sábado, 21 de dezembro de 2024

"Cinco palavras cinco pedras" - Poema de Ruy Belo


Charles Frederic Ulrich (American Realist painter who spent most of his career in Germany, 
1858 –1908), In the Land of Promise, Castle Garden, 1884, National Gallery of Art.



Cinco palavras cinco pedras 


Antigamente escrevia poemas compridos
Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema
São elas: desalento prostração desolação desânimo
E ainda me esquecia de uma: desistência
Ocorreu-me antes do fecho do poema
E em parte resume o que penso da vida
Passado o dia oito de cada mês
Destas cinco palavras me rodeio
E delas vem a música precisa
Para continuar. Recapitulo:
desistência desalento prostração desolação desânimo
Antigamente quando os deuses eram grandes
Eu sempre dispunha de muitos versos
Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas 
 

Ruy Beloem "Homem de Palavras", 1969.
"Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, 1984.
"Todos os Poemas", 2001.

Charles Frederic Ulrich, Waifs in an Orphanage, 1884.


"Não tenho saudade da infância, mas sinto falta da forma como eu encontrava prazer em coisas pequenas, mesmo quando coisas maiores desmoronavam. Eu não podia controlar o mundo no qual vivia, não podia fugir de coisas nem de pessoas nem de momentos que me faziam mal, mas tinha prazer nas coisas que me deixavam feliz."


Neil Gaiman, em "O Oceano no Fim do Caminho" (The Ocean at the End of the Lane), 2013.
 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

"O direito de ler em voz alta" - Texto de Daniel Pennac


Karl Harald Alfred Broge (Danish painter, 1870–1955),
A young girl seated reading before the window, 1914.
 


O direito de ler em voz alta

 
Eu pergunto-lhe:
- Quando eras pequena liam-te histórias em voz alta?
Ela responde:
- Nunca. O meu pai andava sempre a viajar e a minha mãe estava sempre muito ocupada.
Eu pergunto:
- Então de onde vem esse teu gosto pela leitura em voz alta?
Ela responde:
- Da escola.
Feliz por ouvir alguém reconhecer algum mérito à escola, exclamo, satisfeito:
- Ah! Estás a ver?
Ela diz-me:
- De modo nenhum. Na escola proibiam-nos que lêssemos em voz alta. O credo da época era a leitura silenciosa. Diretamente da vista ao cérebro. (...) Mas, mal chegava a casa, relia tudo em voz alta.
- Para quê?
- Para me maravilhar. As palavras pronunciadas começavam a ter existência fora de mim, tinham autêntica vida. Além disso, para mim era um ato de amor.
Era o próprio amor. (...) Deitava as minhas bonecas na minha cama, no meu lugar e lia para elas. Cheguei a adormecer no tapete.

Daniel Pennac, "Como um Romance" ("Comme un roman"), 1992
 
 
Daniel Pennac, "Como um Romance"
Tradução de Francisco Paiva Boléo
Edições ASA

 
Sinopse 

É sobejamente conhecido o desgosto com que os pais preocupados com a formação dos filhos costumam registar a inapetência destes para a leitura. Daniel Pennac, romancista, professor e pai de família, descreve neste ensaio cheio de humor, todas as perplexidades que usualmente assaltam os diversos intervenientes neste processo de conflitos surdos, temores, bloqueios e teimosias. 
Acima de tudo, conforme se sublinha no presente livro, a leitura tem de ser um prazer e os leitores de hoje devem usufruir de alguns direitos inalienáveis. 
A profunda originalidade de Como Um Romance está na forma ao mesmo tempo muito divertida e muito séria com que o autor aborda a questão central de que dependem tanto o destino do livro como o destino da cultura e da educação.
 
Como Um Romance liderou durante vários meses a lista dos livros mais vendidos em França e o seu impacto originou que se falasse mesmo do "fenómeno Pennac". 
 

Karl Harald Alfred Broge (Danish painter, 1870–1955),
Interior with a girl reading, oil on canvas, 41 x 31 cm.
 

«(…) o melhor que nós lemos, devemo-lo frequentemente a um ser que nos é querido. E é a um ser que nos é querido, que primeiro falaremos. E talvez, muito provavelmente, porque o que é intrínseco tanto ao sentimento como ao desejo de ler, consiste em preferir. Amar é doarmos as nossas preferências àqueles que preferimos. E estas partilhas povoam a invisível cidadela da nossa liberdade. Somos habitados por livros amigos.
Quando um ser querido nos dá um livro a ler, é ele que primeiro procuramos nas linhas, os seus gostos, as razões que o levaram a colocar o livro nas nossas mãos, os sinais de fraternidade. Depois, o texto transporta-nos, e esquecemos quem nos levou a mergulhar nele; é nisto exatamente que reside o poder de uma obra, afastar também essa contingência!
No entanto, os anos passam, e acontece que a evocação do texto recorda-nos a lembrança do outro; alguns títulos transformam-se então em rostos.» 
 
Daniel Pennac, "Como um Romance"
 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

"Vida" - Poema de Matilde Rosa Araújo


 William Blake Richmond (British painter, sculptor and a designer of stained glass and mosaic, 1842-1921),
 Portrait of Henry Dawson Greene (1862-1912) of Slyne and Whittington Hall, Lancashire.
 


Vida

 
— Mãe, o mundo é mau,
Torna a flor lodo
E um pássaro num verme,
E eu não sabia...

— Filha! Semeia flores no lodo,
Empresta o teu canto ao verme.
Se as tuas mãos continuarem puras
E meigo o teu coração,
Acredita que o mundo é belo
E saberás!


Matilde Rosa Araújo
em "O Cantar de Tila"
 
 

"Poema para minha filha" - Aires de Almeida Santos


Felice Casorati (Italian painter, sculptor, and printmaker, 1883–1963), 
"Bambina che gioca su tappeto rosso", 1912.
 
 

 Poema para minha filha

Para ti, querida
Rosas e mel
E estrelas rutilantes,
Risos gritantes,
Muita ternura e carinho

E o Sol
Brilhando muito
Em frente ao teu caminho.

Deixa comigo o fel,
A dor, o desespero
Deixa que eu fira a pele
Nos ásperos abrolhos
Da vida.

Deixa chorar meus olhos
Deixa comigo
O peso do sonho tão antigo.

Para ti, querida
Paz, amor, ternura
Estrelas rutilantes,
Rosas e Mel…


 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

"Apetece-me dançar" - Poema de José Gomes Ferreira


William J. Glackens (American realist painter, 1870-1938),
Girl Roller Skating, Washington Square, c. 1912–14
Brooklyn Museum, New York, USA


Apetece-me dançar
 
"De repente, às três da madrugada, acordo e levanto-me da cama
 com estes versos na cabeça... Lá por fora, luar."


Apetece-me dançar
ao som do luar
- esse violino
que os outros não ouvem...

Ouviu-o Mozart...
Ouviu-o Beethoven...

Mas, hoje sou eu
que o ouço no céu
e danço na terra
com pés de cetim,
lá fora na rua...

Sou eu, pelo Ar...
Sou eu, o luar...
(...que arranquei de mim
e atirei para a lua.)


José Gomes Ferreira
,
"Poesia II", 1962

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

"Oh, Vida! Fugitiva Companheira" - Poema de Francisco Bugalho


Arvid Liljelund (Finnish painter, 1844-1899), Ferdinand von Wright at Work, 1897.
Finnish National Gallery
 
 
 
 Oh, Vida! Fugitiva Companheira
 
 
 Oh, Vida!
Fugitiva companheira,
Eu sinto que não posso acompanhar-te.
Por isso, nesta hora feiticeira,
Quisera erguer-te uma barreira
E fazer-te parar
E abraçar-te;
E abraçar-te tão íntimo e tão fundo
Que toda a vida apenas de um segundo
Em mim entrasse, em mim vivesse,
E que depois viesse o fim do Mundo
Ou que eu morresse!... 


Francisco José Lahmeyer Bugalho,
 in "Dispersos e Inéditos"
 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

"Sol do Mendigo" - Poema de Manuel da Fonseca


Alessandro Pomi (Italian Impressionist painter, 1890–1976)



Sol do Mendigo


Olhai o vagabundo que nada tem
e leva o Sol na algibeira!
Quando a noite vem
pendura o sol na beira dum valado
e dorme toda a noite à soalheira...
Pela manhã acorda tonto de luz.
Vai ao povoado
e grita:
- Quem me roubou o sol que vai tão alto?
E uns senhores muito sérios
rosnam:
- Que grande bebedeira!

E só à noite se cala o pobre.
Atira-se para o lado,
dorme, dorme...

E toda a noite o sol o cobre...


Manuel da Fonseca, Rosa dos Ventos, 1940


Manuel da Fonseca
 
 
 Manuel da Fonseca, escritor português, vulto destacado do Neorrealismo, nasceu a 15 de outubro de 1911, em Santiago do Cacém, e morreu a 11 de março de 1993, em Lisboa.
Partiu ainda jovem para Lisboa para realizar estudos secundários, tendo desempenhado posteriormente na capital diversas atividades profissionais no comércio, na indústria e no jornalismo. 
Antes de colaborar em Novo Cancioneiro, com Planície, coleção onde se afirmariam algumas coordenadas da estética poética Neorrealista numa primeira fase, editou, em 1940, Rosa dos Ventos, obra pioneira do neorrealismo poético português, nascida do convívio com um grupo de jovens escritores, entre os quais Mário Dionísio, José Gomes Ferreira, Rodrigues Miguéis, Manuel Mendes e Armindo Rodrigues, unidos numa "obstinada recusa de ser feliz num mundo agressivamente infeliz, uma ânsia de dádiva total e o grande sonho de criar uma literatura nova, radicada na convicção de que, na luta imensa pela libertação do Homem, ela teria um papel estimável a desempenhar contra o egoísmo, os interesses mesquinhos, a conivência, a indiferença perante o crime, a glorificação de um mundo podre" (DIONÍSIO, Mário - prefácio a Obra Poética de Manuel da Fonseca, 1984, p. 21). 
Não existindo descontinuidade entre a poesia e a prosa de Manuel da Fonseca, nem entre ambas e o escritor, que as impregna de um cariz autobiográfico, alimentado por recordações da convivência com o homem alentejano, ficção e obra poética interpenetram-se na evocação de personagens, narrativas, romances, paisagens alentejanas. Mário Dionísio (id. pp. 32-33) vê na oposição cidade/vila, recorrente na obra de Manuel da Fonseca, a oposição entre o que é "apaixonado e violento, desgraçado e heroico, profundamente humano, grave, limpo" e o que é ridículo, repugnante, mesquinho, "de ambição medíocre, de preconceitos míseros, que desvirtuam e lentamente asfixiam uma imagem ideal de vida que, na poesia de Manuel da Fonseca, quase sempre se identifica com tudo o que a infância e a adolescência têm de ingénuo e generoso e transparente e que a vida embacia, adultera e destrói." 
Autor de uma obra ancorada na realidade e eivada de um apontado regionalismo, a escrita de Manuel da Fonseca ultrapassa a contingência histórica de que nasceu, por um enaltecimento da vida, compreendida como intrinsecamente livre das imposições, frustrações, mentiras e condicionamentos impostos pela sociedade, ânsia de libertação, simbolizada, por exemplo, na repressão sexual imposta a algumas figuras femininas ou na admiração de figuras marginais como o "maltês" ou o vagabundo. 
Cerromaior (1943), O Fogo e as Cinzas (1951) e Seara de Vento (1958) são algumas das suas obras mais emblemáticas. (daqui)