George Bellows
(1882–1925), A Grandmother, 1914, Museo Thyssen-Bornemisza
Páscoa
Velhice
é um modo de sentir frio que me assalta
e uma certa acidez.
O modo de um cachorro enrodilhar-se
quando a casa se apaga e as pessoas se deitam.
Divido o dia em três partes:
a primeira pra olhar retratos.
A segunda pra olhar espelhos,
a última e maior delas, pra chorar.
Eu, que fui louca e lírica,
não estou pictural.
Peço a Deus,
em socorro da minha fraqueza,
abrevie esses dias e me conceda um rosto
de velha mãe cansada, de avó boa,
não me importo. Aspiro mesmo
com impaciência e dor.
Porque sempre há quem diga
no meio da minha alegria:
“põe o agasalho”
“tens coragem?”
“por que não vais de óculos?”
Mesmo rosa sequíssima e seu perfume de pó,
quero o que desse modo é doce,
o que de mim diga: assim é.
Pra eu parar de temer e posar pra um retrato,
ganhar uma poesia em pergaminho.
Adélia Prado, em Bagagem.
Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 41
Adélia Prado fala sobre sua obra, feminismo e o momento político do Brasil (aqui)
Adélia Prado é uma das escritoras mais aclamadas da literatura
brasileira desde sua estreia, em 1976, com o livro de poemas Bagagem.
Esse título carrega, em especial, o sentido de sua herança cultural, sua
bagagem de vida. Afinal, à época, Adélia já tinha quarenta anos, idade
pouco usual para estrear em literatura, era professora, graduada em
Filosofia, casada e mãe de cinco filhos em Divinópolis, interior de
Minas Gerais, onde nasceu no dia 13 de dezembro de 1935, filha do
ferroviário João e da dona de casa Ana.
Adélia Prado publicou oito livros de poesia: Bagagem (1976), O coração disparado (1978), Terra de Santa Cruz (1981), O pelicano (1987), A faca no peito (1988), Oráculos de maio (1999), A duração do dia (2010) e Miserere (2013), além de nove livros em prosa: os romances Solte os cachorros (1979) – primeiramente catalogado como livro de contos –, Cacos para um vitral (1980), Os componentes da banda (1984), O homem da mão seca (1994) e Manuscritos de Felipa (1999); as crónicas reunidas em Filandras (2001), publicadas anteriormente no jornal O Tempo; a novela Quero minha mãe (2005); e as histórias infantis Quando eu era pequena (2006) e Carmela vai à escola (2011).
Carlos Drummond de Andrade foi quem impulsionou o lançamento de Adélia Prado, no Rio de Janeiro, pela editora Imago. O poeta recebeu o manuscrito da autora, confiado ao crítico mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, e publicou um texto muito elogioso em sua coluna no Jornal do Brasil, eis um trecho: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: está à lei, não dos homens, mas de Deus” (Drummond, 2015).
Dois meses após o lançamento do livro, a escritora Olga Savary publicou uma resenha atestando o seguinte: “acho que Bagagem [...] vai dar o que falar. Há muito não aparece poesia tão vigorosa, telúrica, intensa, com tanta garra e força primitiva, tão seiva, sangue, suor e sexualidade” (2000). Com efeito, longe da agitação das capitais, a poesia de Adélia, imbuída de um tom narrativo, encena o quotidiano de pessoas comuns em constante tensão com o passado – “Você conversa com uma tia, num quarto./ Ela frisa a saia com a unha do polegar e exclama:/ ‘Assim também, Deus me livre’./ De repente acontece o tempo se mostrando,/ espesso como antes se podia fendê-lo aos oito anos” (Prado, 2015).
Já o crítico Antonio Hohlfeldt situou a aparição da poeta como causadora de certo desconforto entre alguns críticos, sobretudo por Adélia representar a figura da mulher de uma maneira que “quebra, aparentemente, toda a dicção libertária, feminina e feminista, então vigente. [...] Não fazia experimentalismos formais, insistia numa poesia de ideias” (2000). Nos anos 1970, a poesia brasileira estava dividida: “[...] de um lado, os variados experimentalismos formais a partir do Concretismo e do Tropicalismo, desde os anos 1950 e, de outro, a busca a partir da década seguinte, [...] da retomada da poesia político-ideológica” (Hohlfeldt, 2000). No entanto, a poesia de Adélia não se apresenta filiada a nenhuma dessas vertentes, e nem por isso sua poesia se quer reacionária, pois segundo Augusto Massi, a poesia voltava a se debruçar sobre temas excluídos, como o sonho e o erotismo. Nesse sentido, “Adélia representava um último desdobramento do modernismo, cujas linhas de força convergem para a retomada do quotidiano, da oralidade, da cultura popular e para o desejo de encurtar o caminho até o leitor, trazendo a linguagem poética para o centro da vida” (Massi, 2015).
A propósito, já em seu livro de estreia, a escritora nos apresenta direta e indiretamente certas filiações: Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, São João da Cruz, Santa Tereza D’Ávila, Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Jorge de Lima, além de Guimarães Rosa e de seu livro sagrado, reverenciados nestes versos de Bagagem: “Porque tudo que invento já foi dito/ nos dois livros que eu li:/ as escrituras de Deus,/ as escrituras de João./ Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão” (2015).
Paralelamente a sua poesia, Adélia sempre publicou narrativas. A primeira delas é Solte os cachorros, título que remete à expressão popular brasileira “soltar os cachorros”, que significa falar o que bem entender com seu interlocutor de maneira reativa. A voz dessa narrativa tecida em fragmentos soa como o desabafo de uma mulher madura: “Quem dá o grito primal paga caro o analista, quem dá o grito vai preso, quem escreve feito eu esgota o zumbido de seu ouvido, mata um a um os marimbondos, com agulha fina, nos olhos. Não posso ver trouxa frouxa, amarro até ficar dura.” (Prado, 2006).
Adélia Prado publicou oito livros de poesia: Bagagem (1976), O coração disparado (1978), Terra de Santa Cruz (1981), O pelicano (1987), A faca no peito (1988), Oráculos de maio (1999), A duração do dia (2010) e Miserere (2013), além de nove livros em prosa: os romances Solte os cachorros (1979) – primeiramente catalogado como livro de contos –, Cacos para um vitral (1980), Os componentes da banda (1984), O homem da mão seca (1994) e Manuscritos de Felipa (1999); as crónicas reunidas em Filandras (2001), publicadas anteriormente no jornal O Tempo; a novela Quero minha mãe (2005); e as histórias infantis Quando eu era pequena (2006) e Carmela vai à escola (2011).
Carlos Drummond de Andrade foi quem impulsionou o lançamento de Adélia Prado, no Rio de Janeiro, pela editora Imago. O poeta recebeu o manuscrito da autora, confiado ao crítico mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, e publicou um texto muito elogioso em sua coluna no Jornal do Brasil, eis um trecho: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: está à lei, não dos homens, mas de Deus” (Drummond, 2015).
Dois meses após o lançamento do livro, a escritora Olga Savary publicou uma resenha atestando o seguinte: “acho que Bagagem [...] vai dar o que falar. Há muito não aparece poesia tão vigorosa, telúrica, intensa, com tanta garra e força primitiva, tão seiva, sangue, suor e sexualidade” (2000). Com efeito, longe da agitação das capitais, a poesia de Adélia, imbuída de um tom narrativo, encena o quotidiano de pessoas comuns em constante tensão com o passado – “Você conversa com uma tia, num quarto./ Ela frisa a saia com a unha do polegar e exclama:/ ‘Assim também, Deus me livre’./ De repente acontece o tempo se mostrando,/ espesso como antes se podia fendê-lo aos oito anos” (Prado, 2015).
Já o crítico Antonio Hohlfeldt situou a aparição da poeta como causadora de certo desconforto entre alguns críticos, sobretudo por Adélia representar a figura da mulher de uma maneira que “quebra, aparentemente, toda a dicção libertária, feminina e feminista, então vigente. [...] Não fazia experimentalismos formais, insistia numa poesia de ideias” (2000). Nos anos 1970, a poesia brasileira estava dividida: “[...] de um lado, os variados experimentalismos formais a partir do Concretismo e do Tropicalismo, desde os anos 1950 e, de outro, a busca a partir da década seguinte, [...] da retomada da poesia político-ideológica” (Hohlfeldt, 2000). No entanto, a poesia de Adélia não se apresenta filiada a nenhuma dessas vertentes, e nem por isso sua poesia se quer reacionária, pois segundo Augusto Massi, a poesia voltava a se debruçar sobre temas excluídos, como o sonho e o erotismo. Nesse sentido, “Adélia representava um último desdobramento do modernismo, cujas linhas de força convergem para a retomada do quotidiano, da oralidade, da cultura popular e para o desejo de encurtar o caminho até o leitor, trazendo a linguagem poética para o centro da vida” (Massi, 2015).
A propósito, já em seu livro de estreia, a escritora nos apresenta direta e indiretamente certas filiações: Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, São João da Cruz, Santa Tereza D’Ávila, Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Jorge de Lima, além de Guimarães Rosa e de seu livro sagrado, reverenciados nestes versos de Bagagem: “Porque tudo que invento já foi dito/ nos dois livros que eu li:/ as escrituras de Deus,/ as escrituras de João./ Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão” (2015).
Paralelamente a sua poesia, Adélia sempre publicou narrativas. A primeira delas é Solte os cachorros, título que remete à expressão popular brasileira “soltar os cachorros”, que significa falar o que bem entender com seu interlocutor de maneira reativa. A voz dessa narrativa tecida em fragmentos soa como o desabafo de uma mulher madura: “Quem dá o grito primal paga caro o analista, quem dá o grito vai preso, quem escreve feito eu esgota o zumbido de seu ouvido, mata um a um os marimbondos, com agulha fina, nos olhos. Não posso ver trouxa frouxa, amarro até ficar dura.” (Prado, 2006).
Em prosa, Adélia Prado mantém os temas recorrentes de sua poesia: a vida provinciana, a família e a religiosidade. Sua maneira de abordar os pensamentos dos personagens é extremamente pessoal, embora nos remeta a Clarice Lispector, sobretudo pelo uso da metalinguagem, recurso em que a própria linguagem é utilizada como tema e conteúdo. Em Manuscritos de Felipa, Adélia homenageia essa escritora através das confabulações da protagonista: “Estou cheia de amor, por isso não excluo esta palavra excrescente, armário maior que o cómodo. Agora imitei a Lispector. Meu aperto é que urge ser eu mesma, não posso ficar imitando, ainda que enquanto humanos somos um só, senão como ia entender livro dela que parece tudo, menos livro?” (1999). De passagem, vale dizer que Clarice esteve presente no lançamento de Bagagem, cerca de um ano antes de seu falecimento.
Um ponto de grande destaque na trajetória de Adélia Prado foi o monólogo Dona Doida: um interlúdio, encenado, em 1987, por Fernanda Montenegro, a atriz mais consagrada do Brasil. O espetáculo foi organizado em blocos por Naum de Souza, “nos quais se apresenta perfeitamente o ser que está dentro da poesia de Adélia”. Esse espetáculo é emblemático pelo facto de lançar luz a um dos pontos mais significativos de sua literatura: seu caráter dramático, litúrgico e oral, como bem enfatizado por Fernanda Montenegro: “Há poetas que devem ser lidos em silêncio, ou melhor, todos os poetas devem ser lidos em silêncio. Mas alguns são muito vigorosos quando verbalizados, ditos em voz alta” (Montenegro, p. 13). Por isso, ao longo de sua vida literária, Adélia disseminou sua palavra ao ler seus poemas em centenas de eventos pelo país, mantendo sua tradição pela liturgia, pelo culto e canto. Gravou os registos O escritor por ele mesmo: Adélia Prado (1999), pelo Instituto Moreira Salles, em K7, e os CDs O tom de Adélia (2000) e O sempre amor (2003), pelo selo Karmin, de Belo Horizonte.
Independentemente da forma empregada por Adélia, seus assuntos são sempre os mesmos. Em entrevista, ela foi categórica: “Nunca vou falar de outra coisa a não ser morte, amor e Deus. Só me ocupo disso. Considero que nesta trindade cabem o Afeganistão, as torres gémeas, a política, a velhice, a mística, a raiva, o medo, o humano, enfim” (Prado, 2001). No entanto, a cada título da autora esses temas são encenados por outras vozes que estabelecem novos diálogos com a tradição, a cultura popular e com sua própria obra. (Daqui)
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