segunda-feira, 14 de novembro de 2022

"Viver" - Poema de Carlos Drummond de Andrade

 

Jean Dubuffet (French painter and sculptor, 1901–1985), Vicissitudes (Les Vicissitudes), 1977


Viver


Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso
uma noção de porta,
o projeto de abri-la
sem haver outro lado?

O projeto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?


Carlos Drummond de Andrade
,
in 'As Impurezas do Branco', 1973
 

 "As impurezas do branco" de Carlos Drummond de Andrade
Capa: warrakloureiro. Editora: Companhia das Letras 
 
 
Publicado pela primeira vez em 1973, "As impurezas do branco" é um livro singular na vasta e aclamada carreira do autor mineiro Carlos Drummond de Andrade. O poeta se mostra permeável ao concretismo, à poesia de tonalidade menos cultivada - estamos na década que assistiria ao aparecimento da “geração mimeógrafo” -, à espacialidade da página em branco. 
Atento aos acontecimentos do seu tempo, o poeta observa, com ironia e até alguma malandragem carioca, o quotidiano do Brasil e do mundo. Grandes notícias, fait divers, o verão na Cidade Maravilhosa, papel da publicidade em nossas decisões - nada escapa ao crivo crítico e debochado do poeta mineiro. (daqui)
 
 

Jean Dubuffet, Garden with Melitaea (Jardin aux Mélitées), 4 September 1955,
Collection Fondation Dubuffet, Paris
 
 

Arte Bruta


Art brut
é um termo francês que se traduz como 'arte bruta', inventado pelo artista francês Jean Dubuffet para descrever a arte que é feita fora da tradição académica. Dubuffet, o mais importante artista francês surgido após a Segunda Guerra Mundial, no meio da sua carreira interessou-se pela arte dos doentes mentais, após estudar A Arte do Insano (1922) com o psiquiatra suíço Hans Prinzhorn. Dubuffet aplicou o nome Art Brut (Arte Bruta) aos desenhos, pinturas e rabiscos do psicótico, do ingénuo e do primitivo, obras que ele considerava as formas mais puras da expressão criativa. Com a descoberta dos primeiros cubistas de esculturas primitivas da Oceânia e de África, o estudo de Dubuffet desse tipo de arte deu-lhe a inspiração que buscava para a sua própria arte, pois representava para ele a expressão mais autêntica de emoção e dos valores humanos.

Originalmente inspirado na arte infantil do pintor suíço Paul Klee, a partir dos anos 1940, as pinturas de Dubuffet imitaram a sinceridade e a ingenuidade que ele associava à verdadeira arte bruta. A primeira dessas obras mostra uma visão infantil da humanidade e da civilização, com cores alegres e desenhos ingénuos. Obras posteriores, mais passionais e primitivas, às vezes patéticas, às vezes obscenas, incorporam formas derivadas do graffiti e da arte psicótica; pintadas em um empasto espesso ou construídas com colagens, essas obras densamente detalhadas e intensamente expressivas transmitem uma sensação de vida abundante e força bruta.

Embora a categoria de Arte Bruta de Dubuffet abarque qualquer pintura ou escultura criada fora dos limites da cultura contemporânea ou tradicional - e, portanto, livre da manipulação ou influência cultural - ele pessoalmente estava principalmente interessado numa subcategoria específica desta arte bruta: a saber, as obras dos pacientes dos hospitais psiquiátricos.

O fascínio de Dubuffet pela arte insana baseou-se na sua suposta pureza criativa e na inspiração que deu ao seu próprio trabalho. Em suma, ele acreditava que apenas a Art Brut era imaculada do contacto com os valores culturais prevalecentes, e esse expressionismo espontâneo inspirou os seus próprios desenhos infantis, com sinais originais que foram a base concetual para a sua estrutura do estilo primitivo executada sem qualquer sentido de composição ou características estéticas claras. A sua escultura também foi baseada em esforços semelhantes de artistas da Art Brut. No papel machê (papier mâché), nas tábuas de madeira e em uma variedade de "objetos encontrados" ao estilo dos readymades de Marcel Duchamp, Dubuffet também misturou graxa, areia e gesso com tinta brilhante para criar um meio "bruto" adequado. Ironicamente, elogiando os artistas do Art Brut pela originalidade e ausência de imitação, Dubuffet imitou o seu trabalho tantas vezes que foi acusado de plágio.

Materiais usados pelos artistas da Art Brut não são necessariamente materiais de arte. Estes artistas raramente faziam pinturas a óleo ou esculturas diretas de bronze ou argila. Demonstrando uma desenvoltura incomum e robusta, eles usam tudo o que conseguem, seja lama, sangue, giz, cera ou uma simples caneta de tinta. Esse imediatismo do material expõe a necessidade intensa de criar e, além disso, ilustra que as obras feitas são em grande parte extensões da identidade reflexiva em curso.(Daqui)

 

Jean Dubuffet, Restaurant Rougeot, March 1961
 

"Eu não tenho enredo de vida? Sou inopinadamente fragmentária. Sou aos pouco. Minha história é viver."
 
 
 
 
 
"Nunca lerás o que escrevo. E quando eu tiver anotado o meu segredo de ser – jogarei fora como se fosse ao mar. Escrevo-te porque não chegas a aceitar o que sou. Quando destruir minhas anotações de instantes, voltarei para o meu nada de onde tirei um passado que só se renova com paixão no estranho presente. Quando penso no que já vivi me parece que fui deixando meus corpos pelos caminhos."
 
 
'Água Viva' de Clarice Lispector
Editora: Relógio D'Água
 
 
 «De facto, "Água Viva" não se parece com nada que tivesse sido escrito na época, no Brasil ou em qualquer outro lugar. Os seus parentes mais próximos são visuais ou musicais, uma semelhança que Clarice enfatiza ao transformar a narradora, uma escritora, nas versões iniciais, numa pintora; na altura, ela mesma dava os primeiros passos na pintura.
(…) Clarice compara o livro a aromas (“O que estou fazendo ao te escrever? estou tentando fotografar o perfume”), a sabores, (“Como reproduzir em palavras o gosto? O gosto é uno e as palavras são muitas”) e ao tato, embora a sua metáfora mais insistente seja em relação ao som: “Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isso? Improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da plateia.” Isto é música abstrata, “uma melodia sem palavras”.
Livre dos constrangimentos de um enredo ou de ter de contar uma história, "Água Viva" é, todo ele, a crista da onda.» (daqui)
 
 

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