Retrato de Anna Akhmátova por Nathan Altman em 1914
A Foto
Sorrindo, nervosa mas alegre,
consciente de sua juventude e fama,
ela abriu o caminho que lhe pediam,
indiferente, quase de brincadeira.
Sob a eterna infância da cúpula celeste,
abril de mil novecentos e doze
promete-lhe, nos Ospedaletti,
apenas prosperidade e sol.
Ela olha para a renda das nuvens,
com as mãos cruzadas no colo.
As sombras dos tormentos futuros
ainda estão presas naquela foto.
Em paz com o doce mês de abril —
leia-se Aprille — úmido e quente
como âmbar que se petrificou,
ela ainda se sente intocada.
Quando a idade chegar, o fim também,
um sabujo retardatário ainda há de encontrar
esse perfil terno e anguloso, preservado
para sempre num coágulo de luz.
Com que calma moldam-se, nesta dama
bem vestida, de feições claramente traçadas,
os sinais do talento, mostrando-se tão fáceis
como no título de um livro.
Quem lhe pediu, como presente,
esse tristonho comentário, emoldurado
em papel, sem nada escrito a lápis,
essa fronte, essa franja na testa?
O que há, para ela mesma, nesta foto?
Ela dá de ombros: façam o que quiserem!
E pinta esse retrato — Ospedaletti,
abril de mil novecentos e doze.
Que frescor, tão cedo, aqui nesta terra!
Ó amanhã, concede-lhe mais tempo!
Espera até que ela termine e assine “Anna
Akhmátova” no último verso.
Bella Akhmadulina
Tradução de Lauro Machado Coelho
Sorrindo, nervosa mas alegre,
consciente de sua juventude e fama,
ela abriu o caminho que lhe pediam,
indiferente, quase de brincadeira.
Sob a eterna infância da cúpula celeste,
abril de mil novecentos e doze
promete-lhe, nos Ospedaletti,
apenas prosperidade e sol.
Ela olha para a renda das nuvens,
com as mãos cruzadas no colo.
As sombras dos tormentos futuros
ainda estão presas naquela foto.
Em paz com o doce mês de abril —
leia-se Aprille — úmido e quente
como âmbar que se petrificou,
ela ainda se sente intocada.
Quando a idade chegar, o fim também,
um sabujo retardatário ainda há de encontrar
esse perfil terno e anguloso, preservado
para sempre num coágulo de luz.
Com que calma moldam-se, nesta dama
bem vestida, de feições claramente traçadas,
os sinais do talento, mostrando-se tão fáceis
como no título de um livro.
Quem lhe pediu, como presente,
esse tristonho comentário, emoldurado
em papel, sem nada escrito a lápis,
essa fronte, essa franja na testa?
O que há, para ela mesma, nesta foto?
Ela dá de ombros: façam o que quiserem!
E pinta esse retrato — Ospedaletti,
abril de mil novecentos e doze.
Que frescor, tão cedo, aqui nesta terra!
Ó amanhã, concede-lhe mais tempo!
Espera até que ela termine e assine “Anna
Akhmátova” no último verso.
Bella Akhmadulina
Tradução de Lauro Machado Coelho
Quanto, à noite, espero a tua chegada,
a vida me parece suspensa por um fio.
Que importam juventude, glória, liberdade,
quando enfim aparece a hóspede querida
trazendo nas mãos a sua rústica flauta?
Ei-la que vem. Soergue o seu véu,
olha para mim atentamente.
E lhe pergunto: “Foste tu quem a Dante
ditou as páginas do Inferno?”. E ela: “Sim, fui eu”.
Anna Akhmátova
Tradução de Lauro Machado Coelho
Moisei Solomonovich Nappelbaum)
Anna Akhmátova nasceu em 1889 em Odessa, na Ucrânia, e ainda criança se mudou para uma pequena cidade perto de São Petersburgo. Começou a escrever poemas aos onze anos de idade. Quando publicou seu primeiro livro, aos 23, já era uma das poetas mais aclamadas de São Petersburgo, ao lado de Osip Mandelstam e de Nikolay Gumilyov, com quem viria a se casar. O estilo lírico e ao mesmo tempo contido de Akhmátova, que combinava alta carga emocional com uma linguagem direta e sem metáforas flácidas, rapidamente ganhou popularidade e gerou uma multidão de admiradores e imitadores. Segundo Joseph Brodsky, seu amigo e discípulo, os poemas dedicados a ela ocupariam mais volumes do que suas próprias obras reunidas.
Tudo começou a mudar com a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial e a onda de devastação que veio em seguida. Em 1915, Akhmátova escreveu um poema intitulado Oração, em que se oferecia em sacrifício pelo fim da guerra:
Essa é a minha oração durante a tua liturgia:
após as tormentas de tão longos dias,
que a nuvem que pesou sombria sobre a Rússia,
transforme-se noutra nuvem, de gloriosos raios.
Tudo começou a mudar com a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial e a onda de devastação que veio em seguida. Em 1915, Akhmátova escreveu um poema intitulado Oração, em que se oferecia em sacrifício pelo fim da guerra:
Manda-me amargos anos de doença,
a febre, a insônia, a inquietação,
leva de mim meu filho, meu amigo,
e o dom misterioso de cantar.
a febre, a insônia, a inquietação,
leva de mim meu filho, meu amigo,
e o dom misterioso de cantar.
Essa é a minha oração durante a tua liturgia:
após as tormentas de tão longos dias,
que a nuvem que pesou sombria sobre a Rússia,
transforme-se noutra nuvem, de gloriosos raios.
Akhmátova em 1913, com seu marido Nikolay Gumilyov e o filho Lev Gumilyov
Não estás mais entre os vivos.
Da neve não podes erguer-te.
Vinte e oito baionetadas.
Cinco buracos de bala.
Amarga camisa nova
cosi para o meu amado.
Esta terra russa gosta,
gosta do gosto de sangue.
Vinte e oito baionetadas.
Cinco buracos de bala.
Amarga camisa nova
cosi para o meu amado.
Esta terra russa gosta,
gosta do gosto de sangue.
Tradução de Lauro Machado Coelho
Mesmo privada do marido e do filho, proscrita, paupérrima, tuberculosa e com problemas na tireoide, Anna Akhmátova nunca deixou a poesia de lado. Foi nessa época que começou a escrever Réquiem e outras obras célebres, como o longo e épico Poema sem herói. Sabendo do risco que corria caso seus poemas fossem descobertos, ela confiou a um pequeno grupo de amigas a tarefa de memorizá-los. Uma dessas amigas, Lydia Chukovskaya, descreve em suas memórias como isso acontecia:
“Subitamente, no meio de uma conversa, ela ficava em silêncio, dirigia seu olhar para o teto e para as paredes, pegava um pedaço de papel e um lápis; então dizia em voz alta algo deveras mundano... cobria o papel com uma escrita apressada e me entregava. Eu lia os poemas e, após memorizá-los, devolvia-os em silêncio... e então ela queimava o papel...”
Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, o esforço de união nacional deu margem a uma relativa abertura para os poetas e demais artistas proscritos. Mesmo sem publicar poemas há mais de quinze anos, Anna Akhmátova não tinha sido esquecida; foi chamada para falar a seus compatriotas no rádio, durante o cerco de Leningrado, e escreveu poemas patrióticos como Coragem, que se espalhavam de boca a boca entre os soldados no front.
O governo autorizou a edição de uma antologia de seus poemas e, no dia do lançamento, formaram-se imensas filas que disputavam a edição limitada de 10 mil exemplares. As autoridades foram pegas de surpresa e o Presidente do Soviete Supremo, Andrei Jdanov, ordenou que o livro fosse retirado de circulação. Em 1946, o mesmo Jdanov foi encarregado por Stalin de coordenar a política cultural soviética. Seu primeiro ato foi lançar uma campanha pública de condenação à arte “burguesa” e “reacionária”. Seu primeiro alvo foi Anna Akhmátova, que foi expulsa da União Soviética de Escritores, teve seu cartão de racionamento confiscado e foi mais uma vez proibida de publicar seus poemas.
Ela suportou a condenação com a sobriedade e dignidade de sempre, e continuou a escrever e reescrever seus poemas em segredo. Viveu o suficiente para ver a morte de Jdanov e do próprio Stálin, e o relaxamento gradual da censura sobre seus poemas. Na década de 1960, voltou a publicar livros, se tornou ainda mais popular do que era na sua juventude e sua reputação cresceu de forma sólida e consistente entre as novas gerações de poetas e leitores. Havia se tornado um dos poucos artistas russos de primeiríssima grandeza que não tinham sido assassinados ou escapado para o exílio. Talvez ela tivesse pressentido que um dia voltaria a ser a poeta mais amada da Rússia, pois muitos anos antes escrevera, no epílogo de Réquiem:
E se, neste país, um dia decidirem
à minha memória erguer um monumento,
eu concordarei com essa honraria,
desde que não me façam essa estátua
nem à beira do mar, onde nasci –
meus últimos laços com o mar já se romperam –,
nem no jardim do Tsar, junto ao tronco consagrado,
onde uma sombra inconsolável ainda procura por mim,
mas aqui, onde fiquei de pé trezentas horas
sem que os portões para mim se destrancassem.
à minha memória erguer um monumento,
eu concordarei com essa honraria,
desde que não me façam essa estátua
nem à beira do mar, onde nasci –
meus últimos laços com o mar já se romperam –,
nem no jardim do Tsar, junto ao tronco consagrado,
onde uma sombra inconsolável ainda procura por mim,
mas aqui, onde fiquei de pé trezentas horas
sem que os portões para mim se destrancassem.
Tradução de Lauro Machado Coelho
A statue of Akhmatova, staring at the Kresty Prison
from across the Neva River (St. Petersburg) (Daqui)
from across the Neva River (St. Petersburg) (Daqui)
Em 2006, quando as autoridades de São Petersburgo decidiram erguer um monumento a Anna Akhmátova no aniversário de quarenta anos de sua morte, não foi difícil escolher o lugar. A estátua de bronze, de três metros de altura, foi colocada em frente à prisão de Kresty. (Daqui)
Monument to Anna Akhmatova erected in the courtyard of the Languages Department
of St. Petersburg State University. (Daqui)
O último brinde
Bebo à casa arruinada,
às dores de minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo –
aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou.
Anna Akhmátova
Tradução de Lauro Machado Coelho
O último brinde
Bebo à casa arruinada,
às dores de minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo –
aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou.
Anna Akhmátova
Tradução de Lauro Machado Coelho
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