sexta-feira, 26 de abril de 2024

"Crisântemos" - Poema de Florbela Espanca


Henri Biva (French artist, 1848–1929), Chrysanthemums and roses in a vase on a salver
Oil on canvas, 122 x 77.8 cm. Private collection.
 
 
Crisântemos


Sombrios mensageiros das violetas,
De longas e revoltas cabeleiras;
Brancos, sois o casto olhar das virgens
Pálidas que ao luar, sonham nas eiras.

Vermelhos, gargalhadas triunfantes,
Lábios quentes de sonhos e desejos,
Carícias sensuais d’amor e gozo;
Crisântemos de sangue, vós sois beijos!

Os amarelos riem amarguras,
Os roxos dizem prantos e torturas,
Há-os também cor de fogo, sensuais...

Eu amo os crisântemos misteriosos
Por serem lindos, tristes e mimosos,
Por ser a flor de que tu gostas mais! 


 Florbela Espanca, in Trocando Olhares
(Coletânea de poemas)


Henri Biva, Fleurs près d'un puits, oil on canvas, 181 x 118.
 
 
"Não sou como a abelha saqueadora que vai sugar o mel de uma flor, e depois de outra flor. Sou como o negro escaravelho que se enclausura no seio de uma única rosa e vive nela até que ela feche as pétalas sobre ele; e abafado neste aperto supremo, morre entre os braços da flor que elegeu".

Roger Martin du Gard, "Os Thibault".
Tradução de Casemiro Fernandes, 
Editora Globo, 1986.

 l'année du Prix Nobel.
 
Roger Martin du Gard (Escritor francês, 1881-1958) é o autor de Jean Barois (1913), romance baseado no caso Dreyfus, e do fresco Les Thibault (1922-1940), que retrata a vida de uma família francesa nas duas primeiras décadas do século XX, demonstrando uma técnica romanesca extremamente eficaz. A sua obra final, Souvenirs du lieutenant-colonel de Maumort (1942-1958), testemunha uma obsessão com a morte. Em 1968 foi editada a correspondência que manteve com André Gide. Recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1937. (daqui)

 
Couverture du premier volume "Le cahier gris",
 édition originale, 1922.
 

RESUMO


'Os Thibault' - escrito em oito partes, entre 1922 e 1940 e reunido pela Editora Globo em cinco volumes, é considerado um dos grandes clássicos da literatura universal. Adotando os cânones do roman-fleuve [romance-rio] e do realismo do final do século XIX e início do século XX - desenvolvimento da narrativa em um longo espaço de tempo, adoção de um ponto de vista puramente objetivo para a obtenção da verdade e a apresentação da visão de conjunto de uma sociedade - Os Thibault revela os impasses morais e políticos de uma família francesa, católica e burguesa, diante dos eventos dramáticos que culminaram com a deflagração da Primeira Guerra Mundial, em 1914. 
Narrado ao longo das duas primeiras décadas do século XX, Du Gard contrasta a figura do velho Thibault, um conformista social e religioso, com o retrato dos seus dois filhos: Jacques, um revoltado espiritual, e Antoine, um médico prático e enérgico.
Em 1920, Roger Martin du Gard estabeleceu-se em Clermont, perto de Paris, para elaborar aquela que seria considerada a sua obra-prima. Em reclusão quase total, começou a escrever Os Thibault, cujas seis primeiras partes foram publicadas entre 1922 e 1929 (O Caderno Gris, A Penitenciária, Primavera, A Clínica, La Sorellina e A Morte do Pai). 
Du Gard só retoma a saga de Os Thibault em 1933, realizando novas pesquisas e consultas, já que considerou ser necessária uma perfeita documentação histórica para a conclusão da obra. Então, em 1936, surge Verão de 1914, a sétima parte de Os Thibault e, finalmente, em 1939, quando uma nova guerra começava, conclui a obra, lançando Epílogo, sua última parte. (daqui)
 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

"Geometria dos ventos" - Poema de Rachel de Queiroz


Paul Gauguin (French painter, sculptor, printmaker, ceramist, and writer, 1848 –1903),
The Painter of Sunflowers (Portrait of Vincent van Gogh), 1888, Van Gogh Museum



Geometria dos ventos


Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma.
Ela flui, como um rio.
Como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
Feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.


Rachel de Queiroz

(Poema em homenagem ao livro "Geometria dos Ventos" de Álvaro Pacheco)

quarta-feira, 24 de abril de 2024

"A Fábrica" - Poema de Ary dos Santos



Stanhope Forbes
(British artist, 1857–1947), 'The Munition Girls', 1918, Science Museum.



A Fábrica


Da alavanca ao tear da roda ao torno
da linha de montagem ao cadinho
do aço incandescente a entrar no forno
à agulha a trabalhar devagarinho.

Da prensa que se fez para esmagar
à tupia no corpo da madeira
do formão que nasceu a golpear
à força bruta duma britadeira.

Do ferro e do cimento até ao molde
que é quase um esgar de plástico sereno
do maçarico humano que nos solde
à luz da luta e não do acetileno

nasce este canto imenso e universal
sincopado enérgico fabril
sereia que soou em Portugal
à hora de pegarmos por Abril.

Transformar a matéria é transformar
a própria sociedade que nós fomos
ser operário é apenas saber dar
mais um pouco de nós ao que nós somos.

Um braço é muito mas por si só não chega
por trás da nossa mão há uma razão
que faz de cada gesto sempre a entrega
de um pouco mais de força. De mais pão.

Estamos todos num único universo
e não há uns abaixo outros acima
pois se um poema é uma obra em verso
um parafuso é uma obra-prima.

Operários das palavras ou do aço
da terra do minério do cimento
em cada um de nós há um pedaço
da força que só tem o sofrimento.

Vamos cavá-la com a pá das mãos
provar que em cada um nós somos mil
é tempo de alegria meus irmãos
é tempo de pegarmos por Abril.


Ary dos Santos
, in “Obra Poética”
Lisboa, Ed. Avante, 1994.
 
 
Portrait of  Stanhope Forbes by his wife, Elizabeth Adèla Forbes
née Armstrong (Canadian painter, 1859 –1912). 
 
 
"O talento é amiúde um fator secundário no sucesso. Convencemos-nos deste facto ao ler a vida dos homens célebres. Todos, poetas, oradores, historiadores, filósofos, estadistas, foram sobretudo trabalhadores incansáveis, mais viris na labuta que os jornaleiros e operários; consumiam-se nos seus livros e afazeres como a lâmpada que presidia às suas vigílias. Foram vistos trabalhar doze, catorze, dezasseis horas por dia durante largos anos. Antes da aurora levantavam-se; no verão, madrugavam mais do que a cotovia e quando o ceifador ia colher paveias, já tinha amontoado tesouros."
 
Louis Riboulet (1871 - 1944), Rumo à Cultura, p. 28
 

terça-feira, 23 de abril de 2024

"Mulheres do meu país" - Poema de Maria Teresa Horta

 

 
Ilustração de Bárbara Amaral, À Boleia do Cravo



Mulheres do meu país


Deu-nos Abril
o gesto e a palavra

fala de nós
por dentro da raiz

Mulheres
quebrámos as grandes barricadas
dizendo: igualdade
a quem ouvir nos quis

E assim continuamos
de mãos dadas

O povo somos:
mulheres do meu país


Maria Teresa Horta, in “Mulheres de Abril”,
Lisboa, Editorial Caminho, 1977.
 
 
Maria Teresa Horta,“Mulheres de Abril” - 1º edição, 1977,
112 páginas. Lisboa, Editorial Caminho.
 
 
 RESUMO


O livro "Mulheres de Abril", de Maria Teresa Horta, de 1977, utiliza-se de uma linguagem política engajada na tentativa de levante da mulher como testemunha tanto do processo de desvinculação ditatorial ocorrida na Revolução dos Cravos, quanto da história opressora fomentada pelo patriarcalismo. A mimese desse testemunhar se dá principalmente por via da memória poética feminina.
 

segunda-feira, 22 de abril de 2024

"A Terra" - Poema de Ary dos Santos



Charles Angrand (French artist, 1854–1926), The Harvesters, 1892,
Museum of Fine Arts, Houston
.


A Terra

 
É da terra sangrenta. Terra braço
terra encharcada em raiva e em suor
que o homem pouco a pouco passo a passo
tira a matéria-prima do amor.

Umas vezes o trigo loiro e cheio
outras o carvão negro e faiscante
umas vezes petróleo outras centeio
mas sempre tudo menos que o bastante.

Porque a terra não é de quem a trabalha
porque o trigo não é de quem semeia
e um trabalhador apenas falha
quando faz filhos em mulher alheia.

Quando o estrume das lágrimas chegar
para adubar os vales da revolta
quando um mineiro puder respirar
com as narinas dum cavalo à solta

quando o minério se puder tornar
semente viva de bem-estar e pão
quando o silêncio se puder calar
e um homem livre nunca dizer não.

Quando chegar o dia em que o trabalho
for apenas dar mais ao nosso irmão
quando a fúria da força que há num malho
fizer soltar faíscas de razão.

Quando o tempo do aço for o tempo
da têmpera dos homens caldeados
por pó e chuva por excremento e vento
mas por sua vontade libertados.

Quando a seiva do homem lhe escorrer
por entre as pernas como sangue novo
e quando a cada filho que fizer
puder chamar em vez de Pedro Povo.

As entranhas da terra hão de passar
o tempo da humana gestação
e parir como um rio a rebentar
o corpo imenso da Revolução. 
 

Ary dos Santos, in “Obra Poética”,
Lisboa, Ed. Avante, 1994.
 
 
Ary dos Santos,“Obra Poética” - Ano de edição: 10-2017
Editor: Editorial Avante
 
 
 
SINOPSE

José Carlos Ary dos Santos (1937-1984) foi um grande poeta e um enorme declamador. Os seus poemas e canções, de uma imensa riqueza simbólica, farão para sempre parte do património cultural nacional. Militante do Partido Comunista Português de 1969 até à sua morte, foi justamente apelidado de «Poeta de Lisboa e do seu povo, de Portugal e de Abril».
As Edições «Avante!», no ano em que José Carlos Ary dos Santos faria 80 anos de idade, reeditam as antologias Obra Poética e As Palavras das Cantigas, como dois volumes de uma obra ao mesmo tempo popular e erudita, com iguais doses de amor e de luta. (daqui)

Charles Angrand (French artist, 1854–1926), Wheat, Pastel drawing.
 

"O objetivo principal da agricultura não é cultivar lavouras, mas o cultivo e aperfeiçoamento dos seres humanos." 
 
"The ultimate goal of farming is not the growing of crops, but the cultivation and perfection of human beings."

Masanobu Fukuoka
, The One-Straw Revolution,
Published by: Other India Press, Mapusa, Goa, India, 8 edição. 2001, p. 119. 
 
 
Charles Angrand, The Harvest, 1890
 
 
 "Meu desejo mais profundo é semear sementes no deserto. Reverter os desertos é semear no coração das pessoas."
 
"My ultimate dream is to sow seeds in the desert. To revegetate the deserts is to sow seed in people's hearts."
 
Masanobu Fukuoka, The Road Back to Nature, tradução para o inglês por Frederic P. Metreaud, 
Japan Publications, 1987 - 377 páginas, p. 360.
 
 
Masanobu Fukuoka, criador do conceito de Agricultura natural.


Masanobu Fukuoka (2 de fevereiro de 1913 - 16 de agosto de 2008) foi um agricultor e microbiólogo japonês, autor das obras A Revolução de uma folha de Palha e A Senda Natural do Cultivo, onde apresenta suas propostas para o plantio direto assim como uma forma de agricultura que é conhecida por agricultura selvagem ou método Fukuoka.

Nos últimos 70-80 anos (desde a década de 40) utilizou o seu método para florestar zonas com tendência a desertificação. Na Tailândia, nas Filipinas, na Índia e em alguns países africanos transformou pequenas regiões desertificadas em áreas verdes. Também iniciou um projeto de reflorestamento na Grécia. Em 1988, recebeu o Prémio Magsaysay (Prémio Nobel da Paz no Extremo Oriente) por sua contribuição para o bem da humanidade. (daqui)
 

domingo, 21 de abril de 2024

"O que aquela noite me quis dar" - Poema de José Jorge Letria


Ilustração de Cláudia Salgueiro, Verde Liberdade 
 
 

 O que aquela noite me quis dar


Eu não estava em casa nessa noite, filho,
nem podia estar. Estava nas ruas com os soldados
que rumavam às rádios e aos quartéis, engalanados
de sombra e de júbilo, a ver o que aquela noite
ia dar, o que a nossa liberdade prometia ser.
E tu, filho, tinhas a idade rumorejante
desse Abril embalado por uma canção do Zeca.
Como posso eu explicar-te tudo aquilo
que tu nasceste para aprender, para viver?
Eu estava aquartelado no meu silêncio
de pétalas, sílabas e marés, no dédalo
de vozes embriagadas pelo vento,
na coragem errante das pelejas da infância
e pouco ou nada sabia do mistério desse mês
capaz de transformar em assombro as nossas vidas.

Sim, sou eu neste retrato antigo,
a receber em festa os exilados, os que chegavam
com grinaldas de cantigas e a flor de uma ilusão
bordada a sangue e espuma no capote das noturnas caminhadas.
Sim, sou eu a escrever a primeira reportagem
do primeiro de muitos dias em que o tempo
deixou de contar, em que os relógios
se tornaram corolas de paixão e riso
na lapela larga da alegria desta pátria.

Eu não estava em casa nessa noite, filho,
estava a afinar o coração pelo tom
das mais belas melodias que alguém pode aprender
para dar a quem ama a paz de um sono sem tormento.


José Jorge Letria, in “Abril 30 Anos Trinta Poemas”,
de José Fanha e José Jorge Letria.
Lisboa, Campo das Letras, 2004
 
 

sábado, 20 de abril de 2024

"Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta." - Poema de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa

 

Thalia Flora-Karavia (Greek artist, 1871–1960), River, s.d. 



Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.

XLV

Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renque e o plural árvores não são coisas, são nomes.

Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de coisa a coisa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!

7-5-1914


Alberto Caeiro, “O Guardador de Rebanhos”.
In Poemas de Alberto Caeiro.
Fernando Pessoa.
(Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 67.

“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.



Thalia Flora-Karavia (Greek artist, 1871–1960), Self-portrait, s.d.
 
 
"Se um homem encara a vida de um ponto de vista artístico, seu cérebro passa a ser seu coração". 
 
"If a man treats life artistically, his brain is his heart." 
 
Oscar Wilde, The picture of Dorian Gray - Ward, Lock & Bowden, 1895 - 334 páginas.