quarta-feira, 6 de novembro de 2024

"Brincava a criança" - Poema de Fernando Pessoa


Gustave Jean Jacquet (French painter, 1846 - 1909),
The Wheelbarrow Ride, Private collection.



Brincava a criança



Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincando
E disse, eu sou dois!

Há um a brincar
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver.

Estou por trás de mim
Mas se volto a cabeça
Não era o que eu queria
A volta só é essa...

O outro menino
Não tem pés nem mãos
Nem é pequenino
Não tem mãe ou irmãos.

E havia comigo
Por trás de onde eu estou,
Mas se volto a cabeça
Já não sei o que sou.

E o tal que eu cá tenho
E sente comigo,
Nem pai, nem padrinho,
Nem corpo ou amigo,

Tem alma cá dentro
Está a ver-me sem ver,
E o carro de bois
Começa a parecer. 

5-12-1927 

Fernando Pessoa
, Poesias Inéditas (1919-1930).
(Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.)
 Lisboa: Ática, 1956
 

terça-feira, 5 de novembro de 2024

"Aula de leitura" - Poema de Ricardo Azevedo



Madeleine Lemaire (Peintre, illustratrice et salonnière française, 18451928),
 Portrait of a girl with dog, s.d.



Aula de leitura



A leitura é muito mais
do que decifrar palavras.
Quem quiser parar pra ver
pode até se surpreender:

vai ler nas folhas do chão,
se é outono ou se é verão;

nas ondas soltas do mar,
se é hora de navegar;

e no jeito da pessoa,
se trabalha ou se é à-toa;

na cara do lutador,
quando está sentindo dor;

vai ler na casa de alguém
o gosto que o dono tem;

e no pelo do cachorro,
se é melhor gritar socorro;

e na cinza da fumaça,
o tamanho da desgraça;

e no tom que sopra o vento,
se corre o barco ou vai lento;

também na cor da fruta,
e no cheiro da comida,

e no ronco do motor,
e nos dentes do cavalo,

e na pele da pessoa,
e no brilho do sorriso,

vai ler nas nuvens do céu,
vai ler na palma da mão,

vai ler até nas estrelas
e no som do coração.

Uma arte que dá medo
é a de ler um olhar,
pois os olhos têm segredos
difíceis de decifrar.


Ricardo Azevedo,
do livro "Dezenove poemas desengonçados",
Ática, 1997.
 
 
Thalia Flora-Karavia (Greek artist, 1871–1960), Boy reading, 1906.
 
 
Livro

"O livro é um lugar de papel e dentro dele existe sempre uma paisagem. O leitor abre o livro, vai lendo, lendo e, quando vê, já está mergulhado na paisagem. Pensando bem, ler é como viajar para outro universo sem sair de casa. Caminhando dentro do livro, o leitor vai conhecer personagens e lugares, participar de aventuras, desvendar segredos, ficar encantado, entrar em contacto com opiniões diferentes das suas, sentir medo, acreditar em sonhos, chorar, dar gargalhadas, querer fugir e, às vezes, até sentir vontade de dar um beijinho na princesa. Tudo é mentira. Ao mesmo tempo, tudo é verdade, tanto que após a viagem, que alguns chamam leitura, o leitor, se tiver sorte, pode ficar compreendendo um pouco melhor sua própria vida, as outras pessoas e as coisas do mundo." — Ricardo Azevedo

 

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

"Uma prosa sobre os meus gatos" - Poema de Manuel António Pina



Henriëtte Ronner-Knip (Dutch-Belgian artist, 1821–1909), Kitten, 1896, Teylers Museum.



Uma prosa sobre os meus gatos


Perguntaram-me um dia destes
ao telefone
por que não escrevia
poesia (ao menos um poema)
sobre os meus gatos;
mas quem se interessaria
pelos meus gatos,
cuja única evidência
é serem meus (digamos assim)
e serem gatos
(coisa vasta, mas que acontece
a todos os da sua espécie)?
Este poderia
(talvez) ser um tema
(talvez até um tema nobre),
mas um tema não chega para um poema
nem sequer para um poema sobre;
porque é o poema o tema,
forma apenas.
Depois, os meus gatos
escapam de mais à poesia,
ou de menos, o que vai dar ao mesmo,
são muito longe
ou muito perto,
e o poema precisa do tempo certo
de onde possa, como o gato, dar o salto;
o poema que fizesse
faria deles gatos abstratos,
literários, gatos-palavras,
desprezível comércio de que não me orgulharia
(embora a eles tanto lhes desse).
Por fim, não existem «os meus gatos»,
existem uns tantos gatos-gatos,
um gato, outro gato, outro gato,
que por um expediente singular
(que, aliás, também absolutamente lhes desinteressa)
me é dado nomear e adjetivar,
isto é, ocultar,
tendo assim uns gatos em minha casa
e outros na minha cabeça.
Ora só os da cabeça alcançaria
(se alcançasse) o duvidoso processo da poesia.
Fiquei-me por isso por uma prosa,
e mesmo assim excessivamente corrida e judiciosa.
 

Henriëtte Ronner-Knip, Cat at Play, c. 18601878, Rijksmuseum.
 

"Quando eu brinco com meu gato, quem sabe se eu não sou mais um passatempo para ele do que ele é para mim?"

Michel de Montaigne
, Ensaios, 1580
 
 

domingo, 3 de novembro de 2024

"Últimas Disposições do H.M.E." - Poema de Cristovam Pavia



Artur Franco (Artista plástico português, n. 1950)



Últimas Disposições do H.M.E


Para começar tirem-me este trapo da cara, que faz cócegas,
e amortalhem nele o meu gato e enterrem-no
ali onde era o meu jardim cromático.

Levem a coroa de latão de cima do meu peito
e atirem-na às estátuas erguidas no entulho,
e ofereçam os laços às putas, para que com eles se enfeitem.

Rezem as orações a um telefone antiquado e sem fio
ou embrulhem-nas num lenço de assoar cheio de farelos
para os estúpidos peixes do charco.

O Bispo que fique em casa e se emborrache,
deem-lhe uma garrafa de rum
(o sermão vai fazer-lhe sede).

E deixem-me em paz com lápides e chapéus altos!
Com o belo basalto pavimentem uma viela
onde ninguém more,
uma ruazinha para pássaros.

Na minha mala há muito papel amarelo para o meu primo miúdo
fazer com ele avionettes que hão de voar, bonitas, da ponte
e ir mergulhar no rio.

O mais que fica (umas cuecas, um isqueiro, uma linda opala
e um despertador) isso é para oferecer a Calístenes, o trapeiro,
com a devida gorjeta.

Quanto à ressurreição da carne, entretanto, e à vida eterna,
dessas coisas trato eu, se estão de acordo:
É cá comigo, não acham? Então, adeus!

Na banca de cabeceira há ainda alguns cigarros.
 
1956

Cristóvam Pavia ou Cristovam Pavia,
pseudónimo de Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho
 

sábado, 2 de novembro de 2024

"A solidão e sua porta" - Poema de Carlos Pena Filho


Georg Scholz (German painter, member of the New Objectivity movement, 1890 –1945),
Self-Portrait in front of an Advertising Column, 1926.
 


A solidão e sua porta

A Francisco Brennand

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.


 Carlos Pena Filho, in "Livro Geral", 1959.
 
 
Georg Scholz, Newspaper Carriers (Work Disgraces), 1921.
 

"Considero como uma das felicidades da minha vida não escrever nos jornais; isto prejudica a minha bolsa, mas faz bem à minha consciência - que é o principal".


Gustave Flaubert
- Lettres inédites à la Princesse Mathilde - Página 15,
Louis Conard, 1927 - 236 páginas.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

"Telegrama" - Poema de Rui Knopfli


Herbert James Gunn (Scottish landscape and portrait painter, 1893–1964), Portrait of
Agnes Catherine Maitlan
(1850–1906), principal of Somerville College, Oxford.


Telegrama


Ao longo destes anos todos
nada temos dito - meia dúzia
de palavras trocadas para o ofício
difícil da vida diária
e quantas delas proferidas com azedume.
Não te roubou, a brancura dos cabelos,
a doçura que nos teus olhos mais
se acentua.
Mãe,
este silêncio anda cheio de ternura.


Rui Knopfli, Obra Poética, 2003


domingo, 27 de outubro de 2024

"Poeta" - Poema de Francisco Bugalho

 

 Johannes Gumpp (Peintre autrichien, 1626–1728), Autoportrait, 1646
Premier exemple de triple autoportrait dans la peinture. Collection Privée. 
 
 

Poeta 
 
Poeta, a construíres sonhos contraditórios!
Tu tens na vida uns ideais burgueses
Que não te satisfazem!

Poeta, tu desejas
Misérias e reveses
Que te façam cantar.
E amas o conforto,
E gostas de jantar!...

Poeta, sempre em luta vã contigo,
— Que sofres de já ser aquilo que não és,
Que sofres de não ser aquilo que queres ser...

Poeta, é já bem grande o teu castigo.
É preciso viver. 
in "Canções de Entre Céu e Terra"