segunda-feira, 7 de abril de 2025

"Com a tua letra" - Poema de Fernando Assis Pacheco



Fritz Zuber-Buhler (Swiss painter, 1822–1896), The Poetess (La Poétesse), 1880. 
 
 

Com a tua letra


Fala-se de amor para falar de muitas coisas
que entretanto nos sucede.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.
 
 Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
 
 Quer dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não para.

Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
 Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
 
 Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
 Porque tudo se escreve com a tua letra. 


Fernando Assis Pacheco, in "A Musa Irregular"
(Antologia poética), 1991.
 

domingo, 6 de abril de 2025

"As crianças doentes" - Poema de A. M. Pires Cabral


 
Anna Ancher (Danish artist associated with the Skagen Painters, 1859–1935),
En vaccination, 1899, Skagens Museum.
 
 
As crianças doentes

I

As crianças doentes estão ao colo das mães
na sala de espera, amortecidas
como flores num vaso a que não se muda a água
há muito tempo
ou uma daquelas revistas cuja capa,
de tanto folheadas, se vai esfarrapando.

Soltam breves vagidos onde é possível ouvir
não só a dor, mas também
o quanto estão surpresas por estarem ali,
em vez de em sua casa ou num bosque.

II

As crianças doentes ao colo das mães
pesam mais:
trazem disseminado pelo corpo
o peso excedentário, intruso da doença.

As mães falam desse peso com as outras mães,
comparam entre si os pesos que carregam,
suspiram, acarinham, aconchegam a roupa
das crianças doentes.

III

Na verdade, as crianças doentes
não estão ao colo das mães.

Estão no rosto das mães, vincadas nele
como as mascarras de zarcão no rosto
de um palhaço de circo.

IV

Quando morrem, as crianças doentes
passam a chamar-se anjinhos e são dadas à terra
em pequenos ataúdes brancos.

Porque se acredita
que o branco se dissolve menos
na escuridão do novo ambiente,
conserva intacta a candura em que morreram.

(Porque morrem as crianças doentes?)


A. M. Pires Cabral, em Frentes de Fogo.
Lisboa: Tinta-da- China, 2019.
 

sábado, 5 de abril de 2025

"Infância" - Poema de Henriqueta Lisboa

 


Fanny Fleury
(French painter, 1846–1923), Sleeping Baby (Bébé dort), 1884.


Infância 


E volta sempre a infância
com suas íntimas, fundas amarguras.
Oh! por que não esquecer
as amarguras
e somente lembrar o que foi suave
ao nosso coração de seis anos?

A misteriosa infância
ficou naquele quarto em desordem,
nos soluços de nossa mãe
junto ao leito onde arqueja uma criança;

nos sobrecenhos de nosso pai
examinando o termómetro: a febre subiu;
e no beijo de despedida à irmãzinha
à hora mais fria da madrugada.

A infância melancólica
ficou naqueles longos dias iguais,
a olhar o rio no quintal horas inteiras,
a ouvir o gemido dos bambus verde-negros
em luta sempre contra as ventanias!

A infância inquieta
ficou no medo da noite
quando a lamparina vacilava mortiça
e ao derredor tudo crescia escuro, escuro...

A menininha ríspida
nunca disse a ninguém que tinha medo,
porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,
Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida
— batendo, batendo assombrado! 


Henriqueta Lisboa, in "Prisioneira da noite", 1941.


Fanny Fleury, The Lesson (La Leçon), 1880.


"Não é saudade, porque eu tenho agora a minha infância mais do que enquanto ela decorria..."

Clarice Lispector
, 'Perto do Coração Selvagem', 1943. 

terça-feira, 1 de abril de 2025

"Manhã de Abril" - Poema de Joaquim Namorado


Viggo Johansen (Danish painter and active member of the group of Skagen Painters, 1851-1935),
View of Tibirke Church, 1886.
 


Manhã de Abril


Olho o céu nas poças da rua
que a chuva de ontem deixou,
como pássaros verdes as primeiras folhas
empoleiram-se nos ramos enegrecidos a do inverno
e o sol entorna sobre o casario miserável
uma chuva de falso oiro.
Que raiva me dá...
Foi hoje a enterrar aquela miúda loura
que via brincar na rua
com as tranças apertadas nos laços vermelhos
— morressem antes os velhos
que da vida nada esperam,
já sem amor, já sem esperança,
roídos de chagas e da lepra dos dias.
que não morresse ninguém, valá!
mas ela...
levaram-lhe flores os outros meninos da rua,
iam contentes como para uma festa,
e a mãe atrás do caixão chorando,
e as folhas verdes
e as flores nos canteiros e nas janelas
como se florir fosse uma coisa natural e inevitável
e o velho mendigo cego estendendo a mão,
e a gente educada tirando o chapéu por hábito...

Que raiva me dá a Primavera sobre a dor do Mundo!

Joaquim Namorado
(1914–1986)


Viggo Johansen, Near Skagen Østerby after a Storm, 1885. Oil on canvas, 95 x 147 cm.
Skagens Museum, Skagen.
 

"Abril, frio e molhado, enche o celeiro e farta o gado."

(Provérbio)

sábado, 29 de março de 2025

"Declaração de amor em tempo de guerra" - Poema de Cecília Meireles


Alex Colville (Canadian painter and printmaker, 1920–2013), 
Soldier and Girl at Station, 1953.



Declaração de amor em tempo de guerra


Senhora, eu vos amarei numa alcova de seda,
entre mármores claros e altos ramos de rosas,
e cantarei por vós árias serenas
com luar e barcas, em finas águas melodiosas.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
andavam nos campos, agora.)

Para ver vossos olhos, acenderei as velas
que tornam suaves as pestanas e os diamantes.
Caminharão pelos meus dedos vossas pérolas,
— por minha alma, as areias destes límpidos instantes.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
começam a sofrer, agora.)

Estaremos tão sós, entre as compactas cortinas,
e tão graves serão nossos profundos espelhos
que poderei deixar as minhas lágrimas tranquilas
pelas colinas de cristal de vossos joelhos.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
estão sendo mortos, agora.)

Vós sois o meu cipreste, e a janela e a coluna
e a estátua que ficar, — com seu vestido de hera;
o pássaro a que um romano faz a última pergunta,
e a flor que vem na mão ressuscitada da primavera.

(Na minha terra, os homens, Senhora,
apodrecem no campo, agora...)
 
 
Cecília Meireles
, in Obra Poética
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983.
 
 

sexta-feira, 28 de março de 2025

"Saudades não as quero" - Poema de Afonso Lopes Vieira


Henry Alexander (American painter from California, 1860–1894),
The Artist in his Studio.

Saudades não as quero


Bateram fui abrir era a saudade
vinha para falar-me a teu respeito
entrou com um sorriso de maldade
depois sentou-se à beira do meu leito
e quis que eu lhe contasse só a metade
das dores que trago dentro do meu peito.

Não mandes mais esta saudade
ouve os meus ais por caridade
ou eu então deixo esfriar esta paixão
amor podes mandar se for sincero
saudades isso não pois não as quero.

Bateram novamente era o ciúme
e eu mal me apercebi de que batera
trazia o mesmo ódio do costume
e todas as intrigas que lhe deram
e vinha sem um pranto ou um queixume
saber o que as saudades me fizeram.

Não mandes mais esta saudade,
ouve os meus ais por caridade,
ou eu então deixo esfriar esta paixão,
amor podes mandar se for sincero,
saudades isso não pois não as quero.


Afonso Lopes Vieira
, em "Antologia Poética",
Guimarães Editores - 1966.




Henry Alexander, In the Laboratory, ca. 1885–87.


"Tão fiel fui ao glorioso ofício, que perdi o sono e a saúde."


Dante Alighieri
, em 'Inferno'

 

quinta-feira, 27 de março de 2025

"Natureza morta" - Poema de Pagu (Patrícia Galvão)

 


Jan Davidsz de Heem (Dutch still life painter, 1606–1683/1684),
Vanitas Still life with Books, a Globe, a Skull, a Violin and a Fan, c. 1650.
Musée des Beaux-Arts de Rouen


Natureza morta 


Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro.
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, hein? a ave na parede
Mas conservaram os meus olhos
É verdade que eles estão parados
Como os meus dedos, na mesma frase.
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!
Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando
As crianças gritando,
Os homens morrendo
O tempo andando
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando,
O dinheiro caindo.
Os namorados passando, passeando,
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!

Procurei acender de novo o cigarro.
Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!
Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Se eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém...
Nem a presença dos corvos.


Pagu (Patrícia Rehder Galvão)
(Publicado com o pseudónimo Solange Sohl em 1948,
no Suplemento Literário do jornal Diário de São Paulo.)



Obras de arte de Jan Davidsz de Heem
(Natureza-morta)

Jan Davidsz de Heem, Still life with books and a lute, 1628, Rijksmuseum, Amsterdam.
 
 
Jan Davidsz de Heem, Vanitas still life with books, fruit and a flute, c. 1652.
Royal Museums of Fine Arts of Belgium
 
 
Jan Davidsz de Heem, A Table of Desserts, 1640, Musée du Louvre, Paris.
 
 
Jan Davidsz de Heem, Table, 1636 - 1650, Museo del Prado, Madrid.


Jan Davidsz de Heem, A Richly Laid Table with Parrots, c. 1650.


Jan Davidsz de Heem, Vase of Flowers, c. 1660.