longo e cortado de ais,
Que o meu coração pressente
Que não te torno a ver mais.

Conto no céu estrelado
Lágrimas de oiro sem fim:
É o pranto que tens chorado,
De dia e noite, por mim...

Quando me deito na cama
E vou quase adormecido,
Oiço a tua voz que me chama,
Num suplicante gemido.

Num gemido tão suave,
Tão triste na noite escura,
Que é como uma queixa d'ave
Presa numa sepultura!...

Em sonho, às vezes, meu Deus,
Cuido que vou expirar,
Sem levar nos olhos meus
O teu derradeiro olhar.

E sem extremo conforto
Que eu ness'hora quero ter:
Beijar a fronte do morto
Aquela que o fez viver.

E é esta ideia constante,
É esta ideia sombria
Que me eclipsa, a todo o instante
O sol da alma, a alegria.

Partir!... Partir-se a cadeia
Da vida, Senhor, senhor!
Quando o azul doirado arqueia
Bênçãos ao meu sonho em flor!...

Morrer amanhã talvez!
Morrer!... Endoideço, quando
Me lembra a tua viuvez,
Entre dois berços chorando!..

Morrer, entregar à treva,
Aos vermes e às podridões
O meu coração, que leva
Dentro mais três corações!

É duro, é cruel... No entanto,
Antes da hora final,
Eu quero dizer-te o quanto
Te amei, lírio virginal!

Eu vinha de longe, exangue,
A alma despedaçada,
deixando um rastro de sangue
Nas urzes da minha estrada.

Brancas ilusões mimosas,
Vastas quimeras febris,
Abelhas doirando rosas,
Águias c'roando alcantis.

Oh, desse mundo risonho
Havia apenas ficando
A bruma vaga dum sonho
Que a gente sonha acordado... 

........
 in 'Poesias Dispersas'

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

"Primeira tarde" - Poema de Arthur Rimbaud


Albert Lynch (Parisian painter of German-Peruvian ancestry, 1860–1950),  
"A young beauty", oil on panel.


Primeira tarde


Era bem leve a roupa dela
E um grande ramo muito esperto
Lançava as folhas na janela
Maldosamente, perto, perto.

Quase desnuda, na cadeira,
Cruzavas as mãos, e os pequeninos
Pés esfregava na madeira
Do chão, libertos finos, finos.

— Eu via pálido, indeciso,
Um raiozinho em seu gazeio
Borboletear em seu sorriso
— Mosca na rosa — e no seu seio.

— Beijei-lhe então os tornozelos.
Deu ela um riso inatural
Que se esfolhou em ritornelos,
Um belo riso de cristal.

Depressa, os pés na camisola
Logo escondeu: "Queres parar!"
Primeira audácia que se implora
E o riso finge castigar!

Sinto-lhe os olhos palpitantes
Sob os meus lábios. Sem demora,
Num de seus gestos petulantes,
Volta a cabeça: "Ora, esta agora!..."

"Escuta aqui que vou dizer-te..."
Mas eu lhe aplico junto ao seio
Um beijo enorme, que a diverte
Fazendo-a rir agora em cheio...

— Era bem leve a roupa dela
E um grande ramo muito esperto
Lançava as folhas na janela
Maldosamente, perto, perto.


Arthur Rimbaud

Trad. Ivo Barroso
 
 
Retrato de Arthur Rimbaud por Étienne Carjat (1871/2)

 
Poeta francês, de nome completo Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud, nasceu a 20 de outubro de 1854 em Charleville, nas Ardenas. O pai, soldado tarimbeiro, abandonou a família quando Arthur contava seis anos de idade, pelo que foi educado apenas pela mãe, uma criatura autoritária e profundamente religiosa.
Frequentando a escola de província até aos quinze anos de idade, Rimbaud mostrou-se um aluno de capacidades excecionais mas indomáveis. Partindo da sua Paris natal, conseguiu atingir a Bélgica aos dezasseis, o que lhe valeu escolta policial até casa.
Publicou nesse ano de 1870 o seu primeiro poema e, no seguinte, conhecendo Verlaine, desencaminhou-o da sua condição de homem de família, frustrado no absinto, e juntos chegaram a Londres, para dar início a uma vida de álcool e drogas. Publicou o seu primeiro livro, Le Bâteau Ivre em 1871.
Os hábitos pouco higiénicos de Verlaine desencantaram Rimbaud, especialmente quando o seu amante explodiu numa crise de ciúmes, e o alvejou num pulso. O episódio acabou com uma estadia de Verlaine na prisão belga e o regresso de Rimbaud ao abrigo da quinta familiar. Em 1873 apareceu um dos seus livros mais famosos, a coletânea de poemas intitulada Une Saison En Enfer, em que o autor descia aos infernos quase ao estilo de Dante. Em Adeus, o último trecho do livro, resume a tragédia de alguém que quisera descobrir uma poesia nova ao cultivar as sensações, e apenas obtivera um caos de imagens.
Em 1874 partiu de novo para Londres, e na Biblioteca Nacional Britânica foi-lhe interdita a leitura das obras de Sade, por não ter atingido a maioridade de vinte e um anos.
A partir de 1875 recomeçou a sua vida deambulante, aprendendo uma série de idiomas, como o Alemão, o Italiano, o Grego e o Árabe, entre muitos outros. Trabalhou como professor na Alemanha, estivador no porto de Marselha e, alistando-se no exército holandês, acabou por desertar no arquipélago indonésio.
Passou depois a agente comercial de importações-exportações ao serviço de diversas empresas francesas, dedicando-se a negócios obscuros de honestidade duvidosa que o levaram a destinos tão variados como Java, Chipre, Etiópia e o Egito.
Em 1886 surgiu Illuminations, numa edição realizada por Verlaine. A obra restabeleceu a reputação de Rimbaud como poeta, graças à sua profundidade espiritual, em que o autor demonstrava a sua preferência pelo humano em detrimento do divino.
Em fevereiro de 1891, Rimbaud viu a sua alma de caminhante mutilada, quando em Marselha começou a sentir fortes dores no joelho esquerdo. Foi-lhe diagnosticado um cancro e a perna teve que ser amputada. Após um período de alucinações e transes, Rimbaud acabou por falecer em Marselha a 10 de novembro de 1891. O seu último escrito, Lettre au Directeur des Messageries Maritimes, conta-se entre o melhor que a lucidez do poeta nos soube dar. (Daqui)
 

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

"Preguiça" - Poema de António Correia de Oliveira



Jean-Baptiste Greuze
, Indolence, 1756 (also known as "La Paresseuse Italienne")



Preguiça


Preguiça, inda de peito
Muito custou a criar!
Quase que morreu de fome,
Com preguiça de mamar.

Preguiça, já crescidinha,
Quando por seu pé andava,
Não era andar! mais parecia
Que toda se espreguiçava...

Preguiça foi à lição:
Ler, escrever e contar?
Deixava a memória em casa,
Com preguiça de a levar!

Preguiça, foi confessar-se:
"Fez exame de consciência?"
"Não fiz, meu padre! mas faço-o
Amanhã ... Tenha paciência."

Preguiça aprendeu costura:
Mas, sempre que costurava,
Só para não pôr dedal,
Sempre os seus dedos picava.

A mãe ralhou à Preguiça
Porque se não penteara;
Torna-lhe ela: "Há quantos dias
É que a mãe não lava a cara?"

Preguiça, morta de sono,
Quase de sono morria:
Só por não fechar os olhos,
Quantas noites não dormia!

A Preguiça, muito a custo,
Fez a cama, e se deitou;
Para não mais a fazer,
Nunca mais se levantou.

A Preguiça abria a boca,
Coisa em que ela era mais certa:
Mas depois - p'ra não fechar -
Ficou sempre "Boca-aberta".

A Preguiça e o Desmazelo
Juntaram-se em casamento:
Levando os dois, em bom dote
Uma mancheia de vento.

Preguiça teve dois filhos:
Oh que santa geração!
A mais velha, Dona Fome;
O mais novo, Dom Ladrão.

Quando a Preguiça morrer;
Até o monte maninho,
Até fraguedos da serra
Darão rosas, pão e vinho. 

terça-feira, 27 de novembro de 2018

"A Borboleta" - Poema de Jaime Cortesão


Jan Frederik Pieter Portielje (Dutch, 1829 - 1908),
 The Butterfly, Date unknown 



A Borboleta


Filha da larva que o Inverno hostil
Gelou numa dureza concentrada
Ao aquecer do flavo sol d’abril
Surgiu de forma leve e curva alada.

Íris que voa, aspiração subtil
Da flor que quis ser ave, e transformada
Libra no ar a pétala gentil,
Asa da cor, paleta iridiada,

Poisa tão breve que se um sopro a agita
Ergue-se a bambolina num fulgor...
Aflora os lábios duma margarita.

Abrindo manchas, vai de flor em flor,
Flutua, anseia, embala-se e palpita...
Como um bailado trémulo da cor.


Jaime Cortesão



segunda-feira, 26 de novembro de 2018

"A Rua dos Cataventos" - Soneto XIX de Mário Quintana

Alfred Sisley, Le Pont de Moret, effet d'orage, 1887,
 Musée Malraux, Le Havre, France


XIX


Minha morte nasceu quando eu nasci. 
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequena rua em que vivi.

Já não tem mais aquele jeito antigo
De rir e que, ai de mim, também perdi!
Mas inda agora a estou sentindo aqui,
Grave a boa, a escutar o que lhe digo:

Tu que és minha doce Prometida,
Nem sei quando serão as nossas bodas,
Se hoje mesmo... ou no fim de longa vida...

E as horas lá se vão, loucas ou tristes...
Mas é tão bom, em meio às horas todas,
Pensar em ti... saber que tu existes! 


Mário Quintana,
 in A Rua dos Cataventos, 1940.