quarta-feira, 20 de novembro de 2024

"A Casa da Rua Abílio" - Poema de Alberto de Oliveira


Gustavo Dall'Ara (Pintor e desenhista italiano que imigrou para o Brasil, 1865-1923),
Casario em Santa Tereza, 1907.
 

A Casa da Rua Abílio

 
A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade

Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.

Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falarão,

E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração. 
 

Alberto de Oliveira
, Poesias, 4ª série
Rio de Janeiro: F. Alves, 1927.

Gustavo Dall'Ara, Trecho da Rua D. Manuel, 1920, Museu Histórico Nacional.


"A poesia é algo que anda pelas ruas. Que se move, que passa ao nosso lado. Todas as coisas têm o seu mistério e a poesia é o mistério que contém todas as coisas. Se passamos junto de um homem, se olhamos uma mulher, se adivinhamos a marcha oblíqua de um cão, em cada um desses objetos humanos está a poesia.
Por isso não concebo a poesia como abstração, mas sim como uma coisa real existente, que passou junto de mim. Todas as pessoas dos meus poemas existiram. O principal é encontrar a chave da poesia. Quando se está mais tranquilo, então, zás, se abre a chave e o poema aparece com sua forma brilhante."


Federico García Lorca, in Pequeno Poema Infinito.
 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

"O fio da vida" - Poema de Rui Knopfli


Oscar Björck (Swedish painter and a professor at the Royal Swedish Academy of Arts,
 1860 – 1929), Launching the Boat. Skagen, 1884.
 
 

O fio da vida 


Há homens que rezam na penumbra
das catedrais dolentes e há outros
que do alto das pontes olham
a escuridão rumorejante das águas.
Há homens que esperam na orla
marítima e outros arrastando-se
no viscoso esterco dos subterrâneos.
Há homens debruçados em pleno azul
e outros que deslizam sobre densos verdes;
há os desatentos na atenção e os que
espreitam atentamente a ocasião.
Há homens por fora e por dentro
do cimento armado, suspensos
das mil ciladas do quotidiano voraz;
de encontro aos muros, às paredes,
ao sol do meio-dia, ao visco da noite,
às sediças solicitações de cada instante.
Há a impotência poderosa da oração
e a obsessão amarga dos suicidas
e, de permeio, os que, porque hesitam,
porque ignoram, porque não creem,
não oram, nem se suicidam
e se quedam ante a impossibilidade de destrinça
entre o fio da vida e a vida por um fio.


Rui Knopfli, Obra Poética, 2003



Oscar Björck, Signal of Distress, 1883


"O Homem deve criar as oportunidades e não somente encontrá-las."

"A man must make his opportunity, as oft as find it."

Francis Bacon, Francisci Baconi Baronis de Verulamio...Opera Omnia Quatuor Voluminibus Comprehensa:
 In quo continetur Instaurationis magnae pars tertia, 1730 - Página 522.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

"O que nós vemos das coisas são as coisas" - Poema de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa



Auguste Roquemont (Pintor luso-suíço da época romântica, 1804-1852),
"Colegiada de Guimarães", s.d., Localização indeterminada.


O que nós vemos das coisas são as coisas


XXIV

O que nós vemos das coisas são as coisas.
Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores. 

13-3-1914 

Alberto Caeiro
, “O Guardador de Rebanhos”. 
In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa
Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 50.

“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925. 
 
 

Auguste Roquemont, Cena de aldeia ou Chafariz de Guimarães (Tanque do Carmo), 1842.
Óleo sobre tela, 22 x 27,5 cm. Museu Nacional Soares dos Reis, Porto.



"Adultos seguem caminhos. Crianças exploram. Os adultos ficam satisfeitos por seguir o mesmo trajeto, centenas de vezes, ou milhares; talvez nunca lhes ocorra pisar fora desses caminhos, rastejar por baixo dos rododendros, encontrar os vãos entre as cercas."
 

Neil Gaiman, em "O Oceano no Fim do Caminho" (The Ocean at the End of the Lane), 2013.
 

domingo, 17 de novembro de 2024

"Estão batendo na porta" - Poema de Ricardo Azevedo



André Letria (Ilustrador português, n. 1973) (daqui)
 

Estão batendo na porta


Homem sério chega cedo,
olha seco pras pessoas,
cumprimenta com a cabeça,
fica longe e vai sentando.

Homem culto chega aéreo,
vive no mundo da lua,
abre um livro des’tamanho,
distraído vai sentando.

Homem belo vem bonito,
elegante e perfumoso,
puxa o espelho, passa o pente,
vem pro centro e vai sentando.

Homem pobre, quando chega,
chega sem nada na mão,
olha quieto, fala baixo,
e depois senta no chão.

Homem sábio chega calmo,
um por um vai abraçando,
fala pouco, olha nos olhos,
fica junto e vai sentando.

Homem doido chega e planta
bananeira na janela,
mostra a língua, tira a roupa,
pinta o sete e vai sentando.

Homem chato chega bobo,
vem torrando a paciência,
fala mole não se enxerga,
enche o saco e vai sentando.

Homem triste vem sozinho,
puxa o lenço e chora um pouco,
muita gente chega perto,
ele gosta e vai sentando.

Homem fraco chega branco,
capengando agasalhado,
tosse, espirra, ronca funga,
cospe, engasga e vai sentando.

Homem alegre chega leve,
vem contando as novidades,
dá três beijos, quatro abraços,
solta o riso e vai sentando.

Homem errado entra torto,
quebra o vaso tropeçando,
cai na sala, rasga a calça,
ri aflito e vai sentando.

Homem forte chega imenso,
abre a porta trovejando,
fala grosso, mostra o muque,
abre espaço e vai sentando.

Homem rico chega tarde,
vem falando de dinheiro,
faz mil contas, multiplica,
preocupado vai sentando.

Homem tímido não chega,
manda dizer que não vem,
fica em casa, deita cedo,
pra não sentir que tem medo.

Resta só uma pessoa,
pra reunião começar,
imagine agora um pouco,
quem é que falta chegar.


Ricardo Azevedo,
do livro "Dezenove poemas desengonçados",
Ática, 1997.


sábado, 16 de novembro de 2024

"Sonetinho infantil" - Poema de Carlos Pena Filho



Gustave Doyen
(French painter, 1836–1923), Little girl with her doll  
(Petite fille et sa poupée), s.d.
 
 

Sonetinho infantil
 
 
Era clara a menina, longe ou perto,
mesmo entre os seus alvíssimos lençóis.
Ria, como se visse caracóis
cantando uma opereta no deserto.

Logo piscou um olho para o coelho
que - diziam - não era bom da bola
e mágicos tirava da cartola
pois vivia ao contrário, atrás do espelho.

Depois ficou olhando uns elefantes
que mantinham conversa acalorada
sobre a lista dos dez mais elegantes.

Mas, depressa fechou seus olhos pretos
e adormeceu, para não ser trancada
com a chave de ouro de fechar sonetos. 


Carlos Pena Filho
 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

"Pátio" - Poema de Jorge Luis Borges


 
 

Pátio


Com a tarde
Cansaram-se as duas ou três cores do pátio.
A grande franqueza da lua cheia
Já não entusiasma o seu habitual firmamento.
Hoje que o céu está frisado,
Dirá a crendice que morreu um anjinho.
Pátio, céu canalizado.
O pátio é a janela
por onde Deus olha as almas.
O pátio é o declive
Por onde se derrama o céu na casa.
Serena,
A eternidade espera na encruzilhada das estrelas.
Lindo é viver na amizade obscura
De um saguão, de uma aba de telhado e de uma cisterna. 
 
 
Jorge Luis Borges
,
in "Fervor de Buenos Aires", 1ª edição de 1923.
Tradução de Manuel Bandeira
 
 


"Recolha um cão de rua, dê-lhe de comer e ele não morderá: 
eis a diferença fundamental entre o cão e o Homem." 
 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

"Dois gatos" - Poema de Ivan Junqueira


Julius Adam (German genre painter and animalier specialising in pictures of cats, 1852 - 1913),
Zwei Kätzchen im Korb mit blauem Tuch, c. 1913.
 
 

Dois gatos

1

Eram dois gatos num só
a se esfregarem no pó

das velhas tábuas do assoalho,
rente às brasas do borralho

de uma lareira sem dono,
no fluido limiar do sono.

Era um gato e eram dois,
mas só se os viam depois

que um se escondia na pele
do outro e abandonava a dele,

como quem sai de si mesmo
e, passo a passo, anda a esmo,

sem destino, alheio à sorte
do que seja a vida e a morte.

Eram dois de olhos azuis
quais turquesas, e um capuz

que a cabeça lhes cobria
com egípcia simetria,

de uma orelha a outra orelha,
de uma a outra sobrancelha.

E lembrem-se o rabo e as patas
de cores gémeas, exatas.

Se um sumia, o outro miava
em, num átimo, o encontrava

sob os degraus de uma escada
que subia rumo ao nada.

Jacó e Esaú: lhes deram
esses nomes que não eram

senão o dilema arcano
do rosto de um deus romano.

Nunca foram, pois, iguais,
e disso havia sinais

em todo e qualquer detalhes,
não de postura ou de talhe,

mas de índole e de aspeto:
um, esquivo e circunspecto,

o outro, terno, mais afeito
a quem o punha no leito.

2

Foi-se a areia da ampulheta,
foram-se os tons da palheta

que davam cor à façanha
de um só ser dois nessa estranha

aptidão de duplicar-se
sem artifício ou disfarce.

E hoje ainda me pergunto
quando me toca esse assunto:

seria mesmo um só gato
que se expandia em dois no ato

de ludibriar os que os viam,
ou eram ambos que urdiam

uma única criatura
em que tudo se mistura? 


Ivan Junqueira

(Jornalista, poeta, tradutor e crítico literário brasileiro, 1934 - 2014)
 

 
 
"Ele fixara em Deus aquele olhar de esmeralda diluída, uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Às vezes, quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a memória da sua liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo."
 

Julius Adam, Cat with her Kittens, s.d.
 
 
"O gato é o único animal que aceita os confortos, mas rejeita a escravidão da domesticidade."

Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon