terça-feira, 1 de abril de 2025

"Manhã de Abril" - Poema de Joaquim Namorado


Viggo Johansen (Danish painter and active member of the group of Skagen Painters, 1851-1935),
View of Tibirke Church, 1886.
 


Manhã de Abril


Olho o céu nas poças da rua
que a chuva de ontem deixou,
como pássaros verdes as primeiras folhas
empoleiram-se nos ramos enegrecidos a do inverno
e o sol entorna sobre o casario miserável
uma chuva de falso oiro.
Que raiva me dá...
Foi hoje a enterrar aquela miúda loura
que via brincar na rua
com as tranças apertadas nos laços vermelhos
— morressem antes os velhos
que da vida nada esperam,
já sem amor, já sem esperança,
roídos de chagas e da lepra dos dias.
que não morresse ninguém, valá!
mas ela...
levaram-lhe flores os outros meninos da rua,
iam contentes como para uma festa,
e a mãe atrás do caixão chorando,
e as folhas verdes
e as flores nos canteiros e nas janelas
como se florir fosse uma coisa natural e inevitável
e o velho mendigo cego estendendo a mão,
e a gente educada tirando o chapéu por hábito...

Que raiva me dá a Primavera sobre a dor do Mundo!

Joaquim Namorado
(1914–1986)


Viggo Johansen, Near Skagen Østerby after a Storm, 1885. Oil on canvas, 95 x 147 cm.
Skagens Museum, Skagen.
 

"Abril, frio e molhado, enche o celeiro e farta o gado."

(Provérbio)

sábado, 29 de março de 2025

"Declaração de amor em tempo de guerra" - Poema de Cecília Meireles


Alex Colville (Canadian painter and printmaker, 1920–2013), 
Soldier and Girl at Station, 1953.



Declaração de amor em tempo de guerra


Senhora, eu vos amarei numa alcova de seda,
entre mármores claros e altos ramos de rosas,
e cantarei por vós árias serenas
com luar e barcas, em finas águas melodiosas.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
andavam nos campos, agora.)

Para ver vossos olhos, acenderei as velas
que tornam suaves as pestanas e os diamantes.
Caminharão pelos meus dedos vossas pérolas,
— por minha alma, as areias destes límpidos instantes.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
começam a sofrer, agora.)

Estaremos tão sós, entre as compactas cortinas,
e tão graves serão nossos profundos espelhos
que poderei deixar as minhas lágrimas tranquilas
pelas colinas de cristal de vossos joelhos.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
estão sendo mortos, agora.)

Vós sois o meu cipreste, e a janela e a coluna
e a estátua que ficar, — com seu vestido de hera;
o pássaro a que um romano faz a última pergunta,
e a flor que vem na mão ressuscitada da primavera.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
apodrecem no campo, agora...)
 
 
Cecília Meireles
, in Obra Poética
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983.
 
 

sexta-feira, 28 de março de 2025

"Saudades não as quero" - Poema de Afonso Lopes Vieira


Henry Alexander (American painter from California, 1860–1894),
The Artist in his Studio.

Saudades não as quero


Bateram fui abrir era a saudade
vinha para falar-me a teu respeito
entrou com um sorriso de maldade
depois sentou-se à beira do meu leito
e quis que eu lhe contasse só a metade
das dores que trago dentro do meu peito.

Não mandes mais esta saudade
ouve os meus ais por caridade
ou eu então deixo esfriar esta paixão
amor podes mandar se for sincero
saudades isso não pois não as quero.

Bateram novamente era o ciúme
e eu mal me apercebi de que batera
trazia o mesmo ódio do costume
e todas as intrigas que lhe deram
e vinha sem um pranto ou um queixume
saber o que as saudades me fizeram.

Não mandes mais esta saudade,
ouve os meus ais por caridade,
ou eu então deixo esfriar esta paixão,
amor podes mandar se for sincero,
saudades isso não pois não as quero.


Afonso Lopes Vieira
, em "Antologia Poética",
Guimarães Editores - 1966.




Henry Alexander, In the Laboratory, ca. 1885–87.


"Tão fiel fui ao glorioso ofício, que perdi o sono e a saúde."


Dante Alighieri
, em 'Inferno'

 

quinta-feira, 27 de março de 2025

"Natureza morta" - Poema de Pagu (Patrícia Galvão)

 


Jan Davidsz de Heem (Dutch still life painter, 1606–1683/1684),
Vanitas Still life with Books, a Globe, a Skull, a Violin and a Fan, c. 1650.
Musée des Beaux-Arts de Rouen


Natureza morta 


Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro.
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, hein? a ave na parede
Mas conservaram os meus olhos
É verdade que eles estão parados
Como os meus dedos, na mesma frase.
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!
Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando
As crianças gritando,
Os homens morrendo
O tempo andando
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando,
O dinheiro caindo.
Os namorados passando, passeando,
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!

Procurei acender de novo o cigarro.
Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!
Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Se eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém...
Nem a presença dos corvos.


Pagu (Patrícia Rehder Galvão)
(Publicado com o pseudónimo Solange Sohl em 1948,
no Suplemento Literário do jornal Diário de São Paulo.)



Obras de arte de Jan Davidsz de Heem
(Natureza-morta)

Jan Davidsz de Heem, Still life with books and a lute, 1628, Rijksmuseum, Amsterdam.
 
 
Jan Davidsz de Heem, Vanitas still life with books, fruit and a flute, c. 1652.
Royal Museums of Fine Arts of Belgium
 
 
Jan Davidsz de Heem, A Table of Desserts, 1640, Musée du Louvre, Paris.
 
 
Jan Davidsz de Heem, Table, 1636 - 1650, Museo del Prado, Madrid.


Jan Davidsz de Heem, A Richly Laid Table with Parrots, c. 1650.


Jan Davidsz de Heem, Vase of Flowers, c. 1660. 
 

quarta-feira, 26 de março de 2025

"Minha Sombra" - Poema de Jorge de Lima



Édouard Vuillard
(French painter, decorative artist, and printmaker, 
1868–1940), Public Gardens - The two schoolboys, 1894, 
Royal Museums of Fine Arts of Belgium.
 

Minha Sombra


De manhã a minha sombra
com meu papagaio e o meu macaco
começam a me arremedar.

E quando eu saio
a minha sombra vai comigo
fazendo o que eu faço
seguindo os meus passos.

Depois é meio-dia.
E a minha sombra fica do tamanhinho
de quando eu era menino.

Depois é tardinha.
E a minha sombra tão comprida
brinca de pernas de pau.

Minha sombra, eu só queria
ter o humor que você tem,
ter a sua meninice,
ser igualzinho a você.

E de noite quando escrevo,
fazer como você faz,
como eu fazia em criança:

Minha sombra
você põe a sua mão
por baixo da minha mão,
vai cobrindo o rascunho dos meus poemas
sem saber ler e escrever.


Jorge de Lima
,
em 'Antologia Poética para a infância e a juventude',
 de Henriqueta Lisboa, Rio de Janeiro, 1961. 



Édouard Vuillard, The Garden of Vaucresson, 1920,
 Metropolitan Museum of Art, New York.


"O mundo é um belo livro, mas é pouco útil a quem não o sabe ler."

Carlo Goldoni
, "La Pamela", 1750. 
 
 

terça-feira, 25 de março de 2025

"Os países inexistentes" - Poema de Múcio Leão

 

Thomas Cole (English-born American artist and the founder of the Hudson River School 
art movement, 1801–1848), The Titan's Goblet, 1833,
 Metropolitan Museum of Art, New York.


Os países inexistentes


- Queres partir comigo para países muito distantes,
Para países que dormem,
Embalados por oceanos que ninguém conhece?

Oh! Vamos juntos! Vamos partir para esses meus mundos misteriosos!
Levar-te-ei a planícies brancas, cobertas de neve como as do Alaska.
Verás que há na altura um sol gelado, envolto na poeira nívea da neve.
E verás que um vento - um vento que uiva nos montes alvos -
Vem beijar teus cabelos cheirosos.

Levar-te-ei a montanhas encantadas, onde habitam dragões de olhos de fogo.
Verás que no céu as estrelas se desfazem,
Mandando raios doirados coroarem tua fronte serena.
Levar-te-ei às ilhas paradisíacas,
Que estão dormindo no ritmo das ondas mansas.
Lá as árvores cheias de sombras são feitas de humanas ternuras
E os pássaros que cantam têm uma voz límpida como violinos.

Levar-te-ei a esses mundos estranhos,
A esses mundos formosos que nunca ninguém viu.

E tu hás de repousar a cabeça no meu peito,
Deslumbrada pelos meus países inexistentes. 


Múcio Leão, in "Poesias", 1949.

segunda-feira, 24 de março de 2025

"Soneto do amor total" - Poema de Vinicius de Moraes


Franc-Lamy
(Peintre et graveur français, 1855 - 1919), Venice, 1911.



Soneto do amor total


Amo-te tanto, meu amor… não cante
O humano coração com mais verdade…
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.


Vinicius de Moraes
,
in 'O Operário em Construção'