segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

"Veio tudo de longe" - Poema de Vítor Matos e Sá


Hessam Abrishami, Essence of Love
 
 

Veio tudo de longe


Veio tudo de longe para ser
uma só coisa, nupcial e magnífica.
Caminho e tenda. O mar. Livros. A indizível
matéria da dor. Ternura
cercada e repartida, pouco
a pouco, à mesa rápida
dos lábios, clandestina voz baixa
das mãos juntas. Sobreviventes
de invernos, dúvidas, denúncias.
E o teu sorriso honrado. A oferta
duplicada e vulcânica
dos seios. Esta noite que nos pôs
à prova. Sobre o vento e o repouso
do vento. E a música ainda cheia
de muitos outros quartos. Sim, a importância
do teu rosto: alvo claro deste mês
desmedido que nós somos.

Veio tudo de longe para ser
uma só coisa, sagrada e partilhável.

O banho comum gradual e abundante
dos sentidos. As faces que só tenho
entre o convívio doce dos teus dedos
sempre em férias. E a chave
do desejo. Ereta dureza doadora
do óleo e da viagem
aos lugares da origem
e do êxtase. Resposta
da terra contra a terra.

E a surpresa ensina e desvenda
as partes mais antigas da alegria
dupla, densa, nadadora, nossa.


Vítor Matos e Sá,
in 'Companhia Violenta'


Vítor Matos e Sá, pseudónimo de Vítor Raul da Costa Matos, nasceu em Maputo, antiga Lourenço Marques, em 1926, e faleceu em Espanha em 1975 vitimado por um acidente de viação. 
 
Licenciou-se e doutorou-se em filosofia pela Universidade Coimbra, vindo a ser diretor do Instituto Filosófico da mesma universidade. Entre 1964 e 1970, faz vários estágios em Inglaterra. 
 
Colaborou, como poeta, na Távola Redonda, na Árvore, nos Cadernos do Meio-Dia, em Eros, etc.
 
Publicou em vida as coletâneas O Horizonte dos Dias (1952), O Silêncio e o Tempo (1956) e O Amor Vigilante (1962. É publicada postumamente Companhia Violenta (1980), que reúne vários inéditos. 
 
A sua produção integra um modelo de poesia nascida de uma preocupação especulativa e filosofante e moldada sobre a experiência existencial.
 
Em 2000, foi publicada pela Campo das Letras Poesia de Vítor Matos e Sá, edição completa da sua obra poética.


François Gérard, Anne Louise Germaine de Staël, 1810
(Paris, 22 de Abril de 1766 — 14 de Julho de 1817)



"A glória é um luto ostentoso da felicidade."

Anne Louise Germaine de Staël
(Madame de Staël)

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