A
escrita é muitas coisas mas é também uma forma de salvação: ela
descobre, ela acicata a memória, fecha-nos às aflições do momento,
mergulhando-nos num universo prodigioso, escudado e inacessível às
turbulências exteriores.
E cura-nos, pela alegria que nos dá o encontrar as palavras certas para exprimir o inefável.
A
escrita é a melhor arma de defesa e de ataque de que dispomos. Nenhuma
nos defende tão bem de uma ferida ou faz, nos outros, uma ferida tão
perene.
A escrita foi inventada por alguém que precisava muito
dela, para registar informações. Assim, começou por ser útil e passou a
ser agonicamente necessária.
Escrevo, logo existo.
Mas também: escrevo, logo não sofro.
Quando
escrevo, falo de um sofrimento que já foi, mas que deixa de o ser, no
momento em que o escrevo. A funda alegria de o escrever mata o
sofrimento que já se sentiu, mas se apaga ante o fulgor da escrita.
Como dizia Montherlant, o escritor é aquele ser peculiar, que sofre, não sofrendo.
O
Camões que escreveu o “Alma minha” não sentia, no momento em que a
invocava, saudades da morta, sua amada. O que ele sentia, no momento da
escrita, era a alegria de escrever uma saudade, que sentira, antes de a
escrever, mas que não podia sentir, no momento em que a escrevia.
O
escritor é um monstro que mata, sem escrúpulos, no momento de o
celebrar, o mais profundo sentimento que antes o afligira, para melhor o
poder glosar, com os utensílios da sua arte.
A alegria de escrever, o tal prazer da escrita tem muito de inumano.
O
grande escritor é, na sociedade em que vive, um suspeito a vigiar,
porque pode ser perigoso. Por isso, o escritor Tonio Kröger, da famosa
novela de Thomas Mann, ao regressar um dia, no tarde da sua vida,
coberto de glória, à sua terra natal, torna-se suspeito, aos olhos da
polícia local, que o toma por um malfeitor…
Não nos esqueçamos
de que o grande William Faulkner declarou um dia que seria capaz de
matar meia dúzia de velhinhas, se isso lhe permitisse escrever a
belíssima ODE A UMA URNA GREGA, do poeta John Keats.
Um poeta é capaz de tudo, mesmo de vender a alma ao diabo, para acertar um verso ou colocar uma vírgula no lugar certo.
Quem não compreende isto não compreende nada deste ofício nem dos seus oficiantes.
Eugénio Lisboa, escritor e engenheiro português nasceu a 25 de maio de 1930, em Lourenço Marques (atual Maputo), e morreu a 9 de abril de 2024 vítima de doença oncológica.
Colaborou em diversos jornais e revistas e foi autor de programas radiofónicos de divulgação de teatro.
Dedicou-se ao estudo da literatura portuguesa e particularmente do Neorrealismo, tendo publicado, entre outros títulos, José Régio - A Obra e o Homem (1976), O Segundo Modernismo em Portugal (1977) e Poesia Portuguesa: do "Orpheu" ao Neorrealismo (1980).
Ocupou ainda o cargo de adido cultural da Embaixada de Portugal em Londres durante dezassete anos seguidos, entre 1978 e 1995.
Usou os pseudónimos literários Armando Vieira de Sá, John Land e Lapiro da Fonseca devido à censura do Estado Novo. (daqui)