domingo, 13 de novembro de 2022

"Elegia dos Amantes Lúcidos" - Poema de Natália Correia



 Lyon, Musée des Beaux-Arts


Elegia dos Amantes Lúcidos 
 
 
Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge!

Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exata dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destino

E não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o teto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum inseto

Meu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um monge

Ah, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo!

Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia?

Nem homem nem mulher. Só a moeda antiga:
Uma inflação de deuses que não pode parar
Como um pássaro cego à nora da intriga
Que é a morte no centro connosco a circular.

Será o mesmo tempo que nos cabe?
Talvez sejas a raça prematura
Duma gota de orvalho que se há de
Negar à minha sede desértica e futura.

Como o brilho dum sol partido ao meio
Damos luz pela nostalgia da metade.
Partes para ser gaivota no meu seio.
Mas não trazes no bico uma cidade.

Aqui pousou um pássaro de lume
Que deixou um voo subterrâneo
Na repetida vibração do gume
Que cada hora traz à lâmina do crânio.

Teus dedos num relógio como a picada duma abelha
A fabricar o mel da estação perdida!
Que quanto a primavera um rouxinol na telha
É toda a melodia que traz na unha a vida.

O navio tem dois extremos ermos:
Os cabelos para Vénus e os pés para Marte.
Mas a viagem é o mar com a terra a ver-nos.
E com lenços à vista ninguém parte.

Ah, se ao menos eu pudesse agora erguer-me
Como uma pedra pelas minhas mãos futuras
E ficasse para sempre a aquecer-me
Ao sol que cega efémeras criaturas!

Se soltasses as aves da rotina
E de um jorro de deuses abrisses a comporta
E reclinada em tua espádua genuína
Eu entrasse num céu sem ter que achar a porta!

Se tu viesses cavaleiro branco
Orvalhado pela manhã do meu instinto.
E ficasses a chamar-me como um canto
No porvir do nosso último recinto!

Se ficássemos espuma de Maio cor-de-rosa
Nas praias donde Maio se retira,
Enrolados nos panos duma paisagem silenciosa
Que fosse a pura sonoridade da ausência duma lira!

Ah, as sementes que te exigem em declive
Entre abismos onde nunca te despenhas
E esfumados voos em que te embebes e revives
O que de ti já pousou no cume das montanhas!

Inútil decifrarmos este oráculo de ave absorta
Na incontinência do voo que a abrasa.
Se houver um palácio sem porta, talvez seja a porta.
Se houver uma casa sem teto, talvez seja a casa. 


Natália Correia
(1923-1993), in "Passaporte".
Lisboa, Editora Gráfica Portuguesa, 1958
 
["Passaporte" é um dos primeiros e mais raros livros de poesia de Natália Correia, ligado à «tendência surrealista da poesia portuguesa», como assinala Maria Helena Ribeiro da Cunha (professora, crítica literária e pesquisadora de vasta erudição em relação aos estudos da Literatura Portuguesa, 1930-2020)  na rubrica que lhe dedicou na «Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa». 
"Passaporte" contém os poemas: Passaporte, Boletim Meteorológico, Discurso Directo, Biografia Encomendada pela Insónia, Êxodo, O Poema, Metamorfoses necessárias para a Reconquista do Mundo, A Demiurgia do Riso, Ricochete, Homenagem a Titus Lucretius Carus, Poema destinado a haver Domingo, Nictofagia, Projecto de Bodas, Elegia dos Amantes Lúcidos, Ultrabiográfico, Mar Uterino, Pranto.]
 


 "Passaporte" - Poemas de Natália Correia,
Editora Gráfica Portuguesa, 1958, 1ª ed.
 

«Romântica foi-o também decerto Natália Correia, mesmo pelo meio do onirismo surrealista ou da sua acalorada defesa dos direitos da mulher, na sua fascinação pelo andrógino, na expressão do eros total, no culto da mãe, na religação às suas ilhas de bruma e misticismo, até em muitas das suas veementes tomadas de posição no Parlamento ou em praça pública, no pequeno ecrã da televisão.
O relevo, quase excessivo, da mulher política obscureceu por vezes, o talento real e a sensibilidade da escritora. É bom que lhe façamos justiça e olhemos fundo para a sua obra, rio luminoso, por vezes em chamas, que traz consigo muito do que Natália viveu, leu, sonhou, quis construir e deixou incompleto, como quase todos os artistas da paixão.
O lado narcísico da sua personalidade, que convive com toda essa força e generosidade, também lá está, debruçado sobre o espelho da palavra.» 
 
Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), Breve perfil de Natália em sua obra
 

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