domingo, 23 de março de 2025

"Como cortar uma romã" - Poema de Imtiaz Dharker


 
Henri Fantin-Latour (French painter and lithographer, 1836–1904), Still Life 
(Flowers, Fruits, Wineglass, and Tea Cup), 1865. 


Como cortar uma romã


“Nunca”, disse o meu pai,
“nunca cortes o coração
de uma romã. Vai chorar sangue.
Trata-a com delicadeza, com respeito.
Basta cortar a casca em quatro quartos.
É uma fruta mágica,
quando a abrires, está preparada
para que as joias caiam,
mais preciosas do que granadas,
mais lustrosas do que rubis,
como se iluminadas por dentro.
Cada joia contém uma semente viva.
Separa um cristal.
Segura-o para captar a luz.
Por dentro é um universo inteiro.
Nenhuma joia vulgar te pode dar isso”.
Já tentei fazer colares
de sementes de romã.
O sumo de um carmesim brilhante jorrou
e manchou os meus dedos, depois a minha boca.
Não me importei. O sumo tinha o gosto de jardins
que nunca tinha visto, a volúpia
da murta, do limão, do jasmim,
vivo com asas de papagaio.
A romã recordou-me
que em algum lugar tive outra casa.


Imtiaz Dharker
Tradução de Jorge de Sousa Braga
 

sábado, 22 de março de 2025

"Renovo" - Poema de Stéphane Mallarmé


Viggo Langer (Danish painter, 1860-1942), A Forest in Springtime, 1925.



Renovo


Doentia, a primavera expulsou tristemente
O inverno, a estação da arte calma, o lúcido
Inverno, e este meu ser que um sangue morno inunda
De impotência se estira em um bocejo lento.

O meu crânio amolece em crepúsculos brancos
Sob o ferro em tenaz, como um túmulo antigo,
E eu, triste, eis-me a errar pelos campos seguindo
Um sonho belo e vago, entre a seiva estuante,

Depois cedo ao odor das árvores, cansado,
Com a face a cavar uma fossa ao meu sonho,
E mordendo os torrões onde nascem lilases,

Aguardo, a abismar-me, o meu tédio a evolar-se...
- Entretanto o Azul, sobre a sebe e o alvor,
Ri das aves em flor ao sol a chilrear. 


Stéphane Mallarmé, em "Poesias". 
Tradução, prefácio e notas de José Augusto Seabra
Lisboa: Assirio & Alvim, 2005. 
 

 
Viggo Langer, Springtime on a Country Lane, 1917.


Mallarmé ou Valéry


Fiz uma charada:
Não sabia que isto é hoje
A poesia pura.


Afrânio Peixoto, Miçangas: poesia e folclore.
São Paulo: Ed. Nacional, 1931.


sexta-feira, 21 de março de 2025

"Estou vivo e escrevo sol" - Poema de António Ramos Rosa


Real Bordalo (Artista plástico português, 1925 - 2017), "O eléctrico de Galamares", Sintra, 1997.
 (Elétricos de Sintra



Estou vivo e escrevo sol 

ao Ruy Belo

Escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no ato de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objetos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde


António Ramos Rosa
,
in "Estou Vivo e Escrevo Sol", 1966
 

quinta-feira, 20 de março de 2025

"Na minha rua há um menininho doente" - Poema de Mário Quintana

 


Joseph Clark (English painter, 1834-1926),The Sick Boy 
[The Doctor's Visit], c. 1857.
 
 
Menininho doente

 
Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro, em frente,
Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola…

Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente…
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente…


Mário Quintana
in A Rua dos Cataventos, 1940.



Joseph Clark, Home from the War, 1901.


 Pai
 
 
Pai,
vens com os olhos cansados,
os dedos gretados,
os pés doridos,
os sonhos moídos.
Onde colheste o sorriso
que me dás
como uma flor?
 
in Poemas da Mentira e da Verdade.
Livros Horizonte
 

quarta-feira, 19 de março de 2025

"Sem um filho te apagarás no poente" - Poema de William Shakespeare

 


Fritz Zuber-Buhler
(Swiss painter, 1822–1896), New Beginnings.
 


Sem um filho te apagarás no poente 


A luz real ergueu-se a oriente
com a coroa de fogo na cabeça:
e o nosso olhar, vassalo obediente,
ajoelha ante a visão que recomeça.
Enquanto sobe, Sua Majestade,
a colina do céu a passos de oiro,
adoramos-lhe a adulta mocidade
que fulge com as chamas dum tesoiro.
Mas quando o carro fatigado alcança
o cume e se despenha pela tarde,
desviamos os olhos já sem esperança:
no crepúsculo estéril nada arde.
Assim tu, meio dia ainda ardente,
sem um filho te apagarás no poente.


William Shakespeare
, in "Sonetos"
Tradução de Carlos de Oliveira


terça-feira, 18 de março de 2025

"Cantiga" - Poema de Gilberto Mendonça Teles


 
Claude Monet (French painter and founder of impressionist painting, 1840–1926),
 Belle-Ile, Rain Effect, 1886
, Bridgestone Museum of Art.
 

Cantiga


Pergunto ao mar por que foge
e ao vento por que não vem.
O tempo levou a vida
para outra praia no além.
Há tanto pássaro voando,
meu sonho voou também.
Pousou nas cristas das vagas,
tornou-se espuma salgada
e veio dar nesta praia
onde não há mais ninguém.

E o mar que foge retorna,
retorna o vento também.
Só a vida que foi não volta,
só o tempo que foi não vem.


 Gilberto Mendonça Teles

in "Hora aberta – Poemas reunidos".
4ª ed., aumentada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.


segunda-feira, 17 de março de 2025

"Ver-te. Tocar-te" - Poema de Hilda Hilst


 
Pierre-Auguste Renoir (French artist, 1841–1919), Lovers (Henriette Henriot 
 and Franc-Lamy), 1875, National Gallery Prague.


Ver-te. Tocar-te


Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Que desenhos e rictus na tua cara
Como os frisos veementes dos tapetes antigos.
Que sombrio te tornas se repito
O sinuoso caminho que persigo: um desejo
Sem dono, um adorar-te vívido mas livre.
E que escura me faço se abocanhas de mim
Palavras e resíduos. Me vêm fomes
Agonias de grandes espessuras, embaçadas luas
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.
Cordura.
Crueldade.


Hilda Hilst, in 'Do Desejo', 1992


Henriette Henriot, c. 1876 by Pierre-Auguste Renoir


Desejo 


Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.


Hilda Hilst, in 'Do Desejo', 1992