sexta-feira, 18 de outubro de 2024

"A Meus Irmãos" - Poema de Sebastião da Gama

 
William-Adolphe Bouguereau (French painter, 1825-1905),
L'Orage (The Storm), 1874.
 


A Meus Irmãos


Batam-me à porta
os que andam lá por fora, à neve;
batam
os que tiverem frio ou sede;
os que sintam saudades de um carinho;
os desprezados;
os que há muito não vêem uma flor
e encontram só poeira no caminho;
os que não amam já nem já os ama
ninguém;
os esquecidos de como se sorri;
os que não têm Mãe...

Batam-me à porta os Desgraçados,
os que têm os dedos calejados
dos dedos ásperos da Miséria, 
os que travam desordens nas tavernas
e brincam às facadas,
os que não têm abrigo nem Amigo,
os que o Destino escarrou,
os que não foram crianças,
os que nasceram num bordel
e por quem passam todos sem olhar.

Batei à minha porta, Irmãos,
entrai,
que eu tenho Amor pra vos dar...

E se eu também bater
(que eu também choro
muitas vezes, lá por fora;
também amargo tristezas;
que eu também sou Desgraçado)...
Pois se eu bater,
vinde logo depressa abrir-me a porta;
aquecei-me no lume;
dai-me do pão que eu parti
e do Amor que vos dei...

Deixai-me estar entre vós
como se fosse um de vós,
que eu também sou Desgraçado...

Ah! se eu bater
(mas é preciso que eu possa
ter força ainda nas mãos),
por Deus abri a porta, meus irmãos,
como se a casa fora vossa!... 


Sebastião da Gama, in Serra-Mãe, 1945
 
 
 William-Adolphe Bouguereau, Charity or The Indigent Family, 1865
 
Richmond Art Museum
 
 
"Que a sua caridade comece no lar, mas não fique circunscrita ao mesmo."

"Charity begins at home, but it does not end there."

Henry Martin (1781 - 1812) citado em "A memoir of the Rev. Henry Martyn: late fellow of St. John's College, 
Cambridge and Chaplain to the honorable East India Company". Página 436,
 John Sargent - 1832 - Published by Perkins & Marvin, 467 páginas.
 

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

"No leito fundo" - Poema de Ivan Junqueira



Edward Cucuel
(American-born painter who lived and worked in Germany, 1879–1954),
Frühlingsgarten in Starnberg, c. 1920.



No leito fundo


No leito fundo em que descansas,
em meio às larvas e aos livores,
longe do mundo e dos terrores
que te infundia o aço das lanças;

longe dos reis e dos senhores
que te esqueceram nas andanças,
longe das taças e das danças,
e dos feéricos rumores;

longe das cálidas crianças
que ateavam fogo aos corredores
e se expandiam, quais vapores,
entre as alfaias e as faianças

de tua herdade, cujas flores
eram fatídicas e mansas,
mas que se abriam, fluidas tranças,
quando as tangiam teus pastores;

longe do fel, do horror, das dores,
é que recolho essas lembranças
e as deito agora, já sem cores,
no leito fundo em que descansas.


Ivan Junqueira
, in "A sagração dos ossos".
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.



Edward Cucuel, Blausee, 1920.
 
 
"Com os dias acontece o mesmo que com as idades da vida. Nenhum dá o bastante de si, nenhum é suficientemente bom, porque cada um tem o seu tormento ou, pelo menos, a sua imperfeição. Mas, se os virmos em conjunto, veremos neles um grande caudal de vida e alegria."
 
 

"De amor nada mais resta que um outubro" - Poema de Natália Correia


Viggo Langer (Danish painter, 1860-1942), Windswept landscape near Virum, October, 1900.
 

 
De amor nada mais resta que um outubro

 
De amor nada mais resta que um outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem. 


Natália Correia, in "Poesia Completa"
Publicações Dom Quixote, 1999.
 

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

"Poema" - Cristovam Pavia


Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), Azenhas do Mar, s.d.
 

 Poema


Súbitos mergulhadores descendo nas águas inimigas
Com os olhos fitos e os peitos esmagados,
Descendo devagar, ao som lento de segundos vertiginosos como séculos,
Todos nós vos acompanhamos e juntamos todas as nossas forças na mesma meditação.
Aqui, da terra firme,
Entre nuvens e terra,
Entre o suor e o orvalho,
Esperamos o termo com todas as nossas forças.
E sabereis a nossa mensagem:
Só há saída pelo fundo.


Cristóvam Pavia ou Cristovam Pavia,
pseudónimo de Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho

 

terça-feira, 15 de outubro de 2024

"Soneto Oco" - Poema de Carlos Pena Filho



Pedro Weingärtner (Pintor, desenhista e gravurista brasileiro, 1853 –1929),
 "O notário", 1892. Coleção particular.



Soneto Oco


Neste papel levanta-se um soneto,
de lembranças antigas sustentado,
pássaro de museu, bicho empalhado,
madeira apodrecida de coreto.

De tempo e tempo e tempo alimentado,
sendo em fraco metal, agora é preto.
E talvez seja apenas um soneto
de si mesmo nascido e organizado.

Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado
e nem me lembro quando apareceu.

Lembranças são lembranças, mesmo pobres,
olha pois este jogo de exilado
e vê se entre as lembranças te descobres.


Carlos Pena Filho, "Livro Geral", 1959
 
 
Pedro Weingärtner, "Remorso", 1902

 
"Remorso" (1902) é uma pintura de Pedro Weingärtner inserida no conjunto elaborado pelo artista acerca da Revolução Federalista
O pintor mostra um descampado onde se levantam várias cruzes, num ambiente que devia ter impressionado pela desolação e o que de factos dolorosos evocava.
Ali devia ter havido um sangrento recontro e após a peleja várias cruzes ficaram a assinalar as sepulturas dos vencidos. O homem de cabelo revolto que está ali, ajoelhado diante de uma sepultura, sobre a qual acendeu várias velas, veio trazido pelo remorso. Sobrevivente da luta, despojara dos valores que trazia o cadáver de um combatente que sucumbira e retornou ao antigo campo de batalha pedir perdão a Deus."
 
 Fonte: Pedro Weingärtner 1853-1929: Um Artista Entre o Velho e o Novo Mundo

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

"O tal prazer da escrita" - Texto de Eugénio Lisboa

 

Nikolai Ge (Russian painter, 1831–1894), Leo Tolstoy, 1882.
 

O tal prazer da escrita

 
A escrita é muitas coisas mas é também uma forma de salvação: ela descobre, ela acicata a memória, fecha-nos às aflições do momento, mergulhando-nos num universo prodigioso, escudado e inacessível às turbulências exteriores.

E cura-nos, pela alegria que nos dá o encontrar as palavras certas para exprimir o inefável.

A escrita é a melhor arma de defesa e de ataque de que dispomos. Nenhuma nos defende tão bem de uma ferida ou faz, nos outros, uma ferida tão perene.

A escrita foi inventada por alguém que precisava muito dela, para registar informações. Assim, começou por ser útil e passou a ser agonicamente necessária.

Escrevo, logo existo.
Mas também: escrevo, logo não sofro.

Quando escrevo, falo de um sofrimento que já foi, mas que deixa de o ser, no momento em que o escrevo. A funda alegria de o escrever mata o sofrimento que já se sentiu, mas se apaga ante o fulgor da escrita.

Como dizia Montherlant, o escritor é aquele ser peculiar, que sofre, não sofrendo.

O Camões que escreveu o “Alma minha” não sentia, no momento em que a invocava, saudades da morta, sua amada. O que ele sentia, no momento da escrita, era a alegria de escrever uma saudade, que sentira, antes de a escrever, mas que não podia sentir, no momento em que a escrevia.

O escritor é um monstro que mata, sem escrúpulos, no momento de o celebrar, o mais profundo sentimento que antes o afligira, para melhor o poder glosar, com os utensílios da sua arte.

A alegria de escrever, o tal prazer da escrita tem muito de inumano.

O grande escritor é, na sociedade em que vive, um suspeito a vigiar, porque pode ser perigoso. Por isso, o escritor Tonio Kröger, da famosa novela de Thomas Mann, ao regressar um dia, no tarde da sua vida, coberto de glória, à sua terra natal, torna-se suspeito, aos olhos da polícia local, que o toma por um malfeitor…

Não nos esqueçamos de que o grande William Faulkner declarou um dia que seria capaz de matar meia dúzia de velhinhas, se isso lhe permitisse escrever a belíssima ODE A UMA URNA GREGA, do poeta John Keats.

Um poeta é capaz de tudo, mesmo de vender a alma ao diabo, para acertar um verso ou colocar uma vírgula no lugar certo.

Quem não compreende isto não compreende nada deste ofício nem dos seus oficiantes.

 
 
Eugénio Lisboa (daqui)
 

Eugénio Lisboa, escritor e engenheiro português nasceu a 25 de maio de 1930, em Lourenço Marques (atual Maputo), e morreu a 9 de abril de 2024 vítima de doença oncológica.

Colaborou em diversos jornais e revistas e foi autor de programas radiofónicos de divulgação de teatro.

Dedicou-se ao estudo da literatura portuguesa e particularmente do Neorrealismo, tendo publicado, entre outros títulos, José Régio - A Obra e o Homem (1976), O Segundo Modernismo em Portugal (1977) e Poesia Portuguesa: do "Orpheu" ao Neorrealismo (1980).

Ocupou ainda o cargo de adido cultural da Embaixada de Portugal em Londres durante dezassete anos seguidos, entre 1978 e 1995.

Usou os pseudónimos literários Armando Vieira de Sá, John Land e Lapiro da Fonseca devido à censura do Estado Novo. (daqui)

domingo, 13 de outubro de 2024

"Tempestade" - Poema de Henriqueta Lisboa


Donald Zolan (American painter, 1937 - 2009)
 
 

Tempestade


– Menino, vem para dentro,
olha a chuva lá na serra,
olha como vem o vento!

– Ah, como a chuva é bonita
e como o vento é valente!

– Não sejas doido, menino,
esse vento te carrega,
essa chuva te derrete!

– Eu não sou feito de açúcar
para derreter na chuva.
Eu tenho força nas pernas
para lutar contra o vento!

E enquanto o vento soprava
e enquanto a chuva caía,
que nem um pinto molhado,
teimoso como ele só:

– Gosto de chuva com vento,
gosto de vento com chuva!


Henriqueta Lisboa
, in Lírica, 1958.
 

Donald Zolan, Rainy Day Pal., s.d.
 
 
"Se chove, tenho saudades do sol; se faz calor, tenho saudades da chuva."
 
José Lins do Rego, em dezembro de 1947; citado em "O moleque Ricardo: romance‎"
Página xiv, de José Lins do Rêgo - 1973 - 213 páginas.