sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

"Um mover de olhos brando e piedoso " - Poema de Luís de Camões


Nicolas de Largillière (French painter and draughtsman, 1656–1746),
The Beautiful Strasbourg Woman (La Belle Strasbourgeoise), 1703,
Musée des Beaux-Arts, Strasbourg.
 
 
 
Um mover de olhos brando e piedoso


Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento;

Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.


Luís de Camões, Sonetos 
 

Nicolas de Largillière, Self-portrait with family, c. 1710, Louvre Museum.
 
 
"Na arte a mão nunca pode executar algo superior ao que o coração pode inspirar."
 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

"Chuva e Sol" - Poema de Raimundo Correia



Norman Garstin
(Irish artist, teacher, art critic and journalist associated with the Newlyn School 
 of painters, 1847–1926), The Rain It Raineth Every Day, 1889, Penlee House.
 
 
 
Chuva e Sol 

 
Agrada à vista e à fantasia agrada
Ver-te, através do prisma de diamantes
Da chuva, assim ferida e atravessada
Do sol pelos venábulos radiantes...

Vais e molhas-te, embora os pés levantes:
– Par de pombos, que a ponta delicada
Dos bicos metem nágua e, doidejantes,
Bebem nos regos cheios da calçada...

Vais, e, apesar do guarda-chuva aberto,
Borrifando-te colmam-te as goteiras
De pérolas o manto mal coberto;

E estrelas mil cravejam-te, fagueiras,
Estrelas falsas, mas que assim de perto,
Rutilam tanto, como as verdadeiras...


Raimundo Correia, Versos e Versões, 1887.
In "Poesias completas". Org. pref. e notas Múcio Leão. 
São Paulo: Ed. Nacional, 1948.

 

Norman Garstin, A Steady Drizzle, Unknown date. Oil on canvas.


"... e eu imagino uma velhinha por trás da vidraça, jogando paciência com esta chuva tão sem pressa..." 


Mário Quintana
, in Poemas para a Infância.
Poesia Completa, RJ: Editora Nova Aguilar, 2005 
 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

"A poesia que desce ao poeta" - Poema de Múcio Leão


Johannes Vermeer also known as Jan Vermeer (Dutch painter, 1632–1675),
"
The Art of Painting" or "The Allegory of Painting Painter in his Studio", c. 1666–1668.
Kunsthistorisches Museum


A poesia que desce ao poeta

 
Poeta, ser estranho, ser enigmático entre os seres!
Vejo-o, isolado das cores, das formas e das ideias,
Isolado, nessa crepuscular solidão que o acompanha.

E é então que vejo descer sobre ele
Uma como sombra de celestiais eflúvios:
- A Poesia, a Poesia de inesperadas ressonâncias,
A grande Poesia, que é uma exalação indefinível,
Que é um som infinito, vindo de outras esferas,
Que é a comunicação miraculosa de outros seres e de outras regiões.


Múcio Leão
, in "Poesias", 1949.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

"Não nasci por acaso nestas pedras" - Poema de José Gomes Ferreira


Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), Porto, Avenida dos Aliados, s.d.


  Poema


(O Eugénio de Andrade espera-me num Café.
Atravesso as ruas do Porto – a cidade onde nasci – 
com os punhos cerrados de dor.) 


Não nasci por acaso nestas pedras
mas para aprender dureza,
lume excedido,
coragem de mãos lúcidas.

Aqui no avesso da construção dos tempos
a palavra liberdade
é menos secreta.

Anda nos olhos da rua
pega lanças aos gestos,
tira punhais das lágrimas,
conclui as manhãs.

E principalmente
não cheira a museu azedo
ou musgo embalado
pela chuva da boca dos mortos.

Começa nos cabelos das crianças
para me sentir mais nascido nestas pedras.

Porto
– cidade de luz de granito.

Tristeza de luz viril
com punhos de grito.


José Gomes Ferreira
,
"Daqui houve nome Portugal" - Antologia de verso e prosa sobre o Porto,
organizada e prefaciada por
Eugénio de Andrade,
Editorial Inova, 1968.
 


Mota Urgeiro, Mercado da Ribeira, Porto, s.d..
 
 
"O Porto ergue-se em anfiteatro sobre o esteiro do Douro e reclina-se no seu leito de granito. Guardador de três províncias e tendo nas mãos as chaves dos haveres delas, o seu aspeto é severo e altivo, como o de mordomo de casa abastada."
 
Alexandre Herculano (Escritor, historiador, jornalista e poeta português, 1810–1877)
 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

"Em uníssono" - Poema de Graça Pires



Honoré Daumier (French painter, sculptor, and printmaker, 1808–1879), The Emigrants
or The Fugitives, c. 1852–55. Oil on panel, 16.2 x 28.7 cm., Petit Palais, Paris



Em uníssono


Indagamos, em uníssono, o avesso dos dias
retalhados por mãos adversas,
para não nos equivocarmos
com o rosto deste mundo
em constante calafrio, em arriscada deriva.
Porque estes são tempos exasperantes
de perder as pátrias e as casas
e os pais e os irmãos e os amigos
e os nomes e a memória.
E nas imensas planícies enegrecidas
é desabrido o som dos que bradam
quando as crianças ensurdecem no silêncio.
A meia-haste, arvoramos a rugosidade
das cinzas e o rasgão do medo,
para não permanecermos alheios
à saturação dos que sangram,
dos que tombam, dos que resistem.


Graça Pires,
in Continuum: Antologia poética. 
 


CONTINUUM: antologia poética. Poética Edições, 2018.


Sinopse


"A transitoriedade do ser e das coisas marca o ritmo concreto da vida, na escrita que flui numa densa e intensa formulação. As linhas do poema elevam-se em versos sucessivos e coerentes, transformando a/s mão/s que escreve/m, exaltando o/s verso/s que continuam da página do poeta para a página do leitor. Esse Outro que transporta o poema para um outro tempo, o da leitura, da compreensão das imagens antes inscritas na folha em branco do poeta. É neste movimento imparável do tempo que o abismo da criação poética se instala e repara, permitindo ao/à autor/a não só a consciência de uma solidão maior, a do ato criador, mas também a da perda irreparável de tudo, a cada instante, de tudo o que escapa, que deixa de ser para voltar a ser, em mutação permanente."

Gisela Gracias Ramos Rosa (excerto do prefácio)
 
 
"Um outro sabor senti-o pela abrangência poética da obra, conseguida através da enorme diversidade de estilos e formas de a expressar, seja por texto, por pensamentos ou por poemas, bem como a multiplicidade de temáticas escolhidas, desde a poesia lírico-amorosa, passando pela poesia recorrendo ao conteúdo sensorial, na essência de emoções (visão, voz, cheiro, sede, toque) pela poesia referindo-se à própria poesia, aludindo a termos como palavras, poemas, poetas, até à chamada poesia do conhecimento. Sobre esta última gostaria de assinalar o conteúdo intelectual de alguns dos poemas, os quais embora expressos em formas de linguagem de algum modo complexas mas sempre elegantes, desafiam o leitor para um agradável exercício de intimidade reflexiva e interrogação com contornos filosóficos."

José Gabriel Duarte (excerto do posfácio)

domingo, 12 de janeiro de 2025

"Verso e Anverso" - Poema de Rui Knopfli



Nú Barreto
(Fotógrafo, pintor, ilustrador e aguarelista guineense, n. 1966),
 Estilhaços, 2015.


Verso e Anverso
 
 
Diria palavras altas como amor,
palavras lentas como ternura,
ou duráveis como amizade.

Desceu um véu de luto sobre o amarelo
esmaecido da savana, lá onde dormem
os corpos mutilados e onde cresta,
rente à terra, o sangue derramado.

Baixou sobre a serenidade das coisas
um sono obscuro e terrível.
Poluiu o teu sorriso, o meu desejo;
intercala os gestos e as vozes ciciadas.

Cerramos os olhos para a penumbra
donde brotam, nítidas, as imagens:
Há uma criança no fogo,
o pavor de um soluço estrangulado,
fulgurantes, rápidas chamas.

Direi palavras insuportáveis como morte.


Rui Knopfli, in "Memória Consentida:
20 anos de poesia 1959-1979"
, 1982.

 
Nú Barreto, Verrmelho (daqui)
 

"A arte é uma interpretação de sentimentos visionários com vocações perturbadoras das emoções" 
 
 Nú Barreto (daqui)
 
 
Nú Barreto (daqui)
 
O artista plástico Manuel Jerónimo Barreto da Costa Oliveira, conhecido como Nú Barreto, nasceu no ano 1966 em São Domingos, norte da Guiné-Bissau, país da Costa ocidental africana. Aos 21 anos parte para Paris, onde reside e trabalha. Considerado uma das principais figuras da senda africana contemporânea, suas obras constam de diversas coleções privadas e museus e já foi exibida em diversas exposições, individuais ou coletivas, mundo afora. Artista multidisciplinar apresenta sua arte de forma híbrida, combinado os mais diversos materiais e técnicas das diversas linguagens: desenho, fotografia, pintura e vídeo. Ele incorpora em sua estética a formas, símbolos e arquétipos das cores e motivos, com forte significado para denunciar a desumanização, a desvalorização do indivíduo, a miséria e o sofrimento que assola, não somente o continente africano, o mundo. (daqui)
 

sábado, 11 de janeiro de 2025

"A alma dos vinte anos" - Poema de Alberto de Oliveira

 

 
Madeleine Lemaire, Portrait de Colette Dumas (1860 - 1907), s.d.
(Fille d'Alexandre Dumas fils et épouse de Maurice Lippmann). 


A alma dos vinte anos


A alma dos meus vinte anos noutro dia
Senti volver-me ao peito, e pondo fora
A outra, a enferma, que lá dentro mora,
Ria em meus lábios, em meus olhos ria.

Achava-me ao teu lado então, Luzia,
E da idade que tens na mesma aurora;
A tudo o que já fui, tornava agora,
Tudo o que ora não sou, me renascia.

Ressenti da paixão primeira e ardente
A febre, ressurgiu-me o amor antigo
Com os seus desvairos e com os seus enganos...

Mas ah! quando te foste, novamente
A alma de hoje tornou a ser comigo,
E foi contigo a alma dos meus vinte anos. 


Alberto de Oliveira, Poesias, 4ª série, 1928.