segunda-feira, 11 de março de 2024

"A Bucólica Margem" - Poema de Egipto Gonçalves

 
 
Armando Aguiar (Pintor português, n. 1964), Rio Douro, Porto e Vila Nova de Gaia, s.d.


A Bucólica Margem


Sento-me então a olhar o rio,
os pensamentos formam cardumes
que contra a corrente se insurgem
mas as águas são inexoráveis;
olhando-as, a superfície cintila,
propaga-se como se fossem notas
de um piano na garupa de um cavalo
que se dirige para o mar.

O Douro bebe as cores da cidade,
sobre elas eu abro o coração
em que te encontras, as colinas
emolduram as raízes que à terra
nos ligam. Para os meus olhos
é momento de pausa: as coisas
que interrogo não resistem à maré,
não dão respostas; perdem-se no mar
como tudo o que a memória não reteve.

Mas este rio
já foi longamente folheado, nele
escrevemos
o romance que nos deu uma casa,
nos cortou o cabelo, nos afastou
das rugas, nos entregou o azul
(tecido, nuvem, divã, janela...)
o voo das artérias, lugar do corpo,
portas que amanhecem, espelho
onde fazemos fluir a vida.
Acordes
da guitarra que forja o horizonte,
que guia o sinuoso voo das gaivotas
e acaricia a pele que rasga atalhos
no interior dos sonhos. Estarei
vivo enquanto assim me guardar
teu coração. E no seu lucilar,
esta água imita o fogo
que devora sombras e escombros,
libertando a asa que no sangue
respira. A foz está próxima,
mas o horizonte é o teu olhar.
No leitor do carro, a guitarra flexível
sublinha o que divago; os acordes
disparam,
encontram-me na trajetória do seu alvo.


Egito Gonçalves, A Ferida Amável,
Campo das Letras, 2000.

 

 
Armando Aguiar, Rio Douro, Porto e Vila Nova de Gaia, s.d.

«Uma ida ao Porto é sempre uma lição de portuguesismo, tanto mais rica quanto mais raramente lá se vai. É indispensável – claro! – um mínimo de contacto reiterado com esse lar da nação para nele vermos algumas das significações latentes que enriquecem a nossa consciência de práticas.» — Vitorino Nemésio
 

domingo, 10 de março de 2024

"Cantiga" - Poema de Manuel Bandeira


Inês Dourado (Pintora portuguesa, n. 1958), Ericeira, Portugal, 2019,
Aguarela sobre papel. 
 


Cantiga


Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.

Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d'alva
Rainha do mar.

Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.


Manuel Bandeira
, 
 
 

Inês Dourado, Carvoeiro Beach VII (Algarve, Portugal), 2020,
Óleo sobre Tela, 60x70x2 cm.

 
 
Poema do Beco
 
 
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
– O que eu vejo é o beco.
 

 Manuel Bandeira, 
 
 
Inês Dourado, Aldeia de Benagil (Lagoa, Algarve, Portugal), 2022,
Óleo sobre tela, 38 x 55 cm.
 

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes.
O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.


Bernardo Soares (Heterónimo de Fernando Pessoa)
Livro do Desassossego, fragmento 451, ed. Richard Zenith, Assírio & Alvim, 11ª ed.
 

sábado, 9 de março de 2024

"Penas" e "Fases da Vida" - Poemas de Fernando Caldeira


 
Gregorio Prieto (Pintor e desenhista espanhol, 1897-1992), Maniquí del pájaro, 1927,
Óleo sobre lienzo, 59.7 x 79.5 cm, Museo Gregorio Prieto.
 
 

Penas

Se eu soubesse que voando
alcançava o que desejo,
mandava fazer as asas,
que as penas são de sobejo

 Cant. Popul.

Como diferem das minhas
as penas das avezinhas,
que de leves, leva o ar!
As minhas pesam-me tanto,
que às vezes já nem  o pranto
lhes alivia o pesar.

O passarinho tem penas,
que em lindas tardes amenas
o levam por esses montes,
de colinas em colinas,
ou nas extensas campinas
a descobrir horizontes!

Com elas vive folgando;
tem penas apenas quando
alguma pena lhe cai;
mas a essa pena afaz-se,
entretanto, a outra nasce,
e tudo esquece e... lá vai.

E as minhas penas não caem
nem voam nunca, nem saem
comigo desta amargura!
Mostram-me apenas na vida
A estrada, já conhecida,
trilhada pelos sem ventura.

Passam dias, passam meses
passa o ano muitas vezes
sem que uma pena se vá!...
E, se uma vai, mais pequena,
ao depois nem vale a pena
porque mais penas me dá.

São bem felizes as aves!
como são leves, suaves,
as penas que Deus lhe deu!
Só as minhas pesam tanto!...
Ai! se tu soubesses quanto!...
Sabe-o Deus e sei-o eu.


Fernando Caldeira (1841-1894)
Em: A Vida elegante: O Jornal das Senhoras,
Ano: 1909 / Edição 00001


Gregorio Prieto, Los maniquíes, 1932, Óleo sobre lienzo, 191 x 193 cm.
Museo Fundación Gregorio Prieto



Fases da Vida

 
Abri meus olhos ao raiar da aurora
e parti. Veio o sol, e então, segui-a
a sombra, que eu julgava guiadora,
a minha própria sombra fugidia.

E foi subindo o sol; Ao meio dia,
escondeu-se-me aos pés a sombra; agora,
se volvo o olhar onde passei outrora,
vejo-a seguir-me, a sombra que eu seguia.

A gente é o sol de um dia; sobe, avança,
passa o zénite e vai na imensidade
apagar-se do mar, onde se lança.

E a vida é a própria sombra; meia idade,
somos nós que a seguimos, e é a Esperança;
depois segue-nos ela: é a Saudade.
 

Fernando Caldeira,
in A Circulatura do Quadrado,
Edições Unicepe, 2004. 
 

sexta-feira, 8 de março de 2024

"Cantiga de Amor" - Poema de Manuel Bandeira



Charmaine Olivia
 (Contemporary artist, born in Southern California, 1988),
 Marilyn Monroe (American actress, model and singer, 1926–1962).


Cantiga de Amor 


Mulheres neste mundo de meu Deus
Tenho visto muitas — grandes, pequenas,
Ruivas, castanhas, brancas e morenas.
E amei-as, por mal dos pecados meus!
Mas em parte alguma vi, ai de mim,
Nenhuma que fosse bonita assim!

Andei por São Paulo e pelo Ceará
(Não falo em Pernambuco, onde nasci)
Bahia, Minas, Belém do Pará...
De muito olhar de mulher já sofri!
Mas em parte alguma vi, ai de mim,
Nenhuma que fosse bonita assim!

Atravessei o mar e, no estrangeiro,
Em Paris, Basileia e nos Grisões,
Lugano, Gênova por derradeiro,
Vi mulheres de todas as nações.
Mas em parte alguma vi, ai de mim,
Nenhuma que fosse bonita assim!

Mulher bonita não falta, ai de mim!
Nenhuma porém, tão bonita assim!


Manuel Bandeira (1886–1968), Poesia completa e prosa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986 - p. 418-419.

 


Charmaine Olivia
, Secret Life of Marilyn Monroe, 2015.


Marilyn Monroe
 
 
Atriz norte-americana, e um dos grandes símbolos sexuais do cinema, nascida a 1 de junho de 1926, em Los Angeles, na Califórnia, e falecida a 5 de agosto de 1962, também na Califórnia. De seu nome verdadeiro Norma Jean Mortensen, viveu uma infância atribulada, com o pai a abandonar o lar e a mãe a sofrer problemas mentais. Educada num orfanato, casou-se aos 16 anos com um homem que lhe infligia maus tratos. Torna-se operária fabril e mais tarde modelo de pin-ups
Em 1946, é contratada pela 20th Century Fox como figurante, participando nessa condição em filmes como The Shocking Miss Pilgrim (1947), The Asphalt Jungle (Quando a Cidade Dorme, 1950), All About Eve (Eva, 1950) e Monkey Business (A Culpa Foi do Macaco, 1952). 
Foi Howard Hawks quem reparou no seu potencial, colocando-a como protagonista ao lado de Jane Russell na comédia Gentlemen Prefer Blondes (Os Homens Preferem as Louras, 1953). O filme é um sucesso retumbante, elevando Monroe à categoria de «diva loura» e de símbolo sexual. 
Depois de filmar o western River of No Return (Rio Sem Regresso, 1954), teve um casamento mediático com a estrela do basebol Joe Di Maggio, ligação que durou 18 meses. 
Filmou pela primeira vez sob a orientação de Billy Wilder em The Seven Year Itch (O Pecado Mora ao Lado, 1956), um grande êxito a nível internacional. Apostada em consagrar-se como atriz dramática, decide matricular-se no Actors Studio, tornando-se colega de Montgomery Clift, de quem se torna grande amiga.
Em Nova Iorque, conhecerá o dramaturgo Arthur Miller com quem se casará em finais de 1956. Com o seu contrato reforçado, protagoniza a comédia Bus Stop (Paragem de Autocarro, 1956) e The Prince and the Showgirl (O Príncipe e a Corista, 1957), mas o último falharia nas bilheteiras. Quase simultaneamente, a sua vida pessoal torna-se muito instável: o seu casamento com Miller estava a passar por uma crise, obrigando a atriz a refugiar-se no álcool e nas drogas. Será Billy Wilder quem a convencerá a interpretar aquele que seria o papel mais célebre da sua carreira: o de Sugar Kane, uma intérprete musical que sonha em casar com um milionário na comédia Some Like It Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959). Em seguida, contracenou com Yves Montand em Let's Make Love (Vamo-nos Amar, 1960).
Vítima de sucessivas depressões nervosas, a fragilidade da atriz começou a causar-lhe numerosos dissabores profissionais: durante as rodagens de The Misfits (Os Inadaptados, 1961), foram constantes as suas discussões com o realizador John Huston e Clark Gable, para além de numerosos atrasos. Paralelamente, circulavam boatos das suas ligações afetivas clandestinas com o presidente John Kennedy e com Robert Kennedy. 
No dia 5 de agosto de 1962, um mês depois de ter sido despedida por George Cukor das filmagens de Something's Got to Give (1962), a atriz foi encontrada inanimada na cama do seu apartamento. A autópsia revelou suicídio por ingestão de barbitúricos, mas a hipótese de crime ainda hoje é ventilada. (daqui)
 

quarta-feira, 6 de março de 2024

"Merina" - Poema de Cesário Verde



Bryce Cameron Liston
(American painter, b. 1965), A Winter's Tale.
 


Merina


Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gás dá noites de balada;

Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ingénua e delicada.


Cesário Verde
(1855 - 1886), Obra Completa,
Edição de Joel Serrão, Lisboa, Livros Horizonte, 1988, p. 122. 
 
 
Bryce Cameron Liston, Home Before Dark.
 

"Casaco é aquilo que a criança usa quando a mãe sente frio." 

Ambrose Bierce, citado em "Baby's First Year Journal:
A Day-To-Day Guide to Your Baby's Development ...‎
" - Página 168, 
A. Christine Harris - Chronicle Books, 1999.
 

domingo, 3 de março de 2024

"Ode à Pobreza" - Poema de Pablo Neruda


Émile Friant (Peintre, graveur, illustrateur et sculpteur naturaliste français, 1863 – 1932),
Les Buveurs ou Le Travail du lundi, 1884, Musée des Beaux-Arts de Nancy.


 Ode à Pobreza 


Quando eu nasci,
seguiste-me,
pobreza,
olhavas-me
através
das tábuas carcomidas
pelo agreste inverno.
Subitamente
eram os teus olhos
que espreitavam pelas frinchas.
As goteiras,
de noite,
repetiam
o teu nome e apelido
ou às vezes
o saleiro quebrado,
o fato roto,
os sapatos descosidos,
advertiam-me.
Ali estavas
espiando-me
com os teus dentes de caruncho,
com os teus olhos de pântano,
com a tua língua cinzenta
que corrompe
a roupa, a madeira,
os ossos e o sangue,
ali estavas,
procurando-me,
seguindo-me
pelas ruas
desde o meu nascimento.
Quando aluguei um pequeno
quarto, nos subúrbios,
sentada numa cadeira
esperava por mim
e ao desdobrar os lençóis
num obscuro hotel,
quando adolescente,
da rosa nua
não foi a sua fragrância o que senti,
mas somente o frio silvo
da tua boca.
Pobreza,
seguiste-me,
por quartéis e hospitais,
em tempo de paz e de guerra.
Quando adoeci bateram
à porta:
não era o médico, era
uma vez mais a pobreza que chegava.
Vi como atiravas os móveis
para a rua:
os homens
deixavam-nos cair como se fossem pedregulhos.
Tu, com execrável amor,
ias fazendo
dum amontoado de solitárias coisas
no meio da rua e à chuva,
um desmantelado trono
e olhando os pobres
levavas-me
o último prato transformando-o em diadema.

Agora,
sigo-te,
pobreza.
E assim foste implacável,
implacável sou.
Junto
de cada pobre
encontrar-me-ão cantando,
debaixo
de cada lençol
de sombrio hospital
no meu canto encontrarás.
Sigo-te,
pobreza,
vigio-te,
cerco-te,
disparo sobre ti,
isolo-te,
corto-te as unhas rentes,
quebro-te
os dentes que te restam.
Estou
em todas as partes:
no oceano com os pescadores,
na mina
os homens
ao limparem a fronte,
enxugando-se do negro suor,
encontram
os meus poemas.
Todos os dias saio
com a operária têxtil.
Tenho as mãos brancas
de dar o pão nas padarias.
Estejas onde estiveres,
pobreza,
o meu canto
estará cantando,
a minha vida
estará vivendo,
o meu sangue
estará lutando.
Arriarei
as tuas pálidas bandeiras
onde quer que se levantem.
Outrora outros poetas
te chamaram
santa,
veneraram o teu manto,
alimentaram-se de fumo
e desapareceram.
Mas
eu desafio-te,
com os duros versos te machuco o rosto,
embarco-te e desterro-te.
Eu e muitos mais,
expulsar-te-emos
da terra para a lua
onde ficarás fria
e encharcada
olhando com um só olho
o pão e os frutos
que cobrirão a terra
de amanhã.

 in,"Odes Elementares", 1954
Tradução de José Bento


sábado, 2 de março de 2024

"Poema de 28 de Maio ao contrário" - Jorge de Sena



Júlio Pomar
(Artista plástico/pintor português, 1926 - 2018), 
O almoço do trolha, c. 1946-50, óleo sobre tela, 120 x 150 cm.
Fundação Calouste Gulbenkian
 
 

Poema de 28 de Maio ao contrário


Gigante foi a luz que acesa se estendeu por sobre as
trevas de um povo prisioneiro.
Ninguém esperava que no primeiro impulso
de um movimento militar se abrissem todas as janelas
e todas as portas. Mas abriram-se e por elas a luz e
as vozes foram restituídas.
Todos agora, exército e povo, os militares e os políticos, e
quantos nunca pensaram que a política é coisa
de todos os dias ter de aprender-se a ver, a falar
e a ouvir, lá onde na caverna
só sombras de fantasmas existiam. 

Todos têm de aprender a governar e a governar-se na alma
e a fazer governo a liberdade e as vozes e o
direito de existir-se à luz do dia
como gente viva num país que é ela.
Todos têm de aprender que a liberdade não existe
apenas porque é dada, pois pode ser tirada, ou
apenas porque é conquistada, pois pode ser
licença em que não reste senão ela perder-se. Têm de
aprender que não pode ter-se num só dia
o que se perdeu em décadas. E que a Justiça
é a Liberdade que pensa mais nos outros que em si mesma.

Santa Bárbara, 28/5/1974

Jorge de Sena, "40 anos de Servidão"
Moraes Editores, Lisboa, 1979.
Prefácio de Mécia de Sena