sábado, 31 de agosto de 2019

"Nosso Tempo" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Jean Béraud (1849 - 1935), Café,  1889



Nosso Tempo 

I

Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II

Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

III

E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes…
E muitos de vós nunca se abriram.

IV

É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.

V

Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.

VI

Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.

VII

Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco? no público? nas poltronas?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.

VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.


sexta-feira, 30 de agosto de 2019

"Quero uma vida em forma de espinha" - Poema de Boris Vian


Janos Laszlo Aldor, Hungarian Landscape with Farmhouse near the Water, 1927
 


Quero uma vida em forma de espinha


 
Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo dum sítio sozinho
Quero uma vida em forma de areia nas minhas mãos
Em forma de pão verde ou de cântara
Em forma de sapata mole
Em forma de tanglomanglo
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra cheia de calhaus
De cabeleireiro selvagem ou de édredon louco
Quero uma vida em forma de ti
E tenho-a mas ainda não é bastante
Eu nunca estou contente


Boris Vian,

Canções e Poemas
Tradução de Irene Freire Nunes e Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim
1997 
 
 

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

"A Foto" - Poema de Bella Akhmadulina


Retrato de Anna Akhmátova por Nathan Altman em 1914



A Foto


Sorrindo, nervosa mas alegre,
consciente de sua juventude e fama,
ela abriu o caminho que lhe pediam,
indiferente, quase de brincadeira.

Sob a eterna infância da cúpula celeste,
abril de mil novecentos e doze
promete-lhe, nos Ospedaletti,
apenas prosperidade e sol.

Ela olha para a renda das nuvens,
com as mãos cruzadas no colo.
As sombras dos tormentos futuros
ainda estão presas naquela foto.

Em paz com o doce mês de abril —
leia-se Aprille — úmido e quente
como âmbar que se petrificou,
ela ainda se sente intocada.

Quando a idade chegar, o fim também,
um sabujo retardatário ainda há de encontrar
esse perfil terno e anguloso, preservado
para sempre num coágulo de luz.

Com que calma moldam-se, nesta dama
bem vestida, de feições claramente traçadas,
os sinais do talento, mostrando-se tão fáceis
como no título de um livro.

Quem lhe pediu, como presente,
esse tristonho comentário, emoldurado
em papel, sem nada escrito a lápis,
essa fronte, essa franja na testa?

O que há, para ela mesma, nesta foto?
Ela dá de ombros: façam o que quiserem!
E pinta esse retrato — Ospedaletti,
abril de mil novecentos e doze.

Que frescor, tão cedo, aqui nesta terra!
Ó amanhã, concede-lhe mais tempo!
Espera até que ela termine e assine “Anna
Akhmátova” no último verso.


Bella Akhmadulina

Tradução de Lauro Machado Coelho


 Retrato de Anna Akhmátova por Kuzma Petrov-Vodkin em 1922



À musa 


Quanto, à noite, espero a tua chegada,
a vida me parece suspensa por um fio.
Que importam juventude, glória, liberdade,
quando enfim aparece a hóspede querida
trazendo nas mãos a sua rústica flauta?
Ei-la que vem. Soergue o seu véu,
olha para mim atentamente.
E lhe pergunto: “Foste tu quem a Dante
ditou as páginas do Inferno?”. E ela: “Sim, fui eu”.


Anna Akhmátova
Tradução de Lauro Machado Coelho


Anna Akhmátova, 1924. (Photo ITAR-TASS/
 Moisei Solomonovich Nappelbaum)


Anna Akhmátova nasceu em 1889 em Odessa, na Ucrânia, e ainda criança se mudou para uma pequena cidade perto de São Petersburgo. Começou a escrever poemas aos onze anos de idade. Quando publicou seu primeiro livro, aos 23, já era uma das poetas mais aclamadas de São Petersburgo, ao lado de Osip Mandelstam e de Nikolay Gumilyov, com quem viria a se casar. O estilo lírico e ao mesmo tempo contido de Akhmátova, que combinava alta carga emocional com uma linguagem direta e sem metáforas flácidas, rapidamente ganhou popularidade e gerou uma multidão de admiradores e imitadores. Segundo Joseph Brodsky, seu amigo e discípulo, os poemas dedicados a ela ocupariam mais volumes do que suas próprias obras reunidas.

Tudo começou a mudar com a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial e a onda de devastação que veio em seguida. Em 1915, Akhmátova escreveu um poema intitulado Oração, em que se oferecia em sacrifício pelo fim da guerra:

Manda-me amargos anos de doença,
a febre, a insônia, a inquietação,
leva de mim meu filho, meu amigo,
e o dom misterioso de cantar. 

Essa é a minha oração durante a tua liturgia:
após as tormentas de tão longos dias,
que a nuvem que pesou sombria sobre a Rússia,
transforme-se noutra nuvem, de gloriosos raios. 

 
Akhmátova em 1913, com seu marido Nikolay Gumilyov e o filho Lev Gumilyov

Quando lemos esse poema à luz da biografia da poeta, é difícil não ver nele uma premonição sinistra. Com o advento da Revolução Russa, a poesia de Anna Akhmátova passou a ser considerada “ultrapassada”, “individualista” e incompatível com o espírito coletivista do novo regime. Além disso, ela ficou marcada como viúva de um “inimigo do povo”. Nikolay Gumilyov, de quem ela havia se separado em 1918, foi acusado de envolvimento em uma conspiração e fuzilado sumariamente, três anos depois. Ela ficou sabendo pelos jornais, e escreveu este poema:

Não estás mais entre os vivos.
Da neve não podes erguer-te.
Vinte e oito baionetadas.
Cinco buracos de bala.

Amarga camisa nova
cosi para o meu amado.
Esta terra russa gosta,
gosta do gosto de sangue.


Tradução de Lauro Machado Coelho


Akhmátova desenhada por Amedeo Modigliani, 1911

A partir de 1923, Anna Akhmátova não conseguia mais publicar poemas e vivia na penúria quase absoluta, subsistindo com a magérrima renda de tradutora e pesquisadora. Ainda assim, mais tarde ela chamaria esses anos de “vegetarianos”, em comparação com o terror “carnívoro” que Stalin impôs à União Soviética a partir da metade da década de 1930. Seu marido, Nikolay Punin, foi preso e levado para a Sibéria; o mesmo aconteceu com seu amigo Osip Mandelstam, mais tarde assassinado na prisão, e com seu filho Lev Gumilyov, que passaria longos anos em campos de trabalho.

Mesmo privada do marido e do filho, proscrita, paupérrima, tuberculosa e com problemas na tireoide, Anna Akhmátova nunca deixou a poesia de lado. Foi nessa época que começou a escrever Réquiem e outras obras célebres, como o longo e épico Poema sem herói. Sabendo do risco que corria caso seus poemas fossem descobertos, ela confiou a um pequeno grupo de amigas a tarefa de memorizá-los. Uma dessas amigas, Lydia Chukovskaya, descreve em suas memórias como isso acontecia:

“Subitamente, no meio de uma conversa, ela ficava em silêncio, dirigia seu olhar para o teto e para as paredes, pegava um pedaço de papel e um lápis; então dizia em voz alta algo deveras mundano... cobria o papel com uma escrita apressada e me entregava. Eu lia os poemas e, após memorizá-los, devolvia-os em silêncio... e então ela queimava o papel...” 


Anna Akhmátova, 1913-1914 by Savely Sorin


Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, o esforço de união nacional deu margem a uma relativa abertura para os poetas e demais artistas proscritos. Mesmo sem publicar poemas há mais de quinze anos, Anna Akhmátova não tinha sido esquecida; foi chamada para falar a seus compatriotas no rádio, durante o cerco de Leningrado, e escreveu poemas patrióticos como Coragem, que se espalhavam de boca a boca entre os soldados no front.

O governo autorizou a edição de uma antologia de seus poemas e, no dia do lançamento, formaram-se imensas filas que disputavam a edição limitada de 10 mil exemplares. As autoridades foram pegas de surpresa e o Presidente do Soviete Supremo, Andrei Jdanov, ordenou que o livro fosse retirado de circulação. Em 1946, o mesmo Jdanov foi encarregado por Stalin de coordenar a política cultural soviética. Seu primeiro ato foi lançar uma campanha pública de condenação à arte “burguesa” e “reacionária”. Seu primeiro alvo foi Anna Akhmátova, que foi expulsa da União Soviética de Escritores, teve seu cartão de racionamento confiscado e foi mais uma vez proibida de publicar seus poemas.

Ela suportou a condenação com a sobriedade e dignidade de sempre, e continuou a escrever e reescrever seus poemas em segredo. Viveu o suficiente para ver a morte de Jdanov e do próprio Stálin, e o relaxamento gradual da censura sobre seus poemas. Na década de 1960, voltou a publicar livros, se tornou ainda mais popular do que era na sua juventude e sua reputação cresceu de forma sólida e consistente entre as novas gerações de poetas e leitores. Havia se tornado um dos poucos artistas russos de primeiríssima grandeza que não tinham sido assassinados ou escapado para o exílio. Talvez ela tivesse pressentido que um dia voltaria a ser a poeta mais amada da Rússia, pois muitos anos antes escrevera, no epílogo de Réquiem:

E se, neste país, um dia decidirem
à minha memória erguer um monumento,
eu concordarei com essa honraria,
desde que não me façam essa estátua
nem à beira do mar, onde nasci –
meus últimos laços com o mar já se romperam –,
nem no jardim do Tsar, junto ao tronco consagrado,
onde uma sombra inconsolável ainda procura por mim,
mas aqui, onde fiquei de pé trezentas horas
sem que os portões para mim se destrancassem.

Tradução de Lauro Machado Coelho


A statue of Akhmatova, staring at the Kresty Prison
from across the Neva River (St. Petersburg) (Daqui)

 

Em 2006, quando as autoridades de São Petersburgo decidiram erguer um monumento a Anna Akhmátova no aniversário de quarenta anos de sua morte, não foi difícil escolher o lugar. A estátua de bronze, de três metros de altura, foi colocada em frente à prisão de Kresty. (Daqui)


Monument to Anna Akhmatova erected in the courtyard of the Languages Department 
of St. Petersburg State University.  (Daqui)



O último brinde


Bebo à casa arruinada,
às dores de minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo –

aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou.


Anna Akhmátova
Tradução de Lauro Machado Coelho


terça-feira, 27 de agosto de 2019

"Vinte e um. Noite. Segunda-feira." - Poema de Anna Akhmátova


Olga Della-Vos-Kardovskaya, Anna Akhmátova, 1914



Poema


Vinte e um. Noite. Segunda-feira.
A silhueta da cidade na neblina.
Algum desocupado inventou
essa história de que há amor no mundo.
E por preguiça ou por tédio,
todos acreditaram nele e assim viveram:
esperando encontros, temendo ruturas
e cantando canções de amor.
Mas a outros será revelado o segredo
e sobre estes recairá o silêncio…
Eu tropecei nele casualmente e, desde então,
sinto-me como se estivesse doente.

1917
Petersburgo


Anna Akhmátova
Tradução de Lauro Machado Coelho


domingo, 25 de agosto de 2019

"Esta vida" - Poema de Guilherme de Almeida




Esta vida


Um sábio me dizia: esta existência,
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo. E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.

Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: ó mocidade,
és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;
esta vida não vale grande coisa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida

Isto me disse o monge e eu continuei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um pobre me dizia: para o pobre
a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.

Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!

Pela primeira vez eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver.


Guilherme de Almeida 



sábado, 24 de agosto de 2019

"Aurora" - Poema de Adolfo Casais Monteiro


Ivan Shishkin (Russian, 1832-1898), Rain in an Oak Forest, 1891
 

Aurora


A poesia não é voz - é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro.

in 'Voo Sem Pássaro Dentro'


Ivan Shishkin, Walking through the forest, 1869


"O jardim é uma natureza organizada pelo homem e para o homem."

(Roberto Burle Marx)


Ivan Shishkin, Walk in the Forest, 1870


"Um jardim faz-se de luz e sons - as plantas são coadjuvantes."

(Roberto Burle Marx)


Ivan Shishkin, Wood in the evening, 1868-1869


"Onde havia peixes, há mercúrio. Onde havia florestas, há cinzas."

(Roberto Burle Marx)


Ivan Shishkin, Woodland, 1889


"Gostaria que os que viessem depois de mim pudessem, pelo menos, ver alguma coisa que ainda lembrasse o país fabuloso que é o Brasil do ponto de vista botânico, dono da flora mais rica do Globo."
(Roberto Burle Marx)

Roberto Burle Marx (São Paulo, 4 de agosto de 1909 – Rio de Janeiro, 4 de junho de 1994) foi um paisagista, arquiteto, desenhista, pintor, gravador, litógrafo, escultor, tapeceiro, ceramista, designer de jóias e decorador.

Durante a infância viveu no Rio de Janeiro. Foi com a família para a Alemanha, em 1928. Em Berlim, estudou canto e integrou-se na vida cultural da cidade, frequentando teatros, óperas, museus e galerias de arte. Entrou em contato com as obras de Vincent van Gogh (1853-1890), Pablo Picasso (1881-1973) e Paul Klee (1879-1940). Em 1929, frequentou o ateliê de pintura de Degner Klemn. Nos jardins e museus botânicos de Dahlen, em Berlim, entusiasmou-se ao encontrar exemplares da flora brasileira.

De volta ao Brasil, fez curso de pintura e arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes (Enba), Rio de Janeiro, entre 1930 e 1934, onde foi aluno de Leo Putz (1869-1940), Augusto Bracet (1881-1960) e Celso Antônio (1896-1984). Em 1932, realizou seu primeiro projeto de jardim para a residência da família Schwartz, no Rio de Janeiro, a convite do arquiteto Lucio Costa (1902-1998), que realizou o projeto de arquitetura com Gregori Warchavchik (1896-1972).

Entre 1934 e 1937, ocupou o cargo de diretor de parques e jardins do Recife, Pernambuco, onde passou a residir. Nesse período, foi com frequência ao Rio de Janeiro e teve aulas com Candido Portinari (1903-1962) e com o escritor Mário de Andrade (1893-1945), no Instituto de Arte da Universidade do Distrito Federal. Em 1937, retornou ao Rio de Janeiro e trabalhou como assistente de Candido Portinari.

O final da década de 1930 arca a integração de sua obra paisagística à arquitetura moderna, época em que o artista experimenta formas orgânicas e sinuosas na elaboração de seus projetos. Sua paixão por plantas remonta à juventude, quando se interessa por botânica e jardinagem, mas é em 1949 que Roberto Burle Marx organiza uma grande coleção, quando adquire um sítio de 800.000 m², em Campo Grande, Rio de Janeiro.

Em companhia de botânicos, realiza inúmeras viagens por diversas regiões do país, para coletar e catalogar exemplares de plantas, reproduzindo em sua obra a diversidade fitogeográfica brasileira.

Principais Obras
: Jardins do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, Paisagismo do Eixo Monumental em Brasília, Parque Ibirapuera, em São Paulo. (Daqui)

Ivan Shishkin: A collection of 352 paintings (HD) 




Ivan Ivanovitch Shishkin (Ielabuga, 25 de janeiro de 1832 – São Petersburgo, 20 de março de 1898) foi um pintor paisagista russo associado ao movimento dos Itinerantes e marido da pintora Olga lagoda-shishkina

Shishkin nasceu em Ielabuga, no atual Tartaristão, e graduou-se em Cazã. Estudou na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou por quatro anos e na Academia Imperial de Artes entre 1856 e 1860, quando graduou-se, recebendo uma pensão imperial para que continuasse seus estudos na Europa. Cinco anos mais tarde, Shishkin tornou-se membro da Academia Imperial de São Petersburgo e foi professor de pintura entre 1873 e 1898. Simultaneamente, Shishkin liderou o programa educacional de pintura paisagística. 

Shishkin viveu, por alguns anos, na Suíça e Alemanha, graças à pensão recebida pela academia. Ao retornar para a capital russa, ele tornaria-se membro do Círculo dos Itinerantes e da Sociedade dos Aquarelistas da Rússia. Participou de mostras em Moscou (1882), Nijni Novgorod (1896), Paris (1867 e 1878) e Viena (1873). O método de Shishkin foi baseado em estudos analíticos da natureza. Ele tornou-se famoso por suas paisagens de florestas, além de ter sido um desenhista além de seu tempo.

Os trabalhos de Shishkin foram principalmente inspirados nas paisagens de sua dacha nos subúrbios do sul de São Petersburgo. Seus trabalhos são de notável detalhamento poético das estações do ano, florestas, natureza selvagem, fauna e flora.

Shishkin morreu em 1898, em São Petersburgo, enquanto desenvolvia uma nova pintura. (Daqui)
 

„Toda a forma de vida é uma manifestação de Deus e está sob os nossos cuidados. Proteja o que é seu - sua fauna sua flora. As plantas e os animais embelezam a terra. São úteis ao homem e representam a riqueza da Pátria. Nunca se deve mutilar, destruir ou deixar que destruam estes bens. Vamos amar nossos animais domésticos. Vamos dar aos selvagens a paz que eles têm direito. Permitamos que enfeitem nossas florestas. Vamos amar os pássaros puros e belos, cantando nas ramagens, voando alegres no espaço ilimitado, como verdadeiros símbolos de liberdade!“ — Francisco de Assis

Referência: https://citacoes.in/autores/francisco-de-assis/

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

"Amo-te por sobrancelhas" - Poema de Julio Cortázar


Janos Laszlo Aldor (Hungria, 1895-1944), Sonhando acordada, s/d


Amo-te por sobrancelhas


Amo-te por sobrancelhas, por cabelo, debato-te em corredores
branquísimos onde se jogam as fontes da luz,
Discuto-te a cada nome, arranco-te com delicadeza de cicatriz,
vou pondo no teu cabelo cinzas de relâmpago
e fitas que dormiam na chuva.

Não quero que tenhas uma forma, que sejas
precisamente o que vem por trás de tua mão,
porque a água, considera a água, e os leões
quando se dissolvem no açúcar da fábula,
e os gestos, essa arquitetura do nada,
acendendo as lâmpadas a meio do encontro.

Tudo amanhã é a ardósia onde te invento e desenho.
pronto a apagar-te, assim não és, nem tampouco
com esse cabelo liso, esse sorriso.

Procuro a tua súmula, o bordo da taça onde o vinho
é também a lua e o espelho,
procuro essa linha que faz tremer um homem
numa galeria de museu.

Além disso quero-te, e faz tempo e frio.


Julio Cortázar
(Daqui)



Escritor argentino Julio Cortázar


“Te quiero por ceja”


Te amo por ceja, por cabello, te debato en corredores
blanquísimos donde se juegan las fuentes de la luz,
te discuto a cada nombre, te arranco con delicadeza de cicatriz,
voy poniéndote en el pelo cenizas de relámpago
y cintas que dormían en la lluvia.

No quiero que tengas una forma, que seas
precisamente lo que viene detrás de tu mano,
porque el agua, considera el agua, y los leones
cuando se disuelven en el azúcar de la fábula,
y los gestos, esa arquitectura de la nada,
encendiendo sus lámparas a mitad del encuentro.

Todo mañana es la pizarra donde te invento y te dibujo,
pronto a borrarte, así no eres, ni tampoco
con ese pelo lacio, esa sonrisa.

Busco tu suma, el borde de la copa donde el vino
es también la luna y el espejo,
busco esa línea que hace temblar a un hombre
en una galería de museo.

Además te quiero, y hace tiempo y frío.


Julio Cortázar


Janos Laszlo Aldor, Portrait of a Lady, 1934 


"... afinal, o que são as lembranças senão o idioma dos sentimentos?"

(Julio Cortázar)


Escritor argentino, Julio Cortázar nasceu a 26 de agosto de 1914, em Bruxelas, na Bélgica, durante uma viagem de negócios empreendida pelos seus pais. Em 1918 a família regressou a Buenos Aires, onde Cortázar veio a estudar, obtendo, em 1935, habilitações como professor do ensino secundário pela Escuela Normal de Professores Mariano Acosta. Ingressou depois na Universidade de Buenos Aires e deu aulas nas escolas secundárias de Bolívar, de Chivilcoy e de Mendonza.

Em 1944 conseguiu uma posição como professor de Literatura Francesa na Universidade de Cuyo, em Mendonza, onde se envolveu numa manifestação contra a política populista e sindicalista de Juan Domingo Peron, pelo que foi encarcerado. Posto em liberdade pouco tempo depois, viu, no entanto, vedada a sua carreira académica. Assumiu então, e em 1946, a direção de uma editora em Buenos Aires, funções que desempenhou até 1948, altura em que completou a sua licenciatura em Direito e Línguas. Cortázar passou então a trabalhar como tradutor.

Em 1949 publicou a sua primeira obra digna de interesse, Los Reyes, um longo poema narrativo em que utilizava arquétipos como o Minotauro e o Labirinto de Creta. Em 1951, época em que o regime de Peron se estabelecia como ditadura, publicou numa revista mantida por Jorge Luis Borges, a Los Anales de Buenos Aires, a sua primeira coletânea de contos, com o título Bestiário (1951).

Nesse mesmo ano, e em resultado das perseguições que lhe foram movidas, o autor optou pelo exílio, mudando para Paris, cidade que não mais abandonaria. A partir de 1952 passou a trabalhar para a UNESCO como tradutor independente.

Continuou a publicar coletâneas de contos, como Final de Juego (1956), Las Armas Secretas (1959), obra que viria a ser adaptada para cinema pelo realizador italiano Michelangelo Antonioni, com o título Blow Up, em 1966. Em 1960 consagrou-se também como romancista, com o aparecimento de Los Premios, obra em que contava o rumo de um grupo de pessoas que ganham como prémio de lotaria um cruzeiro-surpresa. O seu romance mais conhecido, Rayuela, seria publicado em 1963. A obra, original e imaginativa, influenciou significativamente a literatura da América Latina.

Em 1973 empreendeu uma longa viagem pela América do Sul, visitando países como o Peru, o Equador, o Chile e a Argentina, como investigador das violações dos direitos humanos no continente, apoiando, com os ganhos resultantes da venda das suas obras, os Sandinistas e as famílias de prisioneiros políticos.

Em 1975 lecionou, como professor convidado, nas Universidades de Oklahoma e do Barnard College de Nova Iorque. Em 1981 tomou a nacionalidade francesa e, dois anos depois, foi-lhe autorizado visitar de novo a Argentina.

Faleceu a 12 de fevereiro de 1984, em Paris. Embora seja geralmente aceite como causa da sua morte uma leucemia, existe também a opinião de que o autor tenha sido vítima de  SIDA, nesse tempo ainda não diagnosticável. (Daqui)

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

"Encontro em Copenhague" - Poema de Yevgeny Aleksandrovich Yevtushenko


Ernest Hemingway at his home in Cuba, circa 1953, 
standing in front of a 1929 portrait of himself 


Ernest Hemingway as 'Kid Balzac' painted 
by Waldo Peirce in 1929, Key West


Encontro em Copenhague


Sentados no aeroporto em Copenhague
atacávamos juntos o café.
Ali tudo era belo,
confortável.
— Ambiente refinado como quê!

E de súbito
aquele velho surgiu,
japona simples e capuz verde oliva,
pele curtida
por lufadas salinas,
ou melhor,
não surgiu,
exsurgiu.

Caminhava,
singrando por turistas,
como se houvesse largado o leme faz pouco,
feito espuma do mar
a barba híspida
branca
emoldurava-lhe o rosto.

Com sombria decisão de vitória
caminhava,
erguendo uma onda volumosa,
através de antiqualhas
de um moderno postiço,
através do moderno posiçando o antigo.

E abrindo a gola da camisa rústica,
ele, rejeitando o vermute e o pernaud,
pediu ao balcão uma vodca russa
e repeliu a soda com um gesto:
“No...”

Mãos gretadas, com cicatrizes,
curtidas,
sapatos grossos, arrastando solas,
calças incrivelmente encardidas,
— era mais elegante
do que todos em roda!

A terra sob ele como que afundava,
com o peso daquelas passadas.
Um dos nossos sorriu-me:
“Ei!
Veja se não parece Hemingway!”

Caminhava,
expresso em gestos curtos,
andar de pescador, pesado, lento,
todo talhado num rochedo bruto,
como através das balas,
através dos tempos.

Caminhava, encurvado, como na trincheira,
abria caminho entre pessoas e cadeiras...
Parecia-se tanto com Hemingway! 
 
— Depois fiquei sabendo:
era Hemingway.


Yevgeny Aleksandrovich Yevtushenko,
Trad. de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman 
 

Waldo Peirce, Ernest Hemingway, 1966 
("Don Ernesto con una bonita", Key West '27)


“Nossas virtudes e nossos defeitos são inseparáveis, assim como a força e a matéria. Quando se separam, o homem deixa de existir.”

(Nikola Tesla)



quarta-feira, 21 de agosto de 2019

"O Oceano" - Poema de Lord Byron


Ivan Aivazovsky, The Battle in the Chios Channel, 1848



O Oceano


Rola, Oceano profundo e azul sombrio, rola!
Caminham dez mil frotas sobre ti, em vão;
de ruínas o homem marca a terra, mas se evola
na praia o seu domínio. Na úmida extensão
só tu causas naufrágios; não, da destruição
feita pelo homem sombra alguma se mantém,
exceto se, gota de chuva, ele também
sem féretro, sem túmulo, desconhecido
se afunda a borbulhar com seu gemido.

Do passo do há traços em teus caminhos,
nem são presa teus campos. Ergues-te e o sacodes
de ti; desprezas os poderes tão mesquinhos
que usa para assolar a terra, já que podes
de teu seio atirá-lo aos céus; assim o lanças
tremendo uivando em teus borrifos escarninhos
rumo a seus deuses – nos quais firma as esperanças
de achar um portou angra próxima, talvez –
e o devolves à terra – jaza aí, de vez.

Os armamentos que fulminam as muralhas
das cidades de pedra – e tremem as nações
ante eles, como os reis em suas capitais – ,
os leviatãs de roble, cujas proporções
levam o seu criador de barro a se apontar
como Senhor do Oceano e árbitro das batalhas,
fundem-se todos nessas ondas tão fatais
para a orgulhosa Armada ou para Trafalgar.

Tuas bordas são reinos, mas o tempo os traga:
Grécia, Roma, Catargo, Assíria, onde é que estão?
Quando outrora eram livres tu as devastavas,
e tiranos copiaram-te, a partir de então;
manda o estrangeiro em praias rudes ou escravas;
reinos secaram-se em desertos, nesse espaço,
mas tu não mudas, salvo no florear da vaga;
em tua fronte azul o tempo não põe traço;
como és agora, viu-te a aurora da criação.

Tu, espelho glorioso, onde no temporal
reflete sua imagem Deus onipotente;
calmo ou convulso, quando há brisa ou vendaval,
quer a gelar o pólo, quer em cima ardente
a ondear sombrio, – tu és sublime e sem final,
cópia da eternidade, trono do Invisível;
os monstros dos abismos nascem do teu lodo;
insondável, sozinho avanças, és terrível.

Amei-te, Oceano! Em meus folguedos juvenis
ir levado em teu peito, como tua espuma,
era um prazer; desde meus tempos infantis
divertir-me com as ondas dava-me alegria;
quando, porém, ao refrescar-se o mar, alguma
de tuas vagas de causar pavor se erguia,
sendo eu teu filho esse pavor me seduzia
e era agradável: nessas ondas eu confiava.
e, como agora, a tua juba eu alisava.


Lord Byron
 Tradução de Castro Alves


is considered Aivazovsky's most famous work.


"Quão inapropriado chamar Terra a este planeta, quando é evidente que deveria chamar-se Oceano."


(Arthur C. Clarke)