quinta-feira, 24 de novembro de 2022

"Menina mal-amada" - Poema de Cora Coralina


Antonio Rotta (Italian painter, 18281903), The death of the chick, 1878,
 

Menina mal-amada


Fui levada à escola mal completados cinco anos.
Eu era medrosa e nervosa. Chorona, feia, de nenhum agrado,
menina abobada, rejeitada.
Ao nascer frustrei as esperanças de minha mãe.
Ela tinha já duas filhas, do primeiro e do segundo casamento
 com meu Pai.
Decorreu sua gestação com a doença irreversível de meu Pai,
desenganado pelos médicos.
Era justo seu desejo de um filho homem
e essa contradição da minha presença se fez sentir agravada 
com minha figura molenga, fontinelas abertas em todo crânio.
Retrato vivo do velho doente, diziam todos.
Me achei sozinha na vida. Desamada, indesejada desde sempre.
Venci vagarosamente o desamor, a decepção de minha mãe.
Valeu e muito minha madrinha de carregar – Mãe Didi.
Minha vida ao me arrastar pelo chão depois de vários trambolhões
na escada, galo na testa, gritaria e algumas palmadas, da bica d’água
passava para a cozinha em volta da Lizarda, criada da casa, como se dizia.
Cozinheira, dona dos torresmos que ela me dava e que me causavam
constantes diarreias e vómitos. Enquanto ia crescendo, lá pelo terreiro,
suja, desnuda, sem carinho e descuidada, sempre aos trambolhões
com minhas pernas moles.
Ganhei até mesmo um apelido entre outros, perna mole, pandorga,
chorona, manhosa.
Na cozinha Siá Lizarda explorava meus préstimos.
Me punha a escolher marinheiros do arroz, esse era beneficiado
nos monjolos das fazendas e traziam, além da marinhagem,
pedrinhas trituradas que davam trabalho lento de separar.
Também o feijão, embora mais fácil.
Eram meus préstimos em promessas de torresmos com farinha.

Mãe, lá em cima, não tomava conhecimento desses detalhes.
Sempre sozinha, crescendo devagar, menina inzoneira, buliçosa, malina.
Escola difícil. Dificuldade de aprender.
Fui vencendo. Afinal menina moça, depois adolescente.
Meus pruridos literários, os primeiros escritinhos, sempre rejeitada.
Não, ela não. Menina atrasada da escola da mestra Silvina…
Alguém escreve para ela… Luís do Couto, o primo.
Assim fui negada, pedrinha rejeitada, até a saída de Luís do Couto
para São José do Duro, muito longe, divisa com a Bahia.
Ele nomeado, Juiz de Direito.
Vamos ver, agora, como faz a Coralina…
Nesse tempo, já não era inzoneira. Recebi denominação maior,
alto lá! Francesa.
Passei a ser détraqué, devo dizer, isto na família.
A família limitava. Jamais um pequeno estímulo.
Somente minha bisavó e tia Nhorita.
Vou contando.

Minha mãe, muito viúva, isolava‑se
no seu mundo de frustrações,
ligada maternalmente à caçula do seu terceiro casamento.
Eu, perna mole, pandorga, moleirona, vencendo sozinha as etapas
destes primeiros tempos. Afinal, paramos no détraqué.

Tudo isso aumentava minha solidão e eu me fechava, circunscrita
no meu mundo do faz de conta…
E vamos trabalhar no pesado. Não ganhar pecha de moça romântica,
que em Goiás não achava casamento.
Tinha medo de ficar moça velha sem casar.
Me apegava demais com Santo Antônio, Santa Anna, padroeira de Goiás.
Minha madrinha para as dificuldades da vida.

Muito me valeu a escola.
Um dia, certo dia, a mestra se impacientou.
Gaguejava a lição, truncava tudo. Não dava mesmo.
A mestra se alterou de todo, perdeu a paciência,
e mandou enérgica: estende a mão.
Ela se fez gigante no meu medo maior, sem tamanho.
Mandou de novo: estende a mão.
Eu de medo encolhia o braço.

Estende a mão! Mão de Aninha, tão pequena!
A meninada, pensando nalguns avulsos para eles,
nem respirava, intimidada.
Tensa, expectante, repassada.
Era sempre assim na hora dos bolos em mãos alheias.
Aninha, estende a mão. Mão de Aninha, tão pequena.
A palmatória cresceu no meu medo, seu rodelo se fez maior,
o cabo se fez cabo de machado, a mestra se fez gigante
e o bolo estralou na pequena mão obediente.
Meu berro! e a mijada incontinente, irreprimida.
Só? Não. O coro do banco dos meninos, a vaia impiedosa.
– Mijou de medo… Mijou de medo… Mijou de medo…
A mestra bateu a régua na mesa, enfiou a palmatória na gaveta,
e, receosa de piores consequências, me mandou pra casa, toda mijada,
sofrida, humilhada, soluçando, a mão em fogo.

Em casa ganhei umas admoestações sensatas.
A metade compadecida de uma bolacha das reservas de minha bisavó,
e me valeu a biquinha d’água, o alívio à minha mão escaldada.
Ao meu soluçar respondia a casa: “é pra o seu bem, pra ocê aprender,
senão não aprende, fica burra, só servindo pro pilão”
.
Sei que todo castigo que me davam era para meu bem.
Eu não sabia que bem seria este representado por bolos na mão,
chineladas e reprimendas, sentada de castigo com a carta de ABC na mão.
O bem que eu entendia era a bolacha que me dava minha bisavó
e os biscoitos e brevidade da tia Nhorita.
Estes, entravam no meu entendimento. Do resto não tinha nenhuma noção.

Fui menina chorona, enjoada, moleirona.
Depois, inzoneira, malina.
Depois, exibida. Détraqué.
Até em francês eu fui marcada.
Sim, que aquela gente do passado,
tinha sempre à mão o seu francês.
Se souberes viver, no fim te sentirás feliz.
Envelhecer é entrar no reino da grande Paz.
Serenidade maior.
Olhar para frente e para trás,
e dizer: dever cumprido.

O que mais se pode na vida desejar?…
Sentada na margem do caminho percorrido,
ver os que passam, ansiosos, correndo, tropeçando.
E dizer baixinho:
corri tanto quanto você.
E você se quedará, um dia, como eu.
A certeza de ter vivido e vencido
a maratona da vida.

No Passado
 
Tanta coisa me faltou.
Tanta coisa desejei sem alcançar.
Hoje, nada me falta,
me faltando sempre o que não tive.

Eu era uma pobre menina mal‑amada.
Frustrei as esperanças de minha mãe, desde o meu nascimento.
Ela esperava e desejava um filho homem, vendo meu pai doente
irreversível.
Em vez, nasceu aquela que se chamaria Aninha.
Duas criaturas idosas me deram seus carinhos:
minha bisavó e minha tia Nhorita.
Minha bisavó me acudia quando das chineladas cruéis da minha mãe.
No mais, eu devia ser, hoje reconheço, menina enjoada, enfadando
as jovens da casa e elas se vingavam da minha presença aborrecida,
me pirraçando, explorando meu atraso mental, me fazendo chorar
e levar queixas doloridas para a mãe
que perdida no seu mundo de leitura e negócios não dava atenção.
Quem punia por Aninha era mesmo minha bisavó.
Me ensinava as coisas, corrigia paciente meus malfeitos de criança
e exortava minhas irmãs a me aceitarem.
Daí minha fuga para o enorme quintal onde meus sentidos foram se aguçando
para as pequenas ocorrências de que não participavam minhas irmãs.
Minhas impressões foram se acumulando lentamente
e eu passei a viver uma vida estranha de mentiras e realidades.
E fui marcada: menina inzoneira.
Sem saber o significado da palavra, acostumada ao tratamento ridicularizante,
esta palavra me doía.
Certo foi que eu engenhava coisas, inventava convivência
com cigarras,
descia na casa das formigas, brincava de roda com elas,
cantava “Senhora D. Sancha”, trocava anelzinho.
Eu contava essas coisas lá dentro, ninguém compreendia.
Chamavam, mãe: vem ver Aninha…
Mãe vinha, ralhava forte.
Não queria que eu fosse para o quintal, passava a chave no portão.
Tinha medo, fosse um ramo de loucura, sendo eu filha de velho doente.
Era nesse tempo, amarela de olhos empapuçados, lábios descorados.
Tinha boqueira, uma esfoliação entre os dedos das mãos, diziam: “Cieiro”.

Minhas irmãs tinham medo que pegasse nelas.
Não me deixavam participar de seus brinquedos.
Aparecia na casa menina de fora, minha irmã mais velha passava o braço no ombro e 
[segredava: 
“Não brinca com Aninha não. Ela tem cieiro
e pega na gente”
.
Eu ia atrás, batida, enxotada.
Infância… Daí meu repúdio invencível à palavra saudade, infância…
Infância… Hoje, será.


Cora Coralina (1889-1985),
in "Vintém de cobre: meias confissões de Aninha" 
(Editora Global, 1ª edição em 1983)


"Vintém de Cobre - Meias confissões de Aninha" de Cora Coralina
Editora Global (10ª Edição)
 
 
[No tempo do mil-réis, o vintém de cobre era a moeda mais desvaliosa, aquela que mal comprava um doce. Por modéstia e também um pouco por malícia (talvez muita malícia), Cora Coralina batizou com o nome da velha moeda as suas quase memórias, ou meias-confissões, como ela prefere, redigidas em versos. É um livro tumultuado, aberrante, da rotina de se fazer e ordenar um livro. Tumultuado, como foi a vida daquela que o escreveu. Vida tumultuada, cheia de esbarrões do destino que, em vez de provocar desânimo, despertaram no espírito de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas (nome verdadeiro de Cora Coralina) uma fibra de guerreira e uma sabedoria simples, por vezes meio marota, feita de respeito e piedade pelo ser humano, sobretudo pelos que sofrem, mas também com um fundo de ironia mansa e de malícia sem maldade, um humor típico da gente do interior, um sarcasmo angelical (se é que há sarcasmo entre os anjos), mistura de humildade franciscana e revolta diante das estúpidas repressões da sociedade e da dureza dos costumes antigos, sob os quais se criou, foi educada e que lhe deixou marcas tão profundas na alma: Na casa antiga, castigos corporais e humilhantes, coerção,/ atitudes impostas, ascendência férrea, obediência cega./ Filhos foram impiedosamente sacrificados e despojados./ E para alguma rebeldia indomável, lá vinha a ameaça terrível, impressionante/ da maldição da mãe, a que poucos resistiam./ Do resto prefiro não esmiuçar. 
Os poemas de Vintém de Cobre são todos escritos neste tom simples e comunicativo, num lirismo quase de toada sertaneja, ricos de experiência humana. Talvez por pudor, ou autodefesa, nunca revelam toda a dureza dos factos. Ficam nas meias-confissões. E por malícia são chamados de vintém de cobre quando, na realidade, constituem a mais pura e autêntica moeda de ouro.] (daqui)

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