quinta-feira, 8 de agosto de 2019

"A Elisabeth foi-se embora" - Poema de Adília Lopes


Albert Reuss (1889-1976), Woman Reading with Mother-in-Law's Tongue, 1935.
Oil on canvas. Newlyn Art Gallery



A Elisabeth foi-se embora
(com algumas coisas de Anne Sexton)

  
Eu que já fui do pequeno almoço à loucura
eu que já adoeci a estudar morse
e a beber café com leite
não posso passar sem a Elisabeth
porque é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça
eu só venho cá senhora doutora
para a Elisabeth me lavar a cabeça
só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade
de que eu gosto nos shampoos
só ela sabe como eu gosto da água quase fria
a escorrer-me pela cabeça abaixo
eu não posso passar sem a Elisabeth
não me venha dizer que o tempo cura tudo
contava com ela para o resto da vida
a Elisabeth era a princesa das raposas
precisava das mãos dela na minha cabeça
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu antiséptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth era a princesa das raposas
porque me roubou a Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida


Adília Lopes,  
“A Elisabeth foi-se embora (com algumas coisas de Anne Sexton)”
 (retirado de “Dobra: Poesia Reunida, 1983-2007”, Assírio e Alvim, 2009) 


Albert Reuss, The artist`s wife, 1937


[A poesia de Adília Lopes é um manifesto pessoalíssimo. Ainda que possa ser lida à luz de muita Mariana Alcoforado ou Sophia, ela acontece profundamente sem previsão, genuína e indomável. O poema de Adília que mais me comove é feito de nervos. Leio “A Elizabeth foi-se embora” como um protesto amoroso, feito de uma perigosidade algo cómica, nessa dimensão trágica que nos pode provocar o riso, e parece-me sobretudo o desamparo de uma mulher que se verá eternamente como menina de bonecas, preparada para brincar com chá encenado e gatinhos. Adília Lopes é a poeta dos gatos e das baratas, não deixa de ser uma certa Alice construindo o seu mundo de fantasia que, como é bom de ver, é feito de tanta aventura e susto. Neste poema, que nos chega tão simples e sem pose, encontro essa menina algo perdida mais do que furiosa, encontro-a tristíssima. Porque isso nos provoca um riso nervoso, não sei. Depois de algumas leituras, a mim, só me faz chorar. Todo o livro “O Decote da Dama de Espadas”, onde se inclui este poema, é lindo. Uma casa de bonecas viva.]

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